Subprime. Isso lembra alguma coisa?

O JT do dia 23 de fevereiro de 2009 (Caderno de economia) traz inquietante nota sobre a bossa nova que empolga a moçada e encanta corações e mentes palacianos: os  recursos públicos destinados à moradia vão ser despejados sem garantias reais. Bastará, para se obter um financiamento imobiliário, uma “declaração de propriedade” a ser fornecida pela administração pública.

Não vai funcionar.

O Brasil se manteve firme, singrando o mar proceloso da crise das hipotecas podres, com o seu mercado interno de crédito imobiliário hígido em virtude de uma consistente estratégia de segurança jurídica, proporcionada por um sistema registral reconhecidamente eficiente.

Quer dizer, então, que vamos fazer a dispensação dos recursos públicos com as parcas garantias oferecidas por meras declarações fornecidas pelas administrações estaduais ou municipais? O município vai fornecer uma certidão de propriedade ou posse? Tal declaração servirá de garantia ao financiamento? Essa mesma administração pública, que não tem atualizado o seu inventário patrimonial? que luta contra a usurpação dos bens públicos dispendendo uma energia preciosa justamente porque não soube registrar os seus bens?

Não vai funcionar.

Melhor seria conceder o financiamento sem maiores burocracias, porque é disso que se trata – burocracia estatal que brinda a ineficiência e faz homenagem à falta de visão e estratégia econômico-política. 

Parece que a equipe de governo não tem a mínima idéia de como funcionam as coisas e vai, como diria o poeta, como um “porco às fucinhadas”, derrubando os obstáculos que não são mais do que mecanismos de segurança jurídica que protegem tanto o pequeno adquirente e prestamista, quanto o terceiro financiador e o próprio Estado. 

Não vai dar certo.

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A propriedade é pop!

caribeamulatagrandeiiiBranca é branca, preta é preta. Mas a mulata é a tal, é a tal!

Braguinha nos dá o mote da resposta ao amigo Edésio Fernandes – que me comenta a palestra do professor Benito Arruñada, proferida em Cambridge, no lançamento do livro: Property Rights, Titling and Registration: an international perspective.

Dizia ao amigo que Benito, em sua larga (e respeitada) atividade acadêmica, não se concentra fundamentalmente no conteúdo dos direitos; antes, o professor se especializou em estudar a infra-estrutura, os processos e as transações econômicas envolvendo a criação e o exercício dos direitos de propriedade, ciente de que todo instrumento jurídico, posto a serviço da bindagem de direitos, representa um meio, não um fim considerado em si mesmo. A garantia dos direitos – sejam eles quais forem ou de que natureza se revistam – se robustece com mecanismos como os proporcionados por modernos e eficientes sistemas registrais.

Edésio identifica – corretamente, por sinal – que o registro servirá essencialmente “para dar segurança aos proprietários”. Considerar que qualquer damage to a property rights seja um fato consensual pode sinalizar que “o Registro só existe para garantir eficiência de hipotecas em relações individuais de private contracting”.

De fato, o Registro nasce de uma excepcional circunstância que cerca esse direito real que é a hipoteca. No caso especialíssimo da hipoteca, o devedor não se desveste da posse direta e, de fato, torna-se quase impossível identificar e perceber a existência de um direito que, para seu efetivo exercício, prescinde da posse e da visibilidade que sempre a acompanha e manifesta. Era necessário inventar o Registro. E o gênio oriental o concebeu, como demonstram as pesquisas históricas.

Rafael Nuñez Lagos, com sua verve crítica e criativa, dirá que a hipoteca, como direito real, “es el fallo absoluto de la posesión como sistema inmobiliario sin Registro”. Sem o Registro não seria possível a definição e graduação dos direitos que decorrem da natureza da hipoteca, nomeadamente a preferência: prior in tempore, potior in iure. Aliás, por fenômeno de antonomásia o mecanismo de publicidade desses diritos é chamado justamente de Registro Hipotecário.

Parece bastante razoável, portanto, que se pense no Registro no ambiente de private contracting, pois é nesse sistema jurídico-político que o Registro nasce e se desenvolve. 

Questiona-me Edésio: “o que fazer, então, com tudo o que, decorrendo não de contratos individuais, mas do contrato social entre Estado e Sociedade, não implica dano para o direito de propriedade, mas na verdade o define, lhe dá conteúdo?”.

