Aproxima-se o encontro do IRIB e o tema volta a ser agitado. Convidado a refletir sobre os aspectos relacionados com a transformação de rotinas nos cartórios de registro, confesso minha perplexidade em face das profundas mudanças sociais que se advinham com o impacto de novas tecnologias.
Aldous Huxley, autor da minha juventude, dedicou-se a pensar o futuro em que os cidadãos seriam submetidos a uma condição servil, transformados em súditos de um estado desumano e centralizador.
O romance Admirável Mundo Novo é, ainda hoje, fonte preciosa para elucubrações de todos os que se propõem a estudar o assunto. Escrito e publicado em 1932, Huxley anteviu a submissão ao Estado de indivíduos, de modo servil e dócil, facilitada, é claro, por doses cavalares de “soma”.
A ineficácia é o pecado capital contra o capital
O que eu gostaria de destacar aqui é a ideia, central no livro de Huxley, de que a eficiência do sistema é simplesmente fundamental para entretecer e solidificar a trama social. Diz ele, já em 1946, que “numa era de técnica avançada a ineficácia é pecado contra o Espírito Santo”. E segue:
Um estado totalitário verdadeiramente ‘eficiente’ será aquele em que o todo-poderoso comitê executivo dos chefes políticos e o seu exército de diretores terá o controle de uma população de escravos que será inútil constranger, pois todos eles terão amor à sua servidão. Fazer que eles a amem, tal será a tarefa, atribuída nos estados totalitários de hoje aos ministérios de propaganda, aos redatores-chefes dos jornais e aos mestres-escolas.
Hoje submetemo-nos docilmente aos sistemas que nos transformam em dados que movimentam e alimentam a reprodução desse imenso mercado. O velho Dr. Ermitânio Prado tem dito que “o Registro Imobiliário será apenas um ramal de um grande sistema que nos terá a todos, cristãos e mouros, rendidos à religião da técnica que nos pede, em troca, a individualidade e a nossa liberdade. Noutros termos: o problema central da pós-modernidade consiste em fazer os indivíduos amar a sua servidão”.
O velho advogado paulistano é inteiramente concorde com as conclusões de Huxley. Mas vai além e introduz na discussão a variável da promiscuidade sexual que, segundo ele, desempenha um papel fundamental no romance. “A degeneração completa dos costumes, sob o pálio da liberdade individual, alimentada pelas drogas, é um elemento essencial para que se dê, de modo eficaz, o controle social”. Lembra esta passagem do próprio Huxley:
“E a promiscuidade sexual do Admirável Mundo Novo também não parece estar muito afastada. Existem já certas cidades americanas onde o número de divórcios é igual ao número de casamentos. Dentro de alguns anos, sem dúvida, passar-se-ão licenças de casamento como se passam licenças de cães, válidas para um período de doze meses, sem nenhum regulamento que proíba a troca do cão ou a posse de mais de um animal de cada vez. À medida que a liberdade econômica e política diminui, a liberdade sexual tem tendência para aumentar, como compensação. E o ditador (a não ser que tenha necessidade de carne para canhão e de famílias para colonizar os territórios desabitados ou conquistados) fará bem em encorajar esta liberdade, juntamente com a liberdade de sonhar em pleno dia sob a influência de drogas, do cinema e da rádio, ela contribuirá para reconciliar os seus súditos com a servidão que lhes estará destinada”.
O Velho, ao relembrar a obra de Huxley, destaca que o escritor inglês recoloca no centro do romance os dramas da liberdade humana em face do Estado evocando, pela boca do selvagem, a tragédia humana — no romance verberada por ecos e suspiros de Shakespeare.
O, wonder!
How many goodly creatures are there here!
How beauteous mankind is! O brave new world,
That has such people in’t!”
As citações são da edição portuguesa de Admirável Mundo Novo (Lisboa: Livros do Brasil, s.d trad. Mário Henrique Leiria).
Restará tão somente o traço do nome (Registro)? Sirvo-me, para reflexão, das contundentes palavras de Maurice Blanchot, autor de “A parte do Fogo”: “Eu me nomeio, e é como se eu pronunciasse meu canto fúnebre: eu me separo de mim mesmo, não sou mais a minha presença nem minha realidade, mas uma presença objetiva, impessoal, a do meu nome, que me ultrapassa, e cuja imobilidade petrificada faz para mim exatamente o efeito de uma lápide, pesando sobre o vazio”.