Protocolo para-registral

A série de estudos acerca das propostas de reforma da Lei 6.015/1973 vem sendo publicada neste portal à medida que as análises, feitas por diretores do IRIB, vêm a lume.

Para acompanhar a sucessão de notas críticas, acesse o índice geral abaixo.

[ÍNDICE GERAL]

[Art. 181-A, § 1°, inciso I] – Protocolo para-registral. Flauzilino Araújo dos Santos e Sérgio Jacomino.

PROPOSTA: I – Protocolo eletrônico de títulos;  

JUSTIFICATIVA: Serviço básico do SREI. Porta eletrônica única, em âmbito nacional, para os usuários que visam a remessa de títulos exclusivamente ao registro imobiliário. Facilitação para os todos os usuários, mas muito especialmente aos corporativos e institucionais
PROPOSTA DO IRIB: VOTAMOS PELA SUPRESSÃO.

Protocolo eletrônico de títulos – crítica à expressão

O acesso ao SREI deverá ser feito em caráter universal, aberto a todas as pessoas públicas e privadas, constituindo infração à isonomia constitucional privilegiar usuários corporativos e institucionais, visto que, por princípio constitucional, todos são iguais perante o serviço público (Princípio da igualdade dos usuários perante o serviço público).

O próprio nomem iuris do serviço – Protocolo Eletrônico de Títulos – é inadequado porque dá ao apresentante a falsa ideia de que seu título foi protocolado no Livro 1 de Protocolo do Registro de Imóveis (art. 174 e art. 182 da LRP). Somente o protocolo do título investe o interessado nos direitos decorrentes da prenotação – prioridade do título e preferência dos direitos reais (art. 186 da LRP), produzindo, desde logo, os efeitos de eficácia e oponibilidade dos direitos sucessivamente inscritos (artigos 1.246 e 1.493 do Código Civil c.c. art. 54 da Lei 13.097/2015).  Sem o ato próprio, a cargo de cada registrador imobiliário, não se produzem os potentes efeitos jurídicos da prenotação do título e de eficácia dos direitos, mas apenas seu encaminhamento eletrônico.

Em suma, o “protocolo” de um título, feito mediante seu lançamento no Livro 1 – Protocolo, gera, ipso facto, efeitos jurídicos formais e materiais (art. 182 e seguintes da LRP). Nos termos do art. 1.246 do Código Civil, a data do registro retroage à data do protocolo do título, mesmo que o registro seja efetivamente praticado dias depois.   É atribuição própria do Registrador, inerente ao processo de registro, que não pode jamais ser deslocada para entidades para-registrais.

O eventual deslocamento dessa atribuição própria para o SAEC gerará inesperados problemas: a quem caberá a responsabilidade pela quebra de eventual cadeia sucessiva de prenotações – que podem ser feitas remota ou localmente – gerando prejuízos ao apresentante? Problemas de sistema são comuns – a quem atribuir a responsabilidade? Até aqui a responsabilidade pelos prejuízos causados a terceiros é do registrador (art. 22 da Lei 8.935/1994).

O SAEC jamais foi pensado e concebido para se constituir no protocolo oficial do Registro de Imóveis. Pior ainda: no [Art. 181-A, § 2º] a proposta cravou o seguinte dispositivo: “ONR coordenará a implantação e gestão do sistema eletrônico de recebimento e protocolo de contratos […] destinadas aos registradores de imóveis”.

As propostas representam uma subversão do sistema de outorga de delegação e devem ser afastadas.

O tempo e o espaço do Registro de Imóveis

Há problemas concretos que a proposta visa a enfrentar, embora de modo inadequado. SÉRGIO JACOMINO se referiu ao fenômeno da 4ª onda registral [vide aqui] afirmando que seu fator determinante “é a existência de redes e meios eletrônicos que promovem a extrapolação dos limites físicos das serventias e inauguram uma nova forma de relacionamento entre os cartórios e os destinatários de seus serviços – estado, mercado, sociedade”. Obviamente que com a transformação digital é natural que novos e instigantes desafios surjam no horizonte da multissecular atividade notarial e registral.