Se bem entendi a crítica, o Registro, visto de uma perspectiva exclusivamente privatista, não se mostraria adequado para tutelar esses direitos que nascem de um novo pacto social, envolvendo o Estado e a Sociedade. Os direitos de propriedade, – melhor dizendo, os conteúdos desses direitos -, que nascem a partir de um novo paradigma do direito de propriedade nas sociedades pós-modernas, não encontram repouso, nem necessitam dos mecanismos do Registro para se expressarem e se tornarem eficazes.

Num Estado democrático de Direito, a mutação jurídica no estatuto da propriedade se dá por força de conhecidos mecanismos legais – expropriação, usucapião, arrecadação etc. Não representa qualquer dificuldade considerar que existam tantas propriedades quantas a experiência contemporânea cria – a propriedade rural, a propriedade familiar, a propriedade urbana, familiar, pública, etc.

Mas o interessante na proposta de Benito Arruñada é justamente que os direitos concedidos pelo Estado sofrem, igualmente, o perigo de damage, já que, mesmo o DRU- Direito real de uso, por exemplo, visto com a devida atenção, não deixa de representar uma emanação do direito arquetípico de propriedade, com o sentido amplíssimo que a expressão vem ganhando contemporaneamente. Esse direito será “titularizado” pelo ocupante, portanto será um título registrável, nos termos da lei (art. 167, I, 40 da Lei 6.015, de 1973 c.c. art. 7o do Decreto-Lei 271, de 28 de fevereiro de 1967) e por essa razão, poderá ser oponível a terceiros e ao próprio Estado.

O registro se torna necessário em virtude do potencial perigo de dano aos direitos alcançados. O Registro existe, fundamentalmente, para definir direitos e prevenir conflitos e não por outra razão, o legislador previu o seu ingresso nas tábulas.

O titular poderá usar, gozar, fruir e abusar da coisa – como o fará, em menor grau, o usufrutário, por exemplo, que só não poderá consumir a substancia da coisa. Além disso, ele tem ação contra quem possa estorvá-lo de exercitar em pleno seus direitos. No caso do DRU, o titular pode dispor do bem e dos direitos que o informam.

O direito de abusar (jus abutendi) é mal compreendido, pois o sentido essencial do termo aponta para a idéia de consumação da coisa, isto é, o titular tem o direito de a usar, fruir, até a consumação do objeto. O direito de propriedade sobre uma banana se exerce até a sua consumação natural. Essa é a primeira e original concepção do termo abutendi em sua forma de genitivo do gerúndio do verbo abuti

Damage of property rights… O DRU (fiquemos no exemplo) é expropriável judicialmente já que pode  (deve, pela lei, ora a lei!) ser oferecido como garantia real (art. 48, II, do Estatuto da Cidade). O titular desse direito tem o socorro das possessórias, de excluir da relação com a coisa todo aquele que não seja, como ele, titular de tais ou quais ou de quaisquer outros direitos reais. Tem a disponibilidade e pode alienar, dar em usufruto, deixar em legado, exercitar seu direito contra o próprio Estado…

Chamem-no como se queira – direito com eficácia real, direito real administrativo, direito urbanístico de habitação social… na indistinção, indeterminação e mobilidade que os conceitos jurídicos experimentam no século da geléia geral. A idéia de realidade engasta-se na tradição privatística com o imperfeito sequestro de sentidos e o Registro segue emprestando seu apoio fundamental à tutela desses direitos.

Desde Stefano Rodotà, com seu terribile diritto, e mesmo antes, se pensarmos na privatística italiana e francesa, a propriedade privada já não é a tal.

Propriedade-mulata! – eis nossa original contribuição. Sob seu poderoso signo se acham ataviados os ícones pop desta propriedade contemporânea.

Então, meu caro Edésio, a propriedade é pop e o Registro é a sua perfeita tradução!

Põe na conta da viúva, que a viúva é rica!

bananasO Festival DeGePê – Dispensário de Gratuidades Plenárias de Brasília, prossegue o seu cortejo alegre e prazenteiro, desfilando pelo conjunto monumental da Capital Federal com seus cabroches legisferantes. Numa cesta dadivosa, levada por mulatas inzoneiras, deposita-se o resultado do trabalho alheio. Tudo é livre, leve e solto nesta República de Bananas.

Somos uma sociedade maravilhosa aos olhos do mundo: acreditamos no almoço grátis, na riqueza sem trabalho, na recompensa sem compensação, na malemolência como afirmação cultural de nosso caiporismo.

