PÍLULAS DE HISTÓRIA DA PUBLICIDADE.
Tornou-se um prazeroso hábito a visita que faço todas as quintas-feiras ao advogado paulistano, entomólogo e especialista em direito revogado, Prof. Dr. Ermitânio Prado.
O velho sofre da gota. Vive só, constelado de alfarrábios e de uma admirável coleção de vinis da Deutsche Grammophon e da EMI. Sempre à tardinha, encerrado o expediente do Cartório, vou ao seu espaçoso apartamento na Avenida São Luís para apreciar óperas de Wagner, suportar suas perorações e participar de seus aborrecimentos.
Desta feita encontrei-o debruçado sobre a velha secretária. Ao fundo, desenrola-se o drama de Tristan und Isolde, na voz de Kirsten Flagstad regida por Wilhelm Furtwängler.
Deito um olhar atento para a peça – uma escrivaninha de toque feminino, estilo bonheur-du-jour, com decoração floral e pequenas peças de porcelana de Sèvres. Diz que a adquiriu de um casal belga que retornou à Europa na década de 70 por não suportar a crescente fealdade paulistana.
O Velho Leão estava entretido e nem se deu conta quando me acomodei no amplo sofá recoberto de uma manta safira ornada com pequenas flores-de-lis.
Aguardo o que me parece ser uma eternidade. Quando já me inquietava, levanta suavemente o rosto e diz, em tom gravoso: “nesta época sinistra, tempos em que pontificam as nulidades e grassa uma ignorância epidêmica, é preciso refugiar-se na penumbra e descer novamente às catacumbas. Mais do que nunca é preciso preservar o verdadeiro conhecimento, livre da profanação bruta e do mal gosto republicano e democrático”.
O Velho é monarquista e diz que se dedicou na última semana a ler “umas tantas páginas latinas” para compensar a aridez do meio e aliviar as dores de artrite. A semana iluminou-se, diz num sussurro, “com a leitura de um opúsculo, joia extraordinária da cultura humana, fruto da inteligência de um gramático latino, Censorinus”.
Folheia delicadamente uma edição de 1810 – De die natali, anotado por D. Joannis Sigismundi Gruber.
Lembrei-me que Censorinus é o nome de uma cratera lunar localizada na costa sudeste do Mar Tranquilitatis. Quis demonstrar meus parcos conhecimentos astronômicos, mas fui interrompido em plena alunagem…
– Registrador, vivemos o climatério registral, diz, depositando delicadamente o opúsculo sobre a mesa. “Difficillimum climactera!”. Suspira, desolado, o olhar perdido no branco da parede desbotada.
Aponta para um pequeno livro de folhas emassadas e diz que também lavra um pequeno livro – pseudodoxia epidemica – para acolher a “verba rude feita nonadas n´água chilra da nata judiciária”.
Suas aliterações são aborrecidas – faço notar. Mas ele não se detém. Disse-me que “a primeira causa de erros ordinários é a enfermidade comum da natureza humana”, parafraseando Sir Thomas Browne que o inspira na redação de seu particular enquiry e de quem furtou o título. Não me revela a causa primordial que se acha na base da “enfermidade comum da natureza humana”… Nem lhe perguntei, por óbvio.
Apressava-me para voltar para casa. À tarde a cidade se enerva e enfurece em ruas coalhadas de pivetes, carros e gente estúpida que vai apressada. Antes de me retirar, o Velho deposita na parte externa da minha Billingham um maço de papel timbrado onde pude ler algo na sua letrinha miúda e caprichada. Diz que são pequenas nótulas em resposta a ilustre jurista, para quem o Registro de Imóveis brasileiro é expressão de uma anacrônica “herança lusitana”.
À porta ainda diz: “O jurista é um homem culto e sério. Cumpriu seu magister artium nos Estados Unidos, como convém a todo jurista moderno. Certamente saberá o que diz e modera os efeitos de seus pronunciamentos com objetivos muito bem calculados. Alguma resposta talvez calhe tão-somente para idiotas, que miram o dedo toda vez que o sábio aponta à lua”.
Em casa, pus-me a ler o texto e julguei que gostassem de conhecer um pouco do pensamento do velho Leão do Jocquey. Apus asteriscos [*] para indicar o que me pareceu ser a fonte direta de suas informações.
Espero não errar nesses parvos apontamentos.
Registros de segurança jurídica – uma invenção genial
Não é preciso prospectar os alfarrábios lusitanos para topar com o germe do registro imobiliário brasileiro. Não, caro amanuense, não! Será um erro palmar imaginar que em Coimbra se coarcta o fio condutor que animaria o sistema registral pátrio. O gênio de Nabuco buscou saciar-se em outras paragens. Não vem ao caso agora apontar as fontes do direito hipotecário nacional.