Dentro dessa quadra, é possível que os conceitos tradicionais de tempo e de espaço no âmbito dos processos registrais em meios eletrônicos sejam abalados para se adequarem a esse “novo normal”. A proposta é um sintoma disso tudo. Como afirmou SÉRGIO JACOMINO, a centralização de algumas funções registrais pode ser considerada o efeito de uma espécie de tropismo digital[1] que interfere profundamente com os processos. É mais cômodo, barato e menos complexo a centralização do que a descentralização de dados.

É uma tentação. Porém, uma coisa é o “ponto único” da Internet[2] para envio e requisição de informações, outra, muito diferente, é a concentração de funções registrais, das quais a protocolização é um exemplo.

O ponto único do SAEC foi assim definido na documentação do SREI:

“O Sistema de Atendimento Eletrônico Compartilhado (SAEC) disponibiliza um ponto único de contato para serviços de qualquer cartório do Brasil. Atende a solicitantes via Internet, realiza troca de informações com entidades externas e fornece dados estatísticos sobre a operação dos cartórios”[3].

Vimos sustentando o conceito ao longo do tempo:

“É necessário que uma norma regulamente de forma inequívoca: [1] os requisitos mínimos que devem ser atendidos pelos softwares de Registro de Imóveis eletrônico; [2] a vinculação de todas as serventias com o operador do sistema nacional de registro de imóveis eletrônico; e [3] a previsão de um ponto único de contato para atendimento eletrônico de serviços, através da internet, para qualquer cartório do Brasil”[4].

Por outro lado, descentralização de dados representa uma maior garantia de inviolabilidade e preservação de dados em redes digitais.

É possível decentralizar os dados e centralizar o controle.

Aliás, essa é a vocação e o grande desafio do SREI ao se propor a desenvolver uma cultura estruturada em Governança de TI (GTI)[5].  

Os dados dos registros de imóveis de todo o país estão descentralizados e é justamente essa arquitetura tradicional, uma espécie de “blockchain analógica”[6], que tem impedido, ao menos até agora, que os dados registrais fossem devassados, ao contrário de outras bases de dados do próprio governo federal, por exemplo[7].

A melhor arquitetura não será, pois, a centralização de dados. Não se pode esquecer igualmente que a passagem de dados pelo hub do SAEC (ou por centrais estaduais) também representa um risco de captura e retenção dos dados pessoais nos nós da rede, razão pela qual sustentamos que os intercâmbios de informações, no âmbito do SREI, devem se dar com a utilização de tecnologia de criptografia ponta-a-ponta.

Em resumo, a centralização dos dados não é recomendável e nem está prevista na documentação técnica do SREI. É preciso criar uma arquitetura de descentralização de dados, com controle centralizado de acesso – “ponto único” – como está previsto na regulamentação do SREI.[8]

Precedência e prioridade – Conceitos distintos

Sustentar que o modelo deva ser descentralizado, já que essa arquitetura é mais segura e consentânea com o modelo de delegação constitucional, nos impõe responder aos desafios postos pelas plataformas eletrônicas. E o maior deles é: como preservar a prioridade do art. 186 da LRP com os títulos que ingressam a partir de vários pontos de acesso pelo SAEC?

Como sustentou SÉRGIO JACOMINO, há, na própria LRP, uma clara distinção entre o controle de prioridade e o de precedência que se preordenam sob uma “ordem geral”[9]. São conceitos perfeitamente distintos. Vejamos em detalhe.

O controle de precedência é assegurado pelo número de ordem geral da apresentação dos títulos, conforme disposto no art. 11 da LRP:

Art. 11. Os oficiais adotarão o melhor regime interno de modo a assegurar às partes a ordem de precedência na apresentação dos seus títulos, estabelecendo-se, sempre, o número de ordem geral.

A controle de precedência não se confunde com o controle de prioridade. A primeira vem estampada nos artigos 11 e 12, já a prioridade no artigo 186 da LRP:

Art. 186 – O número de ordem [no protocolo – art. 182] determinará a prioridade do título, e esta a preferência dos direitos reais, ainda que apresentados pela mesma pessoa mais de um título simultaneamente.

É fácil demonstrar que, embora inter-relacionados, os conceitos de precedência e prioridade não se confundem, já que um não implica necessariamente o outro. Basta atentar para a redação do parágrafo único do artigo 12 da LRP que reza que “independem de apontamento no Protocolo os títulos apresentados apenas para exame e cálculo dos respectivos emolumentos”[10].