– “É que ainda não nos acostumamos às regras da civilização”, diz o Dr. Ermitânio Prado, advogado aposentado e leitor compulsivo de biografias ilustres. E segue predicando o velho em sua rabugice empedernida:

– “Vivemos ainda num mundo mágico, pré-capitalista, em que os mitos da floresta foram substituídos pela ideologia e pelo sincretismo. Os deuses dançam e nos absolvem! Metaforizamos a ética protestante e carnavalizamos a burocracia…”.

– “E o povo, Dr. Ermitânio, e o povo não é feliz?”, perguntei-lhe maliciosamente.

– “O povo? Ora, o povo… Trata-se simplesmente de uma horda imbecilizada que morre atropelada nas ruas empoeiradas e esfumaçadas. Ou assassinada por qualquer motivo fútil. As nações desenvolvidas geram idéias; nós desovamos na Baixada Fluminense!”

Resolvo deixá-lo a sós. Dr. Ermitânio tem se aborrecido enormemente com a fieira inesgotável de gratuidades que se espraiam pela atividade notarial e registral, necrosando o tecido corporativo. Nos ensina que estamos violentando um direito natural, aquele, como ele diz, “de expectar, nas trocas, a aferição do peso de duas coisas, que em termos de física se equivalem – trabalho e energia”. Pontifica no seu latinório afiado: compensação é pensare cum, pensare rem aliquam cum aliqua. Excogita que a expressão aponta para a idéia de compensação, “pesar na balança uma coisa com a outra para ver se o peso é igual”, como diria o grande Carvalho Santos. O velho Carvalho Santos… 

Nossa riqueza se manifesta no mundo como os fenômenos de Jung: epifania acausal. Bolas de um bilhar absurdo que são encaçapadas misteriosamente. Decretamos que abaixo da linha do Equador já não precisamos criar riquezas. Elas dão em pencas, como bananas. Nem de trabalho – essa invenção das sociedades desiguais.

Tudo isto porque o Dr. Ermitânio leu o PLS 34/2009, que visa atribuir valor módico às custas dos emolumentos cobrados pelo serviço notarial.

Deixemos o Dr. Ermitânio tranquilo. Agora cochila e sonha como um menino.

Notários, registradores e poetas

Murilo Mendes, notário e filho de registrador?
Murilo Mendes, notário e filho de registrador?

O notário paulista Marco Antonio Greco Bortz foi o porta-voz de um convite lisonjeiro para integrar o Conselho Editorial de uma publicação a cargo do Colégio Notarial do Brasil. O convite me foi formulado pelo CNB, Seção de São Paulo, por seu Presidente, o notário  Ubiratan Pereira Guimarães.

O convite me colhe de surpresa. Apesar de ter percorrido uma larga carreira  nos Registros Públicos bandeirantes, nunca deixei de apreciar os caminhos, verdadeiramente impressionantes, da formação da língua portuguesa e do desenvolvimento do notariado português e brasileiro, fatos que guardam uma estreita e insuspeita relação. 

Acha-se muito além de minhas forças e ultrapassa as modestas capacidades deste amanuense dar a lume um robusto estudo sobre ambos os temas, desentranhando o fio que favoreça uma noção mais exata da importância da lavra tabelioa para a cultura pátria. Contento-me a indicar algumas pistas, formular algumas hipóteses para ulterior pesquisa. Na verdade, delicio-me em transpirar parte das minhas leituras erráticas neste estimulante jogo de dados com a história.

Domingo é dia de descanso e de leitura. É dia do Senhor. Gostaria de recomendar Murilo Mendes, o poeta e cronista católico que integra a constelação da segunda geração de modernistas – ao lado de Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meirelles, Vinícius de Moraes, dentre outros.

Além de poeta, Murilo Mendes foi excelente cronista. Um poeta que lavrou, com uma pena delicada, as mais belas páginas de uma prosa elegante e precisa.

Tenho uma especial predileção pelos cronistas. O verdadeiro cronista apanha, com a rara sensibilidade do poeta que se arma e guarda dentro de si, pequenos traços do cotidiano e nos desvela um mundo rico de detalhes os quais, embrutecidos que nos encontramos pela palavra dura, se nos escapam como o lusco-fusco de uma tarde radiosa. A poesia se desvanece como pensamentos lavados por um grande rio… 

Nunca deixo de me lembrar do grande cronista que é o registrador de Araraquara, João Baptista Galhardo, que nos brindou o ano passado com o seu delicioso O vendedor de camomila (São Paulo:  Zerocriativa, 2008, 404 p.). Aliás, sobre João Galhardo e sua prosa irresistível, encardida de uma humanidade tocante, estou devendo um post mais estendido, o que me proponho a realizar pelos estreitos vínculos afetivos que me ligam ao grande registrador araraquarense. Falar de João Baptista é dar um testemunho pessoal sobre este ser humano gigantesco, que mais avulta quando conhecemos sua verdadeira natureza humilde e sábia.  

