Vida de gado, marcado, registrado e feliz!

A Revista Piauí deste mês traz uma nota que me fez pensar no que poderia ser a expansão do Registro de Títulos e Documentos. E mais: no que poderia servir de poderoso estímulo para articular pacificamente as especialidades de notários e registradores. Esse povo ultimamente anda se estranhando metido numa diatribe infindável (e ao que parece insolúvel).

A nótula muuuuu reporta a posição destacada do Brasil na exportação de boi em pé que embarca no Porto de Belém rumo ao Líbano e outros países do Oriente Médio, “onde é essencial que se abata o animal e se corte a carne de acordo com preceitos religiosos”.

Não é a religião que me chamou a atenção na matéria. Foi o passaporte que esses animais têm, permitindo ao comprador, no exterior, saber, por exemplo, onde nasceu o bovino, o que comeu, onde pastou, para onde foi levado, vendido etc.

É uma identidade que traz embutida um minucioso registro.

A nota afiança que mais de 80 milhões de espécimes foram registrados. Todos os meses mais de 8 milhões de registros são feitos.

Estão falando de Registros? 

Venho me batendo com os RTD´s acerca da necessidade de se abrir para novos nichos, novos mercados, buscar a renovação e a reinvenção institucional afinando-se com as necessidades sociais e econômicas atuais.

A empresa que detém 25% desse promissor mercado – a Planejar – investe na rastreabilidade dos animais há mais de uma década.

No fundo, no fundo, estamos vivendo o ocaso de modelos públicos de registração. A cada dia que passa, as demandas sociais e econômicas levam as empresas e instituições a se reinventarem, criando novas alternativas de satisfação de interesses relacionados com a publicidade de fatos e atos com transcedência jurídica e econômica. O caso do registro de bovinos e bubalinos é um bom exemplo. Vejamos.

Estávamos olvidados de que o registro nasceu de claras necessidades econômicas no século XIX. A dinâmica econômica e social, que é o motor das grandes construções jurídicas – e o registro é engenharia genuinamente jurídica – está mais do que nunca ativa. Essas demandas estimulam a criação e recriação de modelos satisfativos de seus interesses que não enxergam os limites constitucionais que guardam, por exemplo, a atividade notarial e registral.

Os registros pululam. Pensem no ReNaVam. Na Serasa, Cetip etc.

Numa época de controle social, registrar significa ter informação e poder. Informação é poder.

Apresento-lhes estas reflexões insones. Sugiro alguns pontos imperfeitos para posterior reflexão:

  • Definir um certificado (ICP-Brasil) para cada animal. Não importa que o bovino não tenha um nome. Bastará um código. (Afinal, para algum setor da administração pública nós também não precisamos. Do nome!).
  • Pregar na orelha do animal um pequeno GPS articulado com o certificado digital. Ele será rastreado individualmente. Estará especializado subjetiva e objetivamente.
  • Articular-se com o notário local e atestar, por ata notarial, a instalação do GPS e o respectivo certificado no animal. Pode ser uma AR-Bov. Atestar-se-á a especialidade do bovino e a continuidade (pedigree com a ascendência do animal). O notário certificará dados de identificação do animal (nome do proprietário, local onde se acha, paternidade etc.)
  • Registrar-se-á a ata e o se fará o descerramento da matrícula do animal
  • Em parceria com empresas de tecnologia, registrar-se-á a movimentação diária do animal. Os registros serão eletrônicos e automatizados.
  • Periodicamente o notário lavrará atas notariais acerca da situação do animal – alimentação, condições de saúde etc. Esses dados serão averbados.
  • Ao tempo do abate (ou da exportação) o RTD expedirá uma certidão detalhada da vida do animal. Cópia reprográfica da matrícula. O abate ou exportação dará ensejo ao encerramento da matrícula.
  • Poderá dar em penhor, com a garantia da especialidade objetiva e subjetiva da “coisa”.
  • O problema da territorialidade estará resolvida.
  • A certidão tem fé pública.

Piração? Vejamos a reportagem:

O Brasil é o maior exportador de carne bovina do mundo. Dentro do mercado pecuário, um dos nichos que mais crescem é o do chamado boi em pé. O boi em pé sai principalmente do porto de Belém, no Pará, rumo ao Líbano e a outros países do Oriente Médio, onde é essencial que se abata o animal e se corte a carne de acordo com preceitos religiosos.

