Tio Sam e a fé pública

Entre outras podres delícias, o Tio Sam exportou para o mundo a crise decorrente das suas hipotecas podres.

Foi a primeira fissura no imaginário ingênuo daqueles que ainda acreditavam, em pleno século XXI, que o que é bom para os EEUU é bom para esta Selva de Papagaios.

Falo do seu sistema registral – com o perdão da expressão – em que tudo parecia ser muito simples,  rápido, eficiente  e econômico. Para muitos dos que atuam no mercado imobiliário tupiniquim, os modelos de securitização e sua base jurídica de segurança estrutural – sistemas de seguros de títulos e registros administrativos – eram tudo de bom.

“Amo tudo isso” – dizia o empolgado colega do crédito imobiliário, entre um Mac e uma taça generosa de café, macaqueando os players da Fannie Mae and Freddie Mac. Para ser moderno basta acreditar nessas entidades  e apostar na roleta de ações.

Pena que tudo isso deu sumiço e ruiu ruidosamente. Tudo muito ruim, seu moço!

Mas pra quem não conhece muito bem o sistema registral, com o abuso da expressão, recomendo a leitura da patética reportagem do Daily News, edição de 2 de dezembro de 2008It took 90 minutes for Daily News to ‘steal’ the Empire State Building.

Inacreditável: venderam o Empire State Building! E com o apoio de um  “notário” – notaram como uma vez mais é preciso metaforizar esta prosa?

Os 102 anos de história testemunharam o simulacro que consumiu alguns poucos minutos – preenchimento de formulários, atuação de notário e pimba! tudo muito simples, rápido, eficiente e econômico.

Pena que nada disso é seguro. Mas afinal, em tempos pós-modernos, em que tudo que é sólido desmancha no ar, em que a realidade é surpreendida por seus arremedos tecnológicos, para que segurança?

Depois de tentar, arriscar e fracassar, tente de novo: game over!

(Vale a pena ler a nota publicada no Último Segundo).

O “The New York Daily News” revela hoje em sua edição impressa como conseguiu obter a titularidade do edifício com a ajuda de documentos e notário falsos.

Segundo o jornal, os responsáveis por este grande golpe só tiveram que preencher papéis falsos e, em menos de 90 minutos, eram o novo proprietário do edifício escalado por King Kong em 1933, por US$ 2 bilhões.

Para dar impressão de realidade à fraude, o “New York Daily News” fingiu ser uma empresa chamada Nelots Properties – nelots é stolen (roubado) ao contrário.

Além disso, na documentação colocou como testemunha da transação o nome de Fay Wray, a atriz que interpretou Ann Darrow, a loira que seduziu King Kong, e como notário o ilustre ladrão de bancos Willie Sutton.

O “golpe” foi dado na segunda-feira passada e, segundo os promotores, buscava demonstrar o perigo de uma brecha legal que existe na regra local pela qual não se requer a intervenção de um funcionário para verificar a informação fornecida neste tipo de transações.

Apesar de ter ficado claro que o roubou não ficaria em segredo por muito tempo, no caso de imóveis mais modestos pode ser que sejam fechadas vendas inclusive sem que o proprietário saiba, como queria denunciar o “New York Daily News”.

O jornal, que não forneceu todos os detalhes da operação para nao facilitá-la, “devolveu” o edifício a seus donos, a empresa Empire State Land Associates, após 24 horas.

O periódico diz que, quando a transferência é aprovada, é fácil conseguir uma hipoteca.

Isso porque “os intermediários, os representantes das companhias, os bancos que fazem empréstimos, os advogados e outras pessoas relacionadas ao processo hipotecário não costumam verificar a identidade e outra informação fornecida pelos usurpadores”.

Em 2007, as denúncias de atividades suspeitas apresentadas por instituições financeiras e relacionadas com empréstimos hipotecários aumentaram em 31% frente ao ano anterior, de acordo com dados do FBI (Polícia federal americana) citados pelo jornal. EFE mgl/db.

18 comentários sobre “Tio Sam e a fé pública

  1. O nosso sistema de apuração de votos é melhor do que o dos EUA, agora se comprova que o nosso sistema de registro também é superior. O fato de um sistema funcionar não significa que funcione bem. E olha que não falamos dos custos e segurança, já que por lá não se garante o direito de propriedade mas tão-somente o direito de indenização.

    Parabéns pela notícia e texto.

  2. Contra fatos não há argumentos. Isso é certo!!
    Contudo, amigos, ainda existem alguns que se prestam a nos atacar sem nos conhecer.
    Vejam o que encontrei no site http://joaofresende.posterous.com/como-funcionam-os-cartorios-nos-eua.
    Felizmente comentei com o SJ que, com toda a propriedade de um verdadeiro mestre em direito imobiliário, deu a resposta na ponta da lança.
    Apesar da crítica ao Sr. João F. Resende, parabenizo-o pela honradez de permitir a publicação do repto.
    Abs

  3. Caros,

    Cheguei a esta discussão via blog do João Resende. Francamente, acho que há um problema aqui.