Ora, se há títulos que não são prenotados e todos devem observar a rigorosa ordem geral de sua apresentação segue-se daí que a ordem geral de apresentação dos títulos e controle de precedência não se confunde com a ordem de prioridade – somente alcançável com uma inscrição em sentido próprio: a prenotação que é parte integrante do processo de registro (artigos 182, 183 etc. da LRP e art. 1.246 do Código Civil)

Esse conceito calha perfeitamente com o papel que será desenvolvido pelo SAEC. Os títulos enviados aos Registros de Imóveis devem seguir uma rigorosa ordem de precedência, assegurada por certificados de time stamping [carimbo do tempo]. De conformidade com o PROJETO SREI: PA 1.2.6 – Relatório da modelagem do processo automatizado v1.1.r.10, p. 21/22:

“Após o pedido em elaboração ser encaminhado ao(s) cartório(s), é realizada a emissão do recibo protocolo, representada pelo subprocesso 2.1 – Emitir Recibo Protocolo.

O recibo protocolo será emitido pelo SAEC a partir do número do pedido global definido pelo Sistema de Cartório e, caso o título tenha sido apresentado em formato papel, é requisitada a emissão de etiquetas a fim de identificar suas páginas”[11].

Partindo-se do pressuposto de que a ocorrência de títulos contraditórios no mesmo dia – às vezes no mesmo instante –, é uma exceção raríssima, a colisão de direitos contraditórios e excludentes, devidamente provados pela precedência, deve levar a um tratamento extrarregistral.

A hipótese de apresentação de títulos contraditórios em vários guichês de atendimento assíncronos, em que não é possível apurar a exata e indisputável prioridade, deve levar a questão à apreciação jurisdicional com a suspensão da eficácia do registro até solução da disputa. Não é possível, nesses casos, apurar, extreme de dúvidas, a efetiva prioridade.

Outra hipótese comum é a conciliação entre os direitos no caso de prioridade de idosos e hipóteses legais congêneres. Para todos esses casos, que são excepcionais, deve existir uma regulação própria[12].

Seja como for, as atribuições do SAEC, do ONR, ou das centrais não devem se confundir com as próprias dos registradores imobiliários. As soluções tecnológicas devem harmonizar-se com o Direito.


[1] JACOMINO. Sérgio. Registro de Imóveis eletrônico – O Nó Górdio da Regulamentação. In GEN Jurídico, 2018. Acesso: http://genjuridico.com.br/2018/08/23/registro-de-imoveis-eletronico-o-no-gordio-da-regulamentacao/.

[2] V. Provimento 89/2019, art. 18. “O SAEC deverá oferecer ao usuário remoto os seguintes serviços eletrônicos imobiliários a partir de um ponto único de contato na internet”. Vide igualmente as atribuições do ONR: Art. 31, II, “b”: “implantação e operação do Serviço de Atendimento Eletrônico Compartilhado – SAEC, como previsto em Recomendação da Corregedoria Nacional de Justiça, com a finalidade de prestar serviços e criar opção de acesso remoto aos serviços prestados pelas unidades registrais de todo País em um único ponto na Internet”.

[3] BERNAL. Volnys. UNGER. Adriana Jacoto. SREI – Sistema de Registro Eletrônico Imobiliário – Parte 1 – Introdução ao Sistema de Registro Eletrônico Imobiliário. São Paulo: LSITEC, 2012, item 3.4.1, p. 18. Acesso: https://folivm.files.wordpress.com/2011/04/srei_introducao_v1-0-r-7.pdf.

[4] SANTOS. Flauzilino Araújo dos. Registro de Imóveis Eletrônico. Uma reflexão tardia? Acesso: https://jus.com.br/artigos/50498/registro-de-imoveis-eletronico-uma-reflexao-tardia

[5] “Governança de TI é um conjunto de práticas, padrões e relacionamentos estruturados, assumidos por executivos, gestores, técnicos e usuários de TI de uma organização, com a finalidade de garantir controles efetivos, ampliar os processos de segurança, minimizar os riscos, ampliar o desempenho, otimizar a aplicação de recursos, reduzir os custos, suportar as melhores decisões e consequentemente alinhar TI aos negócios.” (João R. Peres, professor GV). Acesso: https://www.diariodeti.com.br/afinal-o-que-e-governanca-de-ti/.

