Para-registração – um fenômeno da modernidade?

A série de estudos acerca das propostas de reforma da Lei 6.015/1973 vem sendo publicada neste portal à medida que as análises, feitas por diretores do IRIB, vêm a lume.

Para acompanhar a sucessão de notas críticas, acesse o índice geral abaixo.

[ÍNDICE GERAL]

[Art. 181-A, § 1° da Lei 6.015/1973]. Flauzilino Araújo dos Santos.

PROPOSTA: § 1°Além das funções indicadas no caput, o SAEC prestará também os seguintes serviços eletrônicos:

PROPOSTA DO IRIB: VOTAMOS PELA SUPRESSÃO

Termos voláteis e a lei

RAZÕES: É noção básica de processo legislativo que não se coloquem em lei termos que são voláteis e expressões decalcadas de processos tecnológicos que, por sua própria natureza, sofrem mudanças com o desenvolvimento técnico e científico.

Com a evolução da ciência, surgem tanto novas soluções quanto problemas que precisam de atenção, o que obriga empresas e órgãos públicos a se adaptarem para suprirem as demandas da sociedade.

A legislação não deve e não pode descer a minúcias, as quais devem ser objeto da atenção do Agente Regulador encarregado de normatizar, no âmbito de suas competências e de conformidade com condições e circunstâncias temporais e espaciais.

Por outro lado, um rol taxativo de serviços eletrônicos engessará o SAEC, diante de novos requerimentos sociais, novos negócios, legislações supervenientes, pois exigirá alteração de diploma legal da categoria “lei”.

Ademais, especificações dos módulos de serviços do SAEC, de forma pormenorizada, é próprio de regulamento a ser baixado pelo Poder Judiciário, e não de lei, como norma de caráter geral e abstrato. Realmente, é próprio de “regulamentos”, descer às minúcias necessárias de pontos específicos, criando os meios para fiel cumprimento da lei, sem, contudo, contrariar suas disposições ou inovar o Direito.

SAEC – outras “funções” – outros “serviços”

Como visto, o parágrafo alude a outras funções do SAEC consubstanciadas em outros “serviços eletrônicos”. Essas atividades, deslocadas do seu locus original, têm merecido o epíteto de atividades para-registrais, na série de artigos que o presidente SÉRGIO JACOMINO vem escrevendo sobre o tema[1], afastando-se, por consequência, do quadro conceitual criado no âmbito do Projeto SREI/CNJ, pelas propostas aqui veiculadas.

Ademais, veremos que os outros “serviços” previstos nas alíneas do art.181-A desloca e atraem, para o âmbito do SAEC, atividades próprias e indelegáveis de registradores.

Não se pode subverter o paradigma constitucional de outorga pessoal e intransferível da função registral aos profissionais do Direito que atuam nos Registros Públicos. Essas propostas – como a que prevê a criação de entidades registradoras [§ 7º do art. 181-A] – são manifestamente inconstitucionais – vistas da perspectiva interna da atividade – e se aplicadas a notários e registradores representam uma grave subversão do sistema de delegação em caráter pessoal tal e como previsto no art. 236 da CF/1988.

Atividades registrais e sua matriz constitucional

Na ADI 2.415-SP o Ministro AYRES BRITO fixou um importante balizamento para que se compreenda e enquadre a atividade registral e notarial brasileira conforme a matriz constitucional. Extraio da ementa:

I – Trata-se de atividades jurídicas que são próprias do Estado, porém exercidas por particulares mediante delegação. Exercidas ou traspassadas, mas não por conduto da concessão ou da permissão, normadas pelo caput do art. 175 da Constituição como instrumentos contratuais de privatização do exercício dessa atividade material (não jurídica) em que se constituem os serviços públicos.

II – A delegação que lhes timbra a funcionalidade não se traduz, por nenhuma forma, em cláusulas contratuais.

III – A sua delegação somente pode recair sobre pessoa natural, e não sobre uma empresa ou pessoa mercantil, visto que de empresa ou pessoa mercantil é que versa a Magna Carta Federal em tema de concessão ou permissão de serviço público.

IV – Para se tornar delegatária do Poder Público, tal pessoa natural há de ganhar habilitação em concurso público de provas e títulos, e não por adjudicação em processo licitatório, regrado, este, pela Constituição como antecedente necessário do contrato de concessão ou de permissão para o desempenho de serviço público.

V – Cuida-se ainda de atividades estatais cujo exercício privado jaz sob a exclusiva fiscalização do Poder Judiciário, e não sob órgão ou entidade do Poder Executivo, sabido que por órgão ou entidade do Poder Executivo é que se dá a imediata fiscalização das empresas concessionárias ou permissionárias de serviços públicos. Por órgãos do Poder Judiciário é que se marca a presença do Estado para conferir certeza e liquidez jurídica às relações interpartes, com esta conhecida diferença: o modo usual de atuação do Poder Judiciário se dá sob o signo da contenciosidade, enquanto o invariável modo de atuação das serventias extraforenses não adentra essa delicada esfera da litigiosidade entre sujeitos de direito.

