Entre as atividades que singularizam a atividade do registrador imobiliário, aquela que pode ser identificada como medular, é a chamada qualificação registral.
A expressão qualificação registrária ou registral se insinuou de maneira discreta em nosso ambiente cartorário, substituindo o chamado exame de legalidade dos documentos – ou simplesmente exame de legalidade dos títulos – expressões que frequentaram assiduamente os registros prediais pátrios e era como se denominava a atividade nuclear do registrador na praxe cartorária.
A palavra qualificação, segundo os bons dicionários, provém do latim qualis e facere. Pode significar a emissão de uma opinião a respeito de algo, ou o ato de avaliação, apreciação; significa considerar algo ou alguém apto, idôneo, capacitado; pode ser sinônimo de classificar etc.
O dicionário da Academia das
Ciências de Lisboa liga o vocábulo ao qualificare do latim escolástico e
entre as várias acepções registra o sentido de avaliação = apreciar, avaliar.
Ainda pode significar a emissão de “um juízo valorativo sobre alguém ou alguma
coisa = classificar”[1].
MENA Y SAN MILLÁN busca um
sentido mais profundo:
“a palavra qualificação, segundo nota etimológica do Dicionário da Língua Espanhola, provém das palavras latinas qualis e facere, sem que seja aceita pela técnica linguística a derivação do adjetivo grego […] (bom, honesto, decoroso) e o verbo latino facere. Com este último critério teríamos o conceito de base etimológica, de fazer o bom ou aprovar, muito adequado à função qualificadora do registrador, que há de aprovar o documento antes de lhe dar aporte in tabula”[2].
RICARDO
DIP explora com muita desenvoltura os vários sentidos que o vocábulo
pode apresentar, buscando, em vários autores, a abonação de sua preleção.
Qualificação é o ato de qualificar, diz ele. Qualificar provém do latim
medieval qualificare, qualificação, de qualificatio com o sentido
de classificação, avaliação, aptificação ou consideração de que [algo] é apto;
ou qualis facere, apreciar as qualidades, fazer o que é bom, o que é
honesto. Estar qualificado por ou ser qualificado para alguma coisa é possuir a
capacidade ou competência, isto é, a qualidade disposicional para efetuar uma
dada tarefa ou alcançar um dado escopo, é ter qualidade, possuir os títulos ou
as características que dão o direito, civil ou moral, de agir de uma certa
maneira, que torna hábil (em sentido jurídico) a exercitar uma faculdade. Em
suas palavras:
“Qualificar-se é, pois, ter uma dada qualidade em ordem a determinado fim. Qualificar é reconhecer num sujeito determinado (que alguns chamam de objeto material) os predicados (ou qualidade) para atingir certos fins. Ex.: um avião se qualifica como meio de transporte modernamente hábil, isto é, possui qualidade para realizar os transportes de nossos tempos; reconhecer no avião essa qualidade, é qualificá-lo para o fim proposto. A qualidade é um acidente dos entes, categoria especial que é a diferença da substância” [3].
A qualificação registral é
expressão que penetrou recentemente na cultura jurídica brasileira, fazendo
fortuna nesse ramo especializado do Direito Civil que é o direito registral. De
fato, há pouco tempo – meados da década de 80 – a atuação do registrador no
exame dos títulos era conhecida correntemente como exame de legalidade,
expressão derivada de antiga disposição legal que atribuía ao registrador o
poder-dever de examinar e verificar “a legalidade e a validade do título,
procedendo ao seu registo, se o mesmo estiver em conformidade com a lei”[4].
Vê-se que este dispositivo legal em tudo é muito superior ao disposto no artigo
198 da atual Lei de Registros Públicos.
SERPA LOPES, no seu conhecido e
respeito Tratado de Registros Públicos alude à qualificação na seguintes
passagem:
“No nosso sistema, em princípio, o oficial não tem o direito propriamente dito de recusar a inscrição, no sentido de decidir que ela não é possível de se tornar efetiva, mas apenas suscita a dúvida, e ao Juiz é que compete decidir da sua procedência ou não, ordenando ou recusando a inscrição.
Decorre daí ser a principal função do Oficial do Registo de Imóveis a qualificação dos títulos que lhe forem apresentados.
Devem, por isso, detidamente estudá-los e joeirar se contêm defeitos intrínsecos ou extrínsecos que afetem à sua validade, pesquisando os próprios antecedentes do Registo no tocante aos imóveis que devem ser inscritos, de modo que, se algum obstáculo descobrirem, oponham a necessária dúvida, submetendo-a à decisão judicial.
Um princípio devem todos ter em vista, quer Oficial de Registo, quer o próprio Juiz: em matéria de Registo de Imóveis toda a interpretação deve tender para facilitar e não para dificultar o acesso dos títulos ao Registo, de modo que toda a propriedade imobiliária, e todos os direitos sobre ela recaídos fiquem sob o amparo de regime da Registo Imobiliário e participem dos seus benefícios” [5].
Pode-se perceber claramente que
no decorrer da década dos oitenta o termo qualificação se vai insinuando na
doutrina e logo em seguida se projeta nas decisões administrativas do Conselho
Superior da Magistratura de São Paulo e daí irradiando-se para a comunidade de
estudiosos de direito registral[6].
Deve-se, indiscutivelmente, a RICARDO
DIP a adoção da expressão e a sua larga difusão e adoção pelos profissionais do
Registro.
Hoje a qualificação registral (ou registrária) é a denominação corrente para designar a atividade do oficial encarregado do registro que, ao receber um título, com todo o apuro técnico e cuidado formule um juízo para determinar a sua aptidão para produzir os efeitos esperados e previstos pelo ordenamento jurídico.
Segue sendo, afinal, um
dever-poder atribuído ao registrador para o regular exercício de seu mister
consoante já decidiu o STF no HC
85.911-9-MG, j. 25/10/2005, DJ 2/12/2005, rel. min. Marco Aurélio.
[1]
Dicionário da língua portuguesa contemporânea da Academia das Ciências de
Lisboa. Lisboa: Verbo, Vol. II, 2001, p. 3020, voce qualificar.
[2]
MENA Y SAN MILLÁN, José Maria. Calificación registral de documentos
judiciales. Barcelona: Bosch, 1985, p. 7. [trad. Livre].
[3]
DIP, Ricardo Henry Marques. Sobre a qualificação no registro de imóveis
In Revista de Direito Imobiliário, 29. São Paulo: RT, 1992, p. 39.
[4]
V. art. 215 do Decreto 4.857/1939.
[5]
SERPA LOPES. Miguel Maria de. Tratado dos Registos Públicos. Vol. II,
São Paulo: Freitas Bastos, 4ª ed., 1960, p. 346.
[6]
A ocorrência do verbete qualificação nas atividades de exame de legalidade pode
ser rastreada e identificada no trabalho apresentado na Revista de Direito
Imobiliário – RDI n. 11, jan./jun. de 1983: DIP. Ricardo Henry Marques. Inexatidões
registrais e sua retificação. Como simples exemplo, pode-se conferir a
decisão proferida em 5/9/1988 pelo Conselho Superior da Magistratura de São
Paulo, sendo relator o des. Milton Evaristo dos Santos, publicada no DOE de
21/10/1988, comarca de São Vicente, Ap.
Civ. 8.597-0/1.
Sérgio Jacomino. Registrador Imobiliário em São Paulo, Capital.