[6] A expressão é da engenheira ADRIANA JACOTO UNGER proferida em palestra na OAB.

[7] São centenas de exemplos de devassa de dados públicos. Um único exemplo de um só fornecedor que disponibiliza 92 milhões de registros de brasileiros bastaria: “According to the seller, registered as X4Crow, the records are separated per province and include names, dates of birth, and taxpayer ID (CPF – Cadastro de Pessoas Físicas) of individuals. The database also has taxpayer details about legal entities, or the CNPJ (Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica), it is stated in the post”. Vide: Details of 92 Million Brazilians Auctioned on Underground Forums. Acesso: https://www.bleepingcomputer.com/news/security/details-of-92-million-brazilians-auctioned-on-underground-forums/.

[8]O Sistema de Atendimento Eletrônico Compartilhado (SAEC) disponibiliza um ponto único de contato para atendimento eletrônico de serviços, através da Internet, para qualquer cartório do Brasil. Atende a usuários remotos, realiza troca de informações com entidades externas e fornece dados estatísticos sobre a operação dos cartórios. O SAEC é responsável pela distribuição das solicitações que, recebidas via Internet, são encaminhadas aos respectivos cartórios. Existe uma única instância do SAEC, que é responsável por intermediar as solicitações para todos os cartórios de registro de imóveis.”  PROJETO SREl: PA 1.2.6 – Relatório da modelagem do processo automatizado v1.1.r.10, p.7. Acesso: https://folivm.files.wordpress.com/2015/08/srei-356-380-relatc3b3rio-da-modelagem-do-processo-automatizado.pdf.

[9] JACOMINO. Sérgio. ARRUDA ALVIM NETO. José Manuel et al. Org. Lei de Registros Públicos Comentada: lei 6.015/1973. 2ª ed. São Paulo: Forense, 2019, comentários ao art. 182.

[10] Na jurisprudência há muito se debateu: Ap. Civ. 280.482, São Paulo, j. 29/6/1979, DOJ 7/8/1979, rel. des. HUMBERTO DE ANDRADE JUNQUEIRA. Acesso: http://kollsys.org/ts.

[11] UNGER. Adriana Jacoto. MAFRA. Andressa. HIRATA. Estela. ZAVATA. Juliana. GROTTO. Marcela. PROJETO SREI – Sistema de Registro Eletrônico Imobiliário – PA 1.2.6 – Relatório da modelagem do processo automatizado. 2011. Acesso: https://folivm.files.wordpress.com/2015/08/srei-356-380-relatc3b3rio-da-modelagem-do-processo-automatizado.pdf.

[12] LAGO, Ivan Jacopetti do. O atendimento prioritário da Lei federal 13.146/2015 (Estatuto da pessoa com deficiência) e o princípio da prioridade do registro de imóveis. Revista de Direito Imobiliário v. 39, n. 80, p. 293–318, jan./jun., 2016.

Para-registração – um fenômeno da modernidade?

A série de estudos acerca das propostas de reforma da Lei 6.015/1973 vem sendo publicada neste portal à medida que as análises, feitas por diretores do IRIB, vêm a lume.

Para acompanhar a sucessão de notas críticas, acesse o índice geral abaixo.

[ÍNDICE GERAL]

[Art. 181-A, § 1° da Lei 6.015/1973]. Flauzilino Araújo dos Santos.

PROPOSTA: § 1°Além das funções indicadas no caput, o SAEC prestará também os seguintes serviços eletrônicos:

PROPOSTA DO IRIB: VOTAMOS PELA SUPRESSÃO

Termos voláteis e a lei

RAZÕES: É noção básica de processo legislativo que não se coloquem em lei termos que são voláteis e expressões decalcadas de processos tecnológicos que, por sua própria natureza, sofrem mudanças com o desenvolvimento técnico e científico.

Com a evolução da ciência, surgem tanto novas soluções quanto problemas que precisam de atenção, o que obriga empresas e órgãos públicos a se adaptarem para suprirem as demandas da sociedade.