Voltando a Murilo, depois de muitos anos fechado sobre si mesmo, neste domingo chuvoso cai-me, novamente, às mãos, o seu livro de memórias A idade do serrote.

É um livro que se abre delicadamente ao coração do leitor. 

Antônio Cândido dirá com acerto que neste livro “a prosa tem um ímpeto de tal maneira transfigurador, que nós nos sentimos dentro da poesia, como um primeiro fator que alarga o restrito elemento particular da recordação pessoal”. (CANDIDO, Antonio. A educação pela noite & outros ensaios. São Paulo: Ática, 1987, p. 57). E emenda:

talvez Murilo Mendes seja o poeta mais radicalmente poeta da literatura brasileira, na medida em que praticamente nunca escreveu senão poesia, mesmo quando escrevia sob aparência de prosa. A sua capacidade de reflexão e debate era grande, mas ele a exerceu sempre de modo poético […]. (id. ib.).

Sobre Murilo, dediquei algumas crônicas: Murilando o indizível e Murilo Mendes – ora pro nobis!. Sempre o soube poeta, mesmo quando me deliciava com suas crônicas.

Murilo Mendes, notário?

Mendes, notário? O pai, registrador? Vejamos com mais cuidado.

Murilo Mendes devota ao pai um carinho que é devidamente registrado em A idade do serrote

Meu pai, grande coração comunicante. Servidor público. Do próximo. Escrivão do registro de títulos e hipotecas da cidade de Juiz de Fora. (IS, p. 24).

Um pai que é amado por ele e carinhosamente respeitado pela comunidade. Tocante é a crônica que lhe dedica nas derradeiras páginas de seu livro autobiográfico. Na crônica – Meu pai -, dirá ser o escrivão do registro de títulos e hipotecas um “admirável calígrafo e epistológrafo”. Ao final de uma larga trajetória, encontrará em si o pai que lhe descobriu o “olho precoce”. Os fios da vida se reatam num diálogo perene.

 Talvez estes sejam os traços marcantes de uma personalidade que se apurou pela escritura registral. “Ouvindo-o nunca reparei que lhe faltava o canudo de doutor”, dirá ainda, confirmando que os verdadeiros notários, escrivães, registradores, tabeliães, se formam pela prática diuturna de sua escrita infinita e não pelas escadarias ligeiras e custosas dos vestibulares concursais.

O pranteado pai, Onofre Mendes, como Murilo diz, terá sido o “escrivão” do Registro Hipotecário juizforano. A conferir com o registrador local. Em todo o caso, deparamo-nos com uma terminologia que não guarda estrita correspondência com a qualificação legal do profissional encarregado desse nobile officium tabelião especial do registro (Regulamento de 1846) e oficial do registro, após a reforma de Nabuco. Não passamos, tanto quanto saiba, pelo “escrivão hipotecário” – salvo na atividade que pode ser considerada tributária das Ordenações, onde há a conjugação da escrivania do judicial com o tabeliado. Terá sido, portanto, escrivão anexo do Registro Geral.

Por outro lado, a biografia de Murilo Mendes, confiada à autoridade de Alfredo Bosi, traz a interessante passagem  de ter ele sido notário em “seus melhores dias”. Um poeta guarda-livros e notário, portanto:

Foi sempre um homem inquieto passando por atividades díspares: auxiliar de guarda-livros, prático de dentista, telegrafista aprendiz e, em melhores dias, notário e Inspetor Geral de Ensino. (BOSI. A. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, p. 446).

Essas indicações, que podem ser hauridas de A idade do serrote – à exceção da informação acerca de sua atuação como notário – merecem uma investigação aprofundada. Suspeito que aqui devesse ser grafado escrivão, no sentido das Ordenações. A verificar.

Murilo Mendes foi um grande poeta. Escreveu crônicas como só um verdadeiro poeta faria; amou como poeta. Viveu como poeta e resiste ao tempo e à irrelevância em seus livros imorredouros. Terá sido um escrivão atento, aliviando dos formulários tabeliados e judiciários a humanidade que pulsa densa, viva, intensa, como sempre versificou, para a sorte de seus inúmeros e eternos leitores.

Ângelo Volpi e a burocracia nos cartórios

Estava terminando de redigir a postagem abaixo quando tive o gosto de ler o artigo do notário Ângelo Volpi, veiculado no Jornal Gazeta do Povo, do Paraná.

