Cinder entrevista editor do OR

Sérgio Jacomino
Sérgio Jacomino

O registrador Sérgio Jacomino, editor deste blog, foi entrevistado pelo Secretário-Geral do Cinder – Centro Internacional de Direito Registral, D. Enrique Rajoy Brey, entidade com sede em Madri, Espanha, com o propósito de veicular o próximo encontro da entidade, que será sediado em Lima, Peru.

Confira os principais trechos abaixo.

1 – Qual é a situação atual do Registro em seu país?

A situação no Brasil pode ser resumida numa só palavra: mutação. O Registro da Propriedade nasceu neste país em 1846 e nunca experimentou, ao longo da última centúria e meia, tantos riscos e ameaças de subversão de seus postulados essenciais quanto agora. Paradoxalmente, nunca se divisou tão grandes possibilidades de transformação e aperfeiçoamento também. Não resisto à tentação de substituir o dístico positivista da bandeira nacional, que reza “ordem e progresso”, por outro, muito adequado nesta quadra da história brasileira:  “oportunidade e risco”.  São desafios que se põem à porta do registro e do registrador brasileiros no limiar do século XXI. A chave para abrir ou fechar todas essas portas chama-se “tecnologia”…

2-   Existem mudanças legislativas que possam afetar o Registro em seu país?

Vivemos em toda a parte e em todos os níveis da Federação o inferno da inflação legislativa – profusão de leis inorgânicas, disfuncionais, assistemáticas, que parecem obedecer unicamente à fúria legiferante e à lógica regulatória do Estado brasileiro contemporâneo, que ultrapassa limites tradicionais e abarca relevantes espaços políticos da sociedade civil. No nosso caso, há a crise regulamentar dos Registros da Propriedade, com a atividade sendo disputada por órgãos da administração pública. O risco que se antevê é o da captura do Registro pelos estritos interesses do Estado, já que, tradicionalmente, o registro imobiliário se acomodou no generoso veio da tutela pública dos interesses privados, de onde, possivelmente, não se deveria retirar.

3-   Que outras mudanças o Sr. antevê?

Avistam-se mudanças que vêm no bojo das complexas transformações políticas e sociais que se aceleraram com a economia global interdependente. O Registro brasileiro foi criado a partir de uma lógica organizativa que pode ser qualificada como a de um modelo basicamente atomizado. As razões dessa atomização são bem conhecidas e definidas. Agora, passamos por um processo de “molecularização” dos Registros brasileiros, com a interconexão da instituição registral não só pela articulação de suas várias frontes, espalhadas pelos 8 milhões e meio de quilômetros quadrados do nosso território, mas agregando, na malha lógica registral, todos os demais órgãos da administração pública e do mercado. Enfim, os inputs e outputs do sistema, espalhados pelo país, são a parte visível de um complexo organismo que se regenera a partir de novas tecnologias. O que será este novo Registro? Com base nas redes eletrônicas, pode-se afirmar que estamos em face de um admirável mundo novo, já que todo o suporte para o trânsito de informação não apenas suporta e conduz, mas traduz e transforma o transmissor, o receptor e a própria mensagem, como terá dito Marshall McLUHAN em seu conhecido Understandig media. Quod non est in retes non est in mundo!

4-   Como qualificaria a relação que os registradores brasileiros mantêm com a Espanha?

A Espanha é um caso de amor e paixão. Nós somos latinos e recebemos das Espanhas nossa substância essencial – nossa língua, nossa cultura jurídica. A Espanha se transformou num belíssimo exemplo de capacidade de regeneração com respostas muito adequadas aos desafios impostos pela pós-modernidade. Todos nós aprendemos com os excelentes doutrinadores espanhóis na abertura dos estritos limites da dogmática registral para enfrentar fenômenos jurídico-sociais importantes – como defesa do consumidor, tutela do meio ambiente, função econômica da instituição, etc.; enfim, o Registro foi alçado a importante ator coadjuvante, atuando na tutela e proteção de interesses e urbanísticos, ambientais, fiscais, consumeristas, etc. Mais do que a cura dos aspectos estático e dinâmico do direito de propriedade, o Registro engastou-se no movimento que propugna novas dimensões para os direitos das propriedades, no plural. Essa inflexão levou o Registro a abrir-se para a modernidade, ao mesmo tempo em que nos levou a abandonar a obsolescência de estruturas formais quando descoladas de necessidades econômicas e sociais muito concretas.

5-   O CINDER tratará no próximo Congresso do tema da propiedade. Quais são, em sua opinião, os problemas mais importantes que se apresentam eu seu país?

Nada mais atual do que tratar do fenômeno social e econômico mais importante das sociedades contemporâneas: as propriedades. Falo no plural, como deve ser, já que estamos diante um fenômeno proteiforme, que se transforma em decorrência de circunstâncias sociais e econômicas peculiares. Há um núcleo duro que se aninha sob as formas variáveis das propriedades – no que se constitui? A propriedade é um corolário da liberdade?  Qu’est-ce que la propriété? O temário desta edição do Cinder é político e deve recolocar os registradores no coração do debate político que se trava no seio da sociedade. No caso do Brasil, vivemos com o fenômeno da flexibilização e relativização dos conceitos relacionados com a propriedade e com o exercício desse direito fundamental. Os sentidos dos tipos legais migram no interior do corpo legislativo, transitando do Código Penal, passando pelo Código Civil até a Constituição… O que antes era simples esbulho, logo se transformou em direito. O que até bem pouco era mera violência, com invasão de propriedades públicas e privadas, hoje pode ser vista como legítimas ocupações escudadas em direito à habitação, constitucionalmente garantido. De que propriedades estaremos falando? Esses fatos sociais batem à porta dos Registros em forma de regularização fundiária, instaurando conflitos abertos cuja dirimição não é tarefa fácil, pois esbarra em valores constitucionalmente garantidos. Enfim, os registradores, profissionais do Direito, não poderemos nos furtar de dar respostas consistentes a esses inúmeros desafios.

2 comentários sobre “Cinder entrevista editor do OR

  1. […] [6] Já em 2010 afirmava que passávamos, à altura, “por um processo de molecularização dos Registros brasileiros, com a interconexão da instituição registral não só pela articulação de suas várias frontes, espalhadas pelos 8 milhões e meio de quilômetros quadrados do nosso território, mas agregando, na malha lógica registral, todos os demais órgãos da administração pública e do mercado. Enfim, os inputs e outputs do sistema, espalhados pelo país, são a parte visível de um complexo organismo que se regenera a partir de novas tecnologias”. JACOMINO. Sérgio. CINDER entrevista o editor do OR. São Paulo: Observatório do Registro, 18.7.2010. Acesso: https://cartorios.org/2010/07/18/cinder-entrevista-editor-do-or/ […]

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