A legislação não deve e não pode descer a minúcias, as quais devem ser objeto da atenção do Agente Regulador encarregado de normatizar, no âmbito de suas competências e de conformidade com condições e circunstâncias temporais e espaciais.

Por outro lado, um rol taxativo de serviços eletrônicos engessará o SAEC, diante de novos requerimentos sociais, novos negócios, legislações supervenientes, pois exigirá alteração de diploma legal da categoria “lei”.

Ademais, especificações dos módulos de serviços do SAEC, de forma pormenorizada, é próprio de regulamento a ser baixado pelo Poder Judiciário, e não de lei, como norma de caráter geral e abstrato. Realmente, é próprio de “regulamentos”, descer às minúcias necessárias de pontos específicos, criando os meios para fiel cumprimento da lei, sem, contudo, contrariar suas disposições ou inovar o Direito.

SAEC – outras “funções” – outros “serviços”

Como visto, o parágrafo alude a outras funções do SAEC consubstanciadas em outros “serviços eletrônicos”. Essas atividades, deslocadas do seu locus original, têm merecido o epíteto de atividades para-registrais, na série de artigos que o presidente SÉRGIO JACOMINO vem escrevendo sobre o tema[1], afastando-se, por consequência, do quadro conceitual criado no âmbito do Projeto SREI/CNJ, pelas propostas aqui veiculadas.

Ademais, veremos que os outros “serviços” previstos nas alíneas do art.181-A desloca e atraem, para o âmbito do SAEC, atividades próprias e indelegáveis de registradores.

Não se pode subverter o paradigma constitucional de outorga pessoal e intransferível da função registral aos profissionais do Direito que atuam nos Registros Públicos. Essas propostas – como a que prevê a criação de entidades registradoras [§ 7º do art. 181-A] – são manifestamente inconstitucionais – vistas da perspectiva interna da atividade – e se aplicadas a notários e registradores representam uma grave subversão do sistema de delegação em caráter pessoal tal e como previsto no art. 236 da CF/1988.

Atividades registrais e sua matriz constitucional

Na ADI 2.415-SP o Ministro AYRES BRITO fixou um importante balizamento para que se compreenda e enquadre a atividade registral e notarial brasileira conforme a matriz constitucional. Extraio da ementa:

I – Trata-se de atividades jurídicas que são próprias do Estado, porém exercidas por particulares mediante delegação. Exercidas ou traspassadas, mas não por conduto da concessão ou da permissão, normadas pelo caput do art. 175 da Constituição como instrumentos contratuais de privatização do exercício dessa atividade material (não jurídica) em que se constituem os serviços públicos.

II – A delegação que lhes timbra a funcionalidade não se traduz, por nenhuma forma, em cláusulas contratuais.

III – A sua delegação somente pode recair sobre pessoa natural, e não sobre uma empresa ou pessoa mercantil, visto que de empresa ou pessoa mercantil é que versa a Magna Carta Federal em tema de concessão ou permissão de serviço público.

IV – Para se tornar delegatária do Poder Público, tal pessoa natural há de ganhar habilitação em concurso público de provas e títulos, e não por adjudicação em processo licitatório, regrado, este, pela Constituição como antecedente necessário do contrato de concessão ou de permissão para o desempenho de serviço público.

V – Cuida-se ainda de atividades estatais cujo exercício privado jaz sob a exclusiva fiscalização do Poder Judiciário, e não sob órgão ou entidade do Poder Executivo, sabido que por órgão ou entidade do Poder Executivo é que se dá a imediata fiscalização das empresas concessionárias ou permissionárias de serviços públicos. Por órgãos do Poder Judiciário é que se marca a presença do Estado para conferir certeza e liquidez jurídica às relações interpartes, com esta conhecida diferença: o modo usual de atuação do Poder Judiciário se dá sob o signo da contenciosidade, enquanto o invariável modo de atuação das serventias extraforenses não adentra essa delicada esfera da litigiosidade entre sujeitos de direito.

VI – Enfim, as atividades notariais e de registro não se inscrevem no âmbito das remuneráveis por tarifa ou preço público, mas no círculo das que se pautam por uma tabela de emolumentos, jungidos estes a normas gerais que se editam por lei necessariamente federal[2].