    Não sou representante dos notários americanos, mas acho que desqualificar o sistema deles com base em uma notícia do tablóide Daily News é um pouco demais. Um blog, como este seu, de um corretor americano esclarece o engodo. Ao contrário do que foi noticiado (e repetido na notícia do Último Segundo) de que “quando a transferência é aprovada, é fácil conseguir uma hipoteca”, outros documentos seriam necessários para o empréstimo. Quem, por exemplo, já teve de comprar um simples celular pós-pago nos EUA, sabe que sem um bom histórico de crédito, vinculado ao Social Security (o CPF deles), não dá para fazer muita coisa.

    O link é esse: http://realestatespace.blogspot.com/2008/12/stealing-empire-state-building.html

    O problema da crise imobiliária está muito longe de ser um problema notarial. Ora, se eu tenho dinheiro para lhe dar um empréstimo, mas deixo de lado o que manda a boa e cautelosa prática de verificar se você um dia poderá me pagar, então a culpa é do credor. Some-se a isso uma complicada operação de negociação desses créditos podres e que acabou por contaminar o sistema financeiro.

    Agora, quem tem até substantivo (grilagem) e verbo (grilar) para designar uma prática fraudulenta envolvendo títulos de propriedade somos nós. Se o sistema deles tem problemas, o nosso também, com a desvantagem de ser mais caro.

    Abraço,
    Rapha

  4. Rapha. Eu devolvo: há um problema aqui. Vamos lá. Não há sistema “notarial” norteamericano. O notariado do tipo latino (i.e., com origem no direito romano) não se afeiçoa ao direito consuetudinário que responde a outra matriz cultural. Enfim, não há base de comparação e os pontos de contato se resumem a uma má interpretação do vocábulo “notário”, apropriado por eles por soar bem o étimo latino.
    A prova de que esses notários não se prestam para muita coisa é o flagelo do identity theft mortgage. Veja o meu post aqui: http://tinyurl.com/nfy75z
    Houvesse a intervenção notarial e essa situação não ocorreria com a mesma intensidade. Por uma razão muito simples: o notário arcaria com a sua responsabilidade pessoal.
    Volto ao tema para não se extenso demais.

  5. Rapha, sobre o problema do subprime, escrevi um post também: http://tinyurl.com/lw8kqq

    Não pense que os credores se aventurariam a conceder um crédito sem garantia. O problema é que o crédito hipotecário americano se armou como uma fabulosa pirâmide, com a securitização dos recebíveis. Este problema não ocorreu em países em que as garantias são firmes, como é o caso dos registros de direitos que existem em países como Alemanha, Áustria, Espanha etc.
    Enfim, falta, ao mercado americano, como se viu, um bom sistema de crédito imobiliário, baseado em publicidade registral.

  6. Sobre grilos, e grilagens, coincidentemente integrei um um GT do CNJ (http://tinyurl.com/kwx8gp) que se debruçou sobre o fenômeno da grilagem no Pará.
    Nós estamos como estavam os australianos no século XIX, antes da famosa emenda de Sir Robert Torrens.
    Os grilos são um fenômeno de conquista de amplas áreas inóspitas, como é o caso da amazônia legal e era no sertão brasileiro no século XIX. Tudo isto se resolve, a seu tempo, com um bom sistema de definição e publicidade de direitos. Vale dizer: de um bom sistema registral.
    Grilo, mesmo, é o noticiado aqui: http://tinyurl.com/2d6cn7

  7. Last, but not least, li seus lampejos no twitter. Não me incomodo com as críticas. Nem acho que qualquer cartorário que se preze estará muito preocupado com estas irrelevâncias. Longe disso. Nem mesmo estou a defender “a classe” notarial e registral. Meus objetivos são mais modestos. Responder honesta e lealmente às suas questões. Abraços, SJ

  8. Caro Sérgio,

    Gostei muito das respostas. Infelizmente, nem todos os registradores tem a sua formação.

    Mas, vamos lá. Quanto ao roubo de identidades, honestamente não acho que seria um sistema mais parecido com o brasileiro que iria resolver o problema por aqui. O fato é que as empresas americanas estão acostumadas (porque isso é permitido pela lei) a passar informações sobre seus clientes umas para as outras. Em um país liberal, onde a privacidade deveria ser respeitada, isso acaba virando um problemão.

    Como se isso fosse pouco, o Social Security tem falhas, como apontou o NY Times: http://www.nytimes.com/2009/07/07/us/07numbers.html

    Acho que não estamos livres desse tipo de coisa no Brasil. É algo que tende a aumentar com o avanço da informática, das redes de relacionamento e das informações pessoais que acabam caindo na esfera pública.