Os bois chegam ao porto de Belém em caminhões. Demoram cerca de uma semana para embarcar, num processo odoroso e criador de transtorno para os restaurantes da Estação das Docas. Os navios construídos especialmente para essa finalidade têm até seis andares de pequenos currais, cada curral comportando cerca de dez nelores, angus e outras raças de corte. Um dos maiores navios que já deixaram o porto levava 8 mil animais. Todos de pé.
É uma massa de bois anônimos, indistintos. Os que têm nome de batismo — Corso do Campo, Godiva da Terra Boa — são apenas os que se destinam a leilões ou exposições. Para o comprador de fora, importa o passado: o que o boi comeu, de que região vem, que vacinas tomou. É por isso que cada um dos milhares de bois que partem todos os meses de Belém viaja com passaporte.

É uma exigência do Ministério da Agricultura — a Polícia Federal deles —, que tem planos também para passaportes suínos e ovíparos.Desde que o documento foi tornado obrigatório, em 2002, já são 80 milhões os espécimes registrados. Mesmo o boi cuja carne será exportada in natura, já cortada, tira o seu antes do abate e viaja com ele. O passaporte em si parece um diploma. É impresso em papel de segurança, para evitar falsificação. Todos os meses, cerca de 8 milhões de passaportes são emitidos pelas cinqüenta empresas que disputam esse mercado.

Uma delas, a Planejar, é dona de 25% do bolo. A empresa foi fundada em 1991 pelo gaúcho Luciano Antunes, engenheiro agrônomo na época com 24 anos. Desde 2002 ele despacha passaportes, que integram um ramo da pecuária conhecido como rastreabilidade. O passaporte permite a plena identificação do portador, pois traz sua inscrição no Sisbov — Sistema Brasileiro de Identificação e Certificação de Origem Bovina e Bubalina (relativo a búfalos). É uma espécie de catálogo geral dos bois, um quem-é-quem detalhado do rebanho brasileiro para exportação. A chave do sistema é o código de barras no passaporte, pois ele dá acesso a uma série de informações que o documento em si não traz. “Tomamos todas as medidas para que nossos compradores, no momento de comer um bife, saibam tudo o que aconteceu com aquele boi. Existem até clientes que só compram animais com a garantia de que os mesmos viveram uma vida feliz, pastando, sem nunca ter sido confinados”, explica Antunes.

Todo deslocamento do animal é registrado no passaporte. Se há um surto de febre aftosa, por exemplo, é possível identificar em que fazenda o boi nasceu e por que regiões passou, facilitando assim um eventual plano de contenção da doença. Mesmo no caso de animais importados, o brinco de identificação e os passaportes são fabricados aqui, e só depois de o boi ter seus dados inseridos no Sisbov é que esse material é remetido para fora. O boi estrangeiro, com a papelada em dia, pode então desfrutar das coisas boas da nossa terra. Para os compradores europeus, a grande vantagem é que, além da devassa na vida pessoal do animal, o Sisbov ainda atesta que ele está livre do mal da vacalouca, chamado de bse (Encefalopatia Espongiforme Bovina) quando acomete um rebanho e de mal de Creutzfeldt-Jacob quando aparece entre humanos.

Segundo Antunes, pesquisas indicam que, em certos países da Europa, o medo de contrair a síndrome — que ataca as células nervosas do cérebro e progressivamente causa demência e morte — é maior do que o causado pela ameaça do terrorismo. Como o animal que se alimenta exclusivamente de pasto está livre do mal da vaca-louca — a não ser que resolva espontaneamente se vestir de Napoleão — e como na Europa há pouca área de pasto, o bovino brasileiro, quando não está febril, é benquisto e bem falado no exterior.

Antunes trabalha in loco, “com o pé na estrada, a maioria delas cheia de pó e barro”. Sua empresa preenche os dados dos passaportes e ele sai a campo para inspecionar fazendas e frigoríficos e confirmar as informações que vão constar nos documentos. Ele também integra missões que viajam ao exterior para discutir com importadores de carne as novas exigências do mercado. A Planejar, que também comercializa o bo1, um software de gestão de rebanhos, recebe visitas periódicas de fiscais do governo, que auditam a impressão dos passaportes e a estrutura da empresa. Além de ter escrito uma série de livros sobre pecuária, Antunes é autor de uma obra de ficção. Trata-se de um volume de contos intitulado Arqueologia reversa. Não há umboi sequer em suas linhas.

Deixe uma resposta