O notário paranaense  dedicou-se, em editorial, a atacar o que chama de falácia nos debates acerca da burocracia dos cartórios. Diz:

Uma falácia bastante difundida é que reconhecimento de firma e cartório só existem no Brasil. Pois saibam, caros leitores, que é raríssimo encontrar um país onde não exista a profissão do tabelião de notas e consequentemente o reconhecimento de assinaturas.

Volpi tocou num ponto fundamental – que a mim parece ser o limite à administração pública: a atividade notarial e registral está modelada e concebida para atender aos interesses privados. Nesta perspectiva, não caberia ao Estado embaraçar ou limitar o âmbito de atuação dos particulares na consumação de seus interesses. Se a Administração pretende desonerar o cidadão, que o faça, sem que, contudo, o impeça de realizar, de modo diverso, seus interesses. O reconhecimento de firmas é o melhor exemplo.

Essa discussão me faz lembrar outra, recidiva de uma mesma matriz político-corporativa: a intentona de se extirpar a atuação notarial da trama jurídico-privada, substituindo esse profissional por delegados de polícia e advogados. Vale a pena ver de novo.

Volpi igualmente nos lembrará o exemplo dos Detrans. Em tudo somos concordes, apesar de não ser, como ele, notário de profissão.

Isso, contudo, não me impede de falar sobre essa maravilhosa profissão que nasceu como perfeita criação do gênio romano, influído, em seu desenvolvimento, pelas profundas raízes orientais, representada pela cultura grega, e antes dela, pela egípcia.

Um dia retorno com informações sobre as origens da escritura, na antiga Suméria, e sobre notários.

Até lá recomendo a leitura de artigo de lavra do grande notário Ângelo Volpi na Gazeta do Povo, edição de 8/2/2009.

Cautela contra azurra de onagros

Conselho Marcelo Nobre - CNJ
Conselheiro Marcelo Nobre - CNJ

O CNJ, por alguns de seus membros, considera um avanço a implementação de medidas contra a burocracia, que estão sendo gestadas no âmbito do Executivo Federal. A manchete da nota, publicada pelo CNJ, dá o tom do Colegiado: conselheiros recomendam cautela para a desburocratização

A cautela é bem-vinda, necessária e calha muito bem num colegiado com enormes responsabilidades a ele cometidas. 

É preciso ver, contudo, que a chamada “burocracia” dos cartórios – e seus reconhecimentos de firmas, registros públicos, lavraturas de atos notariais, etc. – pode representar um bem valiosíssimo para a sociedade brasileira, contribuindo para a segurança jurídica e para a profilaxia do tráfico jurídico-privado.

Não é tolerável que, à guisa de modernizar o sistema, aliviando-o da carga burocrática desnecessária, acabemos por decretar o fim dos serviços notariais e registrais. 

Tenho insistido aqui neste cantinho da Internet que os cartórios contribuem fundamentalmente para reduzir, a níveis administráveis, o problema relacionado com as fraudes na contratação privada. Vimos, aqui mesmo, o grave problema enfrentado atualmente pela sociedade norte-americana com o “roubo de casas” que se consuma pela prática do crime of identity theft – favorecido pela falta da intermediação de um profissional como o notário. Um simples reconhecimento de firma autêntico poderia limitar o fenômeno que, aliás, não ocorre aqui como acolá. Não resisto à paráfrase: é que as aves de rapina que lá gorjeiam, não gorjeiam cá. 

A Comissão Federal de Comércio (Federal Trade Commission, FTC), agência nacional de proteção dos consumidores, faz uma advertência alarmante: a cada ano milhões de pessoas são vítimas do chamado “furto de identidade”. Desconsoladamente reconhece: não existe uma maneira infalível de se evitar a prática fraudulenta.

Vocês já se perguntaram o porquê de não padecermos deste mal no Brasil? Por que o reconhecimento de firma, apesar de sofrer um violento cerco histórico, visando à sua extirpação higiênica do corpo legal, ainda sobrevive hígido e com renovado vigor? Trata-se, mesmo, de uma burocracia desnecessária?

Imaginemos uma situação típica. Você vai peticionar em alguma repartição pública – digamos o DETRAN. Dispensada que seja a “burocracia desnecessária” do reconhecimento de firma, você é obrigado a comparecer ao órgão público pessoalmente, apresentar-se para que o funcionário de plantão o possa identificar e, de corpo presente, apresentar seus documentos pessoais para autenticação.

A isto se entende por “facilitar a vida do cidadão”?