    Quanto ao subprime, bem, a coisa é complexa. Fica difícil mesmo comparar, ainda mais países que tem um sistema financeiro tão diferente. Como você sabe, um americano que ganhe US$ 1.000, vive como se ganhasse (ao menos antes da crise) US$ 5.000. Tudo aqui funciona em torno dos empréstimos, hipotecas e por aí vai. Algo que não tem semelhante em país nenhum do mundo. O registro mais rigoroso evitaria tais danos? hum, não sei. Fico pensando em um caso que talvez sirva de paralelo: a Enron. Normas contábeis havia, auditoria havia, mas faltou a boa-fé de quem deveria fiscalizar.

    Em relação à grilagem, acho que você está certo, felizmente.

    Se me permite, ainda acho que o reconhecimento de firma, dá forma que se dá no Brasil, não é algo que garante muita coisa. O registro? bom, você está certo, é algo cultural, temos essa raiz no direito Romano etc. Mas ainda acho que deveria ser mais barato.

    Quanto aos lampejos, me desculpe. Acho que seu blog é um excelente espaço para discussão para um tema relevante para o país.

    E quanto à certificação digital? aposto que você já escreveu alguma coisa sobre isso. Tem o link?

    Abraço,
    Rapha

  9. Caro Rapha,
    vamos pôr um ponto na discussão. Como bom samaritano, respondo em minha casa e o deixo à vontade para emendar.
    1) Os registradores concursados representam uma nova cepa de profissionais engajados na causa pública. Fenômeno que já ocorre entre nós – e é comum, p. ex., na espanha – estes profissionais representam a crème de la crème da comunidade jurídica. V. os encontrará brazilsão afora.
    2) Furto de identidade. O reconhecimento de firmas é uma invenção antiquíssima e é genial. Com um valor ínfimo (US$ 2.51 + impostos) por reconhecimento presencial v. obtém uma apólice perene de seguro sacada contra o tabelião que o protege contra as possíveis fraudes. Simples assim. Veja uma entrevista que fiz com o defensor público de SP Luiz Rascovski a partir de uma entrevista ao Jornal Nacional: http://tinyurl.com/ns2rd8
    A entrevista aqui: http://tinyurl.com/nczcr9
    Teria muito mais a dizer, mas acho que o tema é sacal demais para v.
    3) As fraudes aqui não ocorrem com a mesma intensidade e tendem a diminuir dramaticamente com o certificado digital. Volto ao tema no final.

  10. 4) Subprime. O sistema do crédito imobiliário brasileiro deu uma enorme, imensa, demonstração de vitalidade, segurança e robustez. Com um bom sistema hipotecário, se armou, desde o início, com bons princípios. Tudo se originou do gênio de José Thomaz Nabuco de Araújo, que moldou o nosso sistema hipotecário de forma irretocável em 1864. Deixemos o subprime de lado, que é fenômeno multifatorial e demandaria um desenvolvimento mais detido. Fiquemos com a simples idéia de que, na base da securitização, havia a fragilidade da corrente representada pelo elo mais frágil. Com base em sofisticadas teorias estatísticas, o risco era diluído nas operações em escala. Mas… a sépsis se instalou com o ambiente de crise econômica e o que era um ponto a ser diluído, rapidamente se multiplicou e contaminou o corpo. No BR isto não ocorreria e eu posso lhe dizer o porquê em outra oportunidade.

  11. 5) Certificação. Escrevi sim, preciso buscar em outros sites. Fui membro efetivo do COTEC – Comitê Técnico da ICP-Brasil durante um bom par de anos (http://tinyurl.com/mpbo9a) e escrevi muito sobre o tema. Além disso, sou um dos coordenadores do sistema penhora online do TJSP (http://arisp.com.br/). Vou dar uma aula em Coimbra sobre o tema dos certificados digitais e registros eletrônicos. Envio-lhe uma cópia do PPT quando estiver pronto. No blog haverá uma dezena de posts tratando do tema. Gostaria de poder discutir algum tema específico?

  12. Rapha, valeu. Obrigado pela oportunidade. Fiquei tentado a dar uns pitacos no tema das cotas, que li com muito proveito em seu blogue Quem sabe? Deixe-me refletir sobre as suas inteligentes e bem articuladas considerações. Acabava sempre considerando que as posições do Magnoli eram superiores. Da perspectiva política, numa complexa sociedade multiétnica e multicultural, a questão ganha contornos iinéditos e já não calha nos estereótipos reducionistas representados por argumentos raciais. Deixe-me refletir um pouco e posto algo em http://tinyurl.com/l59qw8.

  13. Caro Sérigo,

    Last, but not least, as you like to say…

    Permite-me uma sugestão de “post” para seu blog? Seria interessante mostrar uma comparação entre os custos para o registro de imóveis cobrados no Brasil com o desses países que tem um sistema parecido com o nosso ou mais avançado (os que você citou como Espanha, Alemanha, Áustria ou outros). Fiquei curioso e acredito que seria uma informação relevante para os cidadãos em geral. Qual o percentual do valor da propriedade nesses países é cobrado? Só mesmo quem entende do assunto, como você, para trazer isso para nós.

    Forte abraço,
    Rapha

  14. Há que distinguir as questões em discussão. A essencialidade da atividade registral e a sua importância é um tema distinto daquele do preço de seus serviços.

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