Contudo, é possível pinçar, aqui e acolá, elementos de história que permitem formar um quadro representativo de suas origens.
Façamos uma parada em Parma, ainda no século XVI.
Por meio de um decreto datado de 28 de janeiro de 1544, baixado pelo Cardeal da Gallia Cispadana*, Uberto Gambara, ordenou-se o registro de certos atos e negócios jurídicos (doações) num ofício público.
Conforme se colhe do Arquivo Histórico de Parma [1] foi instituído, naquela comuna, uma espécie de ofício de registro para os atos de doação. A falta da formalidade do registro acarretava a nulidade do próprio ato, considerado ineficaz em face de terceiros. Vejamos a redação tal e qual ser acha no Arquivo Histórico.
Il decreto stabiliva infatti che tutte le donazioni tra vivi o a causa di morte, nonché tutti i contratti nei quali il possesso della cosa donata rimanesse presso l’alienante e tutti quelli tra marito e moglie o tra genitori e figli dovessero venire, nel caso che l’oggetto del contratto oltrepassasse le cinquanta lire imp., notificate da uno de contraenti ad uno dei cancellarii del Comune di Parma. E tale formalitá, la cui mancanza causava la nullità dell’atto di fronte ai terzi, non nei rapporti tra le parti”
L’obbligo della notificazione spettava ai contraenti, ma il decreto ingiungeva anche al notaio redattore dell’atto di avvisare le parti di questa loro obbligazione
A inscrição se fazia com base em nótula, na qual se indicava a data da celebração, objeto do contrato ou do ato, sujeitos envolvidos e o tabelião que lavrara a escritura. A nota deveria ser inscrita nos registros públicos da Comuna.
Segundo Pugliatti [**], não se permitia que as transações permanecessem sub occulto velamine, isto é, acobertadas por um véu de segredo. O objetivo era assim indicado:
ut omnibus innotesceret quando possidens vel detinens bona immobilia ea detineat suo nomine vel alieno et ne quis sub occulto velamine possit decipi.
Parma haveria de proporcionar uma outra bela página na história da publicidade registral. Segue o mesmo Pugliatti [op. cit.] em sua extraordinária obra:
O duque Filipe de Bourbon, pelo Decreto de 26 de agosto de 1757, anexo ao édito de 17 de dezembro do mesmo ano e confirmado pelo de 21 de março de 1758, por inspiração de Du Tillot, institui um sistema publicitário mais completo e rigoroso, constituindo arquivos especiais, nos quais eram conservados os registros públicos: nestes, eram inscritos os contratos, e todas as pessoas, com facilidade, e sem ônus, podiam tomar conhecimento da situação dos patrimônios alheios e evitar, assim, os males do engano e da fraude.
Entre nós, o grande registrador brasileiro, Lysippo Garcia, em sua conhecida obra, registrava, com rigor e precisão, a importância histórica dos registros de direitos de Parma:
Em Parma, por um Decreto do Cardeal da Gallia Cispadana, Umberto da Gambara, de 28.01.1544 (Decretum Gambaranum), se determinou que todas as doações, quer inter vivos quer mortis causa, as confissões de dote entre marido e mulher, durante o casamento, as obrigações derivadas de depósito ou mútuo, as vendas ou alienações de imóveis, em que o alienante ficasse de posse da coisa alienada; as vendas e alienações de qualquer natureza, entre marido e mulher, pais e filhos, ainda seguida de tradição, cujo valor excedesse de 50 liras imperiais, deviam ser registradas nos livros da Comuna e publicadas in concilio generali tum proxima fiendo. O fim, como no Decreto se dizia, era a garantia de terceiros, pois que, só em relação a estes, é que não tinha eficácia o contrato não registrado, produzindo, no entanto, todos os seus efeitos, desde que não houvesse prejuízo de terceiros.
Volto, em outro oportunidade, para lhes oferecer elementos para reflexão e afastar, tanto quanto possível, a nuvem de equívocos que obnubila a consciência do jurista moderno e dificulta o seu discernimento.
[1] Archivio Storico per le Provincie Parmensi. Nuova serie. Vol. VIII, Parma: Deputazione Di Storia Patria, 1908, p. 90 et seq. Voce: La dote romana.
Comentários.
* Gallia Cispadana. Gália Cisalpina ou Citerior (Gallia Cisalpina, “aquém dos Alpes”, em latim) era o nome dado pela geografia romana ao território compreendido entre os Apeninos e os Alpes, na planície do rio Pó – i.e., o norte da atual República Italiana.
** PUGLIATTI. Salvatore. La trascrizione. La pubblicità in generali. Milano: Dott. A. Giuffrè ed. 1957. p. 135, n. 55