Não seria mais prático, barato e cômodo que o cidadão pudesse simplesmente servir-se de centenas de serviços notariais disponíveis na cidade e ter a sua firma reconhecida? O Estado lhe vai impedir de facilitar a própria vida?

A cidade de São Paulo se tornou inóspita. A megalópole nos abate de maneira inconsolável. Estas nervuras necrosadas nos aniquilam. Ter que enfrentar o trânsito caótico, vencer filas e ultrapassar obstáculos como senhas, camelôs, assaltantes, mad dogs e ainda pagar pelo estacionamento que lhe vai custar o olho da cara e que, de quebra lhe vai torrar o assento do auto ao sol… A isso se chama “desburocratização”?

O pior será manter uma interlocução com barnabés despreparados e, suma disciplina, manter a mente quieta, a espinha ereta e o coração tranquilo… Não seria muito mais fácil ser dispensado de comparecer pessoalmente para firmar papéis ou apresentar documentos?

Ainda que se pense que podemos (e devemos) construir uma burocracia estatal de corte islandês, ainda assim, convenhamos, o cidadão não deveria ser obrigado a peregrinar instâncias estatais para tratar de seus interesses.

Reconhecimento de firmas… Este cálculo singelo o brasileiro comum faz. E não me venham dizer que o brasileiro médio é estúpido por não querer enfrentar o inferno burocrático do Estado com… reconhecimento de firmas e autenticação de documentos! Preconceito sestroso e indireto.

Diz a nota do CNJ que “uma das medidas dispensa o reconhecimento de firma em qualquer documento produzido no Brasil, quando assinado na frente do servidor público”. Santo Deus! Será que o preconceito não os deixa ver? Na frente do funcionário público? Não estimamos que em breve a frente do funcionário público será um terminal? E que o certificado digital vai substituir a caneta e a face real do signatário?

Mas por sorte o CNJ é plural e, pelo visto, não se acha seduzido pelo discurso preconceituoso e diversionista. O conselheiro Marcelo Nobre está absolutamente correto ao recomendar cautela. O uso e abuso de uma tópica surrada – “abaixo a burocracia!” – pode representar um reducionismo obtuso. Todos somos contra a burocracia inútil – como somos contra a doença, a violência, a morte, a burrice…

Diz Nobre: “nós precisamos ter uma cautela muito grande para sabermos quais os casos em que podemos abrir mão dessa segurança e quais os casos em que não”. Claro como a água, Conselheiro, claro como a água!

Será verdadeiramente difícil, pelo que se vê, vencer não a burocracia – que é sempre necessária quando representa uma medida preventiva de litígios e fraudes -, mas domar corações selvagens e mentes confusas que se acham colonizados por um surrado preconceito.

E durma-se com esta azurra de onagros!

Fraudes imobiliárias, cartórios & burocracia

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FBI - House stealing

Por falar em falta de transparência no mercado imobiliário norte-americano, uma nova espécie de fraude campeia por aquelas plagas: identity theft mortgage – algo como subtração de identidade pessoal e hipoteca, ou simplesmente roubo de casas.

A situação chegou a um nível alarmante e o próprio FBI – Federal Bureau of Investigation cuidou de divulgar, em seu site, um alerta, fornecendo indicações de como o negócio funciona – e muito bem  – naquele país, acautelando e informando os cidadãos norte-americanos.

Basicamente, o estelionatário escolhe uma casa – casa de campo, veraneio, alugada etc. Em seguida, assume a identidade do proprietário, colhendo informações pessoais na internet e em cadastros que, nos EEUU, são encontrados e adquiridos sem maiores cuidados e sem o mínimo respeito aos direitos de privacidade. De posse desses dados, transferem a propriedade para o seu próprio nome, firmando contratos de hipoteca ou assumindo outros compromissos oferecendo a propriedade como garantia.

O modelo básico e suas variações podem ser conhecidas no quadro ao lado.

A questão central que o problema coloca é simplesmente a falta de um bom e seguro Sistema Registral naquele país.

Segundo Enrique Brancós Núñez, em artigo assinado no El País de 4 de janeiro de 2009,  as vítimas são pessoas de certa idade, abonadas, que têm o imóvel livre e desembaraçado de ônus ou direitos reais de garantia. São pessoas que não estão atentas às novas modalidades de fraudes, que ocorrem, em grande parte, com apoio na Grande Rede Mundial. 