VI – Enfim, as atividades notariais e de registro não se inscrevem no âmbito das remuneráveis por tarifa ou preço público, mas no círculo das que se pautam por uma tabela de emolumentos, jungidos estes a normas gerais que se editam por lei necessariamente federal[2].

É possível arrolar sinteticamente os eixos fundamentais do regime constitucional da delegação:

  1. Atividades jurídicas – delegação ao particular. O registrador exerce atividades jurídicas, próprias do Estado, exercidas por particulares mediante delegação. A delegação somente pode recair sobre pessoa natural, não sobre uma empresa ou pessoa mercantil.
  2. Delegação – não concessão ou permissão. Estas últimas modalidades requerem “instrumentos contratuais de privatização do exercício da atividade material (não jurídica) em que se constituem os serviços públicos” (art. 175 da CF).
  3. Concurso público – não licitação. Para se tornar delegatário, a pessoa natural há de habilitar-se em concurso público de provas e títulos promovido pelo respectivo Tribunal de Justiça, e não por adjudicação em processo licitatório.
  4. Fiscalização exclusiva do Poder Judiciário. O exercício privado da função pública registral jaz sob a exclusiva fiscalização do Poder Judiciário, não sob órgão ou entidade do Poder Executivo.
  5. Segurança jurídica. Por órgãos do Poder Judiciário é que se marca a presença do Estado para conferir certeza e liquidez jurídica às relações inter partes.
  6. Emolumentos. As atividades registrais não são remuneráveis por tarifa ou preço público, mas por tabelas de emolumentos.

O mesmo STF voltaria a agitar o tema no bojo do RE 842.846, oriundo de Santa Catarina, da relatoria do Min. LUIZ FUX. Destaco, pela clareza do texto, o seguinte:

“Os serviços notariais e de registro, mercê de exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público (art. 236, CF/88), não se submetem à disciplina que rege as pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviços públicos.

É que esta alternativa interpretativa, além de inobservar a sistemática da aplicabilidade das normas constitucionais, contraria a literalidade do texto da Carta da República, conforme a dicção do art. 37, § 6º, que se refere a pessoas jurídicas prestadoras de serviços públicos, ao passo que notários e tabeliães respondem civilmente enquanto pessoas naturais delegatárias de serviço público, consoante disposto no art. 22 da Lei nº 8.935/94″ (RE 842.846-SC, j. 27/2/2019, rel. Ministro LUIZ FUX).

A partir dessas premissas, é possível agitar algumas questões:

  1. Qual o regime jurídico das entidades registradoras?
  2. Qual a natureza da atribuição de funções registrais a essas pessoas jurídicas?
  3. As entidades registradoras submeter-se-ão a leilões licitatórios? Haverá concorrência entre elas? Dar-se-á uma privatização sui generis das atividades delegadas?
  4. As entidades registradoras serão fiscalizadas pelo Poder Executivo? Serão autorizadas a operar por ato do Banco Central do Brasil?
  5. Por fim, as taxas cobradas pela prestação de serviços – que não são emolumentos – remunerarão os serviços? Haverá lucro e repartição de benefícios? Quem serão os sócios de tais pessoais jurídicas? Se forem registradores, qual o critério de divisão de lucros? E as responsabilidades daí decorrentes?

As iniciativas consubstanciadas nas propostas de reforma da Lei n. 6.015/1973, aqui sob análise, chocam-se frontalmente com as diretrizes fixadas pelo Supremo Tribunal Federal.

A criação de entidades registradoras, o deslocamento de funções delegadas cometendo-as a outros atores e jungindo-as quer a centrais estaduais – que atuariam à margem do sistema criado e regulamentado pelo Provimento n. 89/2019 –, quer ao SAEC ou às entidades registradoras, são iniciativas que atraem a inquinação de inconstitucionalidade.

Voltaremos ao assunto.


[1] JACOMINO. Sérgio. Subdelegação de funções e a floração de atividades para-registrais. In Observatório do Registro, 2018. Acesso: https://cartorios.org/2018/11/02/subdelegacao-de-funcoes-e-a-floracao-de-atividades-para-registrais/. Confira também: JACOMINO. Sérgio. Subdelegação de funções e a subversão do sistema registral e notarial in Observatório do Registro, 2018. Acesso: https://cartorios.org/2018/09/15/subdelegacao-de-funcoes-e-a-subversao-do-sistema-registral-e-notarial/.

[2] ADI 2.415, rel. min. Ayres Britto, j. 10/11/2011, p., DJE de 9/2/2012. Acesso: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=1718027.

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