É possível arrolar sinteticamente os eixos fundamentais do regime constitucional da delegação:

  1. Atividades jurídicas – delegação ao particular. O registrador exerce atividades jurídicas, próprias do Estado, exercidas por particulares mediante delegação. A delegação somente pode recair sobre pessoa natural, não sobre uma empresa ou pessoa mercantil.
  2. Delegação – não concessão ou permissão. Estas últimas modalidades requerem “instrumentos contratuais de privatização do exercício da atividade material (não jurídica) em que se constituem os serviços públicos” (art. 175 da CF).
  3. Concurso público – não licitação. Para se tornar delegatário, a pessoa natural há de habilitar-se em concurso público de provas e títulos promovido pelo respectivo Tribunal de Justiça, e não por adjudicação em processo licitatório.
  4. Fiscalização exclusiva do Poder Judiciário. O exercício privado da função pública registral jaz sob a exclusiva fiscalização do Poder Judiciário, não sob órgão ou entidade do Poder Executivo.
  5. Segurança jurídica. Por órgãos do Poder Judiciário é que se marca a presença do Estado para conferir certeza e liquidez jurídica às relações inter partes.
  6. Emolumentos. As atividades registrais não são remuneráveis por tarifa ou preço público, mas por tabelas de emolumentos.

O mesmo STF voltaria a agitar o tema no bojo do RE 842.846, oriundo de Santa Catarina, da relatoria do Min. LUIZ FUX. Destaco, pela clareza do texto, o seguinte:

“Os serviços notariais e de registro, mercê de exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público (art. 236, CF/88), não se submetem à disciplina que rege as pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviços públicos.

É que esta alternativa interpretativa, além de inobservar a sistemática da aplicabilidade das normas constitucionais, contraria a literalidade do texto da Carta da República, conforme a dicção do art. 37, § 6º, que se refere a pessoas jurídicas prestadoras de serviços públicos, ao passo que notários e tabeliães respondem civilmente enquanto pessoas naturais delegatárias de serviço público, consoante disposto no art. 22 da Lei nº 8.935/94″ (RE 842.846-SC, j. 27/2/2019, rel. Ministro LUIZ FUX).

A partir dessas premissas, é possível agitar algumas questões:

  1. Qual o regime jurídico das entidades registradoras?
  2. Qual a natureza da atribuição de funções registrais a essas pessoas jurídicas?
  3. As entidades registradoras submeter-se-ão a leilões licitatórios? Haverá concorrência entre elas? Dar-se-á uma privatização sui generis das atividades delegadas?
  4. As entidades registradoras serão fiscalizadas pelo Poder Executivo? Serão autorizadas a operar por ato do Banco Central do Brasil?
  5. Por fim, as taxas cobradas pela prestação de serviços – que não são emolumentos – remunerarão os serviços? Haverá lucro e repartição de benefícios? Quem serão os sócios de tais pessoais jurídicas? Se forem registradores, qual o critério de divisão de lucros? E as responsabilidades daí decorrentes?

As iniciativas consubstanciadas nas propostas de reforma da Lei n. 6.015/1973, aqui sob análise, chocam-se frontalmente com as diretrizes fixadas pelo Supremo Tribunal Federal.

A criação de entidades registradoras, o deslocamento de funções delegadas cometendo-as a outros atores e jungindo-as quer a centrais estaduais – que atuariam à margem do sistema criado e regulamentado pelo Provimento n. 89/2019 –, quer ao SAEC ou às entidades registradoras, são iniciativas que atraem a inquinação de inconstitucionalidade.

Voltaremos ao assunto.


[1] JACOMINO. Sérgio. Subdelegação de funções e a floração de atividades para-registrais. In Observatório do Registro, 2018. Acesso: https://cartorios.org/2018/11/02/subdelegacao-de-funcoes-e-a-floracao-de-atividades-para-registrais/. Confira também: JACOMINO. Sérgio. Subdelegação de funções e a subversão do sistema registral e notarial in Observatório do Registro, 2018. Acesso: https://cartorios.org/2018/09/15/subdelegacao-de-funcoes-e-a-subversao-do-sistema-registral-e-notarial/.

[2] ADI 2.415, rel. min. Ayres Britto, j. 10/11/2011, p., DJE de 9/2/2012. Acesso: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=1718027.