Os fraudadores se apresentam como possível compradores, ou como simples corretores imobiliários, perguntam sobre o imóvel, obtendo os dados pessoais do proprietários. E segue Núñez:

A partir de ahí, una doble vía. Generalmente solicitan un préstamo hipotecario y, como el sistema es tan ágil y poco formalista, tras la correspondiente solicitud, a veces simplemente por Internet, formalizan un préstamo hipotecario que naturalmente cobran para después desaparecer. En otras ocasiones venden simple y llanamente la finca. O combinan las dos fórmulas anteriores. Aprovechando que para cambiar el propietario en el registro de la propiedad no se exige escritura pública, falsifican un modelo de contrato de venta de inmuebles y se inscriben como dueños para poder formalizar una o varias hipotecas y embolsarse su importe.

Caberia acrescentar que o sistema além de pouco formal, é ágil, barato e fundamentalmente… inseguro! O fenômeno das fraudes em massa acarretam a irradiação, para toda a sociedade, dos ônus e dos custos, que não são de pequena monta, decorrentes do grande colapso dos títulos podres. A bolha do subprime colhe-nos a todos, sejamos ou não cidadãos daquele impressionante país.

Caberia anotar, igualmente, que os registros norte-americanos não são como os cartórios brasileiros ou registros prediais que encontramos em várias partes do mundo. Os cartórios brasileiros, plasmados pelo gênio de Nabuco de Araújo no século XIX, resolveram  historicamente o problema das fraudes como as que hoje ocorrem no grande país do norte.

Nos EEUU os registros são agências que recolhem as declarações que são preenchidas em formulários na internet e sufragam os dados em seus sistemas, sem que haja uma prévia qualificação do título em seus vários aspectos. A venda fraudulenta do Empire Estate Building foi exemplar. Desde a originação do crédito, cada uma das etapas sucessivas cria instâncias rentáveis, verdadeiras oportunidades de negócios, repassando para a seguinte os riscos de um sistema defeituoso pela base. Não poderia dar em outra coisa que não o colapso do sistema.

O resultado todos nós vimos: uma enorme bolha que colhe a economia mundial no contrapé e faz balançar todo o sistema.

Como se vê, existe uma burocracia saneadora do merecado imobiliário e ela atende pelo nome de Registro de Imóveis e Notários.

Subprime, notários e registradores

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Robert J. Shiller

Um livro muito comentado – The subprime solution: How today’s global financial crisis happened, and what to do about it, do Prof. norte-americano, Robert J. Shiller (Universidade de Yale e Princeton), traz interessante nota que deve ser conhecida e avaliada pelos notários brasileiros e por todos aqueles que pretendem colaborar para o aperfeiçoamento das instituições jurídicas pátrias.

Segundo o professor, os notários poderiam ter emprestado uma importante colaboração para que se evitasse o problema das hipotecas podres dos EEUU. 

Segundo o prestigiado professor de Yale,

Another possible default option would be a requirement that every mortgage borrower have the assistance of a professional akin to a civil law notary. Such notaries practice in many countries, although not in the United States. In Germany, for example, the civil law notary is a trained legal professional who reads aloud and interprets the contract and provides legal advice to both parties before witnessing their signatures. Th is approach particularly benefits those who fail to obtain competent and objective legal advice. The participation of such a government-appointed figure in the mortgage lending process would make it more difficult for unscrupulous mortgage lenders to steer their clients toward sympathetic lawyers, who would not adequately warn the clients of the dangers they could be facing.. (Op. cit. Princeton: Princeton University Press, 2008, cap.  6, The Promise of Financial Democracy, p. 130).

Suspeito que a atividade notarial, de fato, poderia ter evitado alguns dos problemas que estão na raiz do fenômeno das hipotecas podres e do crédito subprime, mas não todos.

Acho que o problema não foi tanto de aconselhamento jurídico, nem da atuação e assessoria personalizada do notário, como de expansão de um fenômeno que pode ser perfeitamente considerado como uma irresistível bolha econômica.

A pulverização de riscos, que as sofisticadas equações econômico-financeiras prometiam, acabaram criando o colapso do próprio  sistema. Na raiz do problema, não se achava a falta de informação para atuação dos mais variados players do mercado. Simplesmente, ninguém acreditava na queda dos preços dos imóveis. Não se tratou de falta de informação; houve uma falsa interpretação do comportamento do mercado imobiliário.

Aliás, é essa a opinião de Ian Ayres, na coluna Freakonomics, no The New York Times (edição de 14.10.2008):

I’m skeptical about Shiller’s claim that the ultimate buyers lacked sufficient information or the sophistication to understand the data. Or even if they did, this is not an error they are likely to make again. Once bitten, twice shy.

They will demand, and originators will have incentives to offer, additional information. There might be a role for government in mandating standardized reporting so that comparisons can be more easily made; but I think it’s more likely that mortgage buyers simply underestimated the likelihood of a fall in real estate prices.

This is a failure of interpretation, not really a lack of data about the particular mortgages. (It’s also a reason that I’m skeptical of providing borrower advice. Apparently, Shiller would not have wanted Alan Greenspan and Paul Krugman to give financial advice because they underplayed the risk of a housing bubble. But where would the army of unbiased advisers come from in a world where, by assumption, we are caught in a bubble mentality?)

No Brasil as coisas se passam de outra maneira. Porquê?

Muito singelamente, aqui tínhamos, além do instrumento particular – e contando muito eventualmente com a atuação notarial – a análise escrupulosa do crédito, com a exigência de suas múltiplas garantias correlatas (inclusive comprovação de renda).

Aqui a burocracia cumpriu um papel saneador da economia.

E, claro, temos um bom sistema registral, que aumenta, em grau máximo, a transparência das atividades relacionadas com o crédito imobiliário.

Sobre o tema da transparência proporcionada pelos Registros Prediais, volto num outro post.

Estado português denunciado na Comissão Européia

A Ordem dos Notários de Portugal denunciou, perante a Comissão Européia, o Estado português.

Em mira as medidas discriminatórias do Simplex, programa governamental de incentivo à formalização daquisição da casa própria diretamente nos registros prediais locais.

A Ordem acusa o Estado de conceder um “tratamento preferencial e discriminatório ao regime jurídico dos novos serviços do Simplex disponibilizados em pacote nas Conservatórias de registo do país”. 

Segundo os notários portugueses, o atual governo estaria diligenciando o retorno das atividades delegadas ao regime estatutário. Numa palavra, estaria intentando a reestatização das atividades notariais em Portugal.  

Como? Respondem os notários, por seu Colégio:

Adoptando medidas legislativas como o recém-publicado Decreto-Lei 116/2008 que não só impede que os notários concorram em condições de igualdade com os mencionados serviços disponíveis nas conservatórias, como também torna a actividade notarial portuguesa economicamente inviável num futuro muito próximo.

Esta e outras medidas do Simplex, mais que promover a tão anunciada simplifacação de actos que, se feita de um modo responsável e resistente à fraude, é não só apoiada como também desejada pelos próprios notários, têm na verdade um único objectivo: recuperar para a esfera pública as actividades de uma classe profissional recentemente privatizada, discriminando e deixando em desvantagem os seus serviços até à sua progressiva eliminação.

Deste modo, nas diversas denúncias apresentadas são postas ao conhecimento da Comissão Europeia sérias violações de normas comunitárias fundamentais em matéria de concorrência, de auxílios de estado, de transparência e de fiscalidade. 

Neste último caso, por exemplo, a denúncia da Ordem dos Notários deixa em evidência o facto de os serviços prestados pelas conservatórias em concorrência directa com os notários estarem isentos de IVA, estando aqueles sujeitos ao pagamento de IVA à taxa legal de 20%.

Para quem acompanhou o processo de privatização dos notários portugueses, as recentes medidas governamentais, de fato, representam um grande retrocesso.

Na prática, o governo institui um procedimento que vem sendo percebido como concorrência desleal com os notários privados, ao utilizar-se, para o Programa Simplex, de recursos humanos e tecnológicos disponíveis nas chamadas conservatórias de registro.

Nestas condições, o serviço acaba onerando o Estado português, além de criar uma sobrecarga de serviço sobre os ombros dos conservadores prediais, funcionários públicos que são arregimentados como a coluna auxiliar no plano governamental para a derrocada do modelo privatizado.

Concursos de remoção – o mínimo e o máximo

A AnoregBR acaba de experimentar mais uma derrota judicial.

Era uma decisão esperada e mesmo necessária, poi, de uma forma ou de outra, a questão precisa mesmo ser decidida.

A partir de agora temos uma referência indiscutível – ou, ao menos, uma decisão paradigmática e que pode servir de arrimo aos concursos já realizados. Menos mal. 

O Presidente da ANoregBR, segundo nos informa Fernanda Castro, decidiu avaliar escrupulosamente os pedidos que vêm dos Estados para ajuizamento de ações que versem sobre temas em que se nãovislumbrem chanches “contundentes” de êxito. Segundo ela, a questão dos concursos é tormentosa e tem dividido a classe.

Vale conhecer a R. decisão, que segue abaixo. Continuar lendo