ONR – vésperas da Lei 14.118/2021

SJ entrevista Marcelo Martins Berthe e Flauzilino Araújo dos Santos

O ONR e o SREI, como organismos sócio corporativos, ainda lutam para se firmar. São muitos os desafios, inúmeros os obstáculos, imensos os interesses que, por aparentemente contrariados, resistem como podem às mudanças corporativas e institucionais.

É preciso, portanto, contar esta história de transformações por que passa o Registro de Imóveis. Faço-o em nome próprio, colhendo, de maneira a mais fidedigna possível, o testemunho daqueles que foram os principais artífices dessa grande transformação do sistema registral brasileiro.

Sei que as crônicas do processo poderão nos dar no futuro uma importante chave interpretativa dos eventos que se sucedem e que vivenciamos no interior desta vetusta e honorável atividade que é o Registro de Imóveis.

O custeio do ONR

Na véspera da publicação da Lei 14.118, de 13 de janeiro de 2021, aguardávamos, ansiosos, o desenlace do trabalho de articulação e convencimento dos atores políticos acerca da importância do custeio do ONR. A questão que se nos apresentava era clara: ou criávamos rapidamente um mecanismo de sustentação e custeio do sistema, que permitiria a autogestão, ou logo cairíamos reféns de iniciativas estritamente privadas, sem qualquer tipo de controle institucional ou regulatório.

Havíamos recebido um sinal positivo da Presidência da República informando-nos que os parágrafos incluídos no art. 76 da Lei 13.465/2017 não haviam sido vetados. A notícia nos veio como um bálsamo. Sabíamos que havia uma intensa campanha de desinformação que se disseminava sub-repticiamente nas antecâmaras do Congresso Nacional e da própria administração, visando entorpecer a discussão e deslocar o eixo que justificava e dava arrimo à ideia de institucionalidade e sustentabilidade do ONR.

Nas vésperas do advento da lei eu dava algumas pistas do que ocorria nos intestinos do sistema em dois pequenos artigos veiculados aqui e alhures:

Registro de Imóveis eletrônico – uma conquista da sociedade brasileira, texto que era uma resposta a uma série de perguntas formuladas por um jornalista da Folha de São Paulo. Na edição de 18/12/2020 constataríamos que as respostas, dadas de forma precisa e objetiva, aparentemente decepcionaram o entrevistador que as reproduziu imperfeitamente em um espaço da grande imprensa que busca desencavar, como ali mesmo se diz, informações dos “bastidores da notícia”.

ONR – Aberta a temporada de caça às narrativas, em que rebatia os argumentos de um grande advogado paulista que foram veiculados em breve artigo publicado no Estadão de 25/12/2020;

Perguntava-me: que “bastidores” seriam esses se todas as nossas iniciativas institucionais eram alardeadas aos quatro ventos? Todos os passos foram dados em conformidade com decisões do CNJ, registrados em processos públicos. De que narrativas se alimentavam os que me entrevistavam?

Toda essa movimentação revelava claramente que havia – e ainda os há – certos interesses que nunca se explicitam claramente e que sempre se apresentam sob as máscaras de slogans funcionais e auto justificadores. O rol desses mitologemas foi explicitado e enfrentado nos artigos supra referidos.

Ao final e ao cabo desse processo turbulento, não se forneceu suficiente combustível para alimentar as narrativas que já eram bastante evidentes nas perguntas formuladas pelo jornalista e nos artigos que adrede se sucediam na imprensa. A nótula publicada na FSP, confrontada com as respostas dadas, revelou-se simplesmente ridícula.

“Que tiro foi esse”?

Mas, afinal, que interesses se aninham por trás de tantas investidas que avançam por caminhos tão sinuosos?

Não se deve esquecer que uma ADI foi proposta no STF contra o ONR por uma entidade da qual nunca se ouvir falar em nosso meio. O curioso, nessa série de artigos, é que o ataque sempre se dá por intermédio de atores que igualmente são completamente desconhecidos do meio jurídico especializado, embora sejam personalidades muito respeitáveis em outras áreas do Direito. São ilustres desconhecidos do Registro de Imóveis.

O ONR e o SREI certamente mexem com interesses muito poderosos. Muitos têm a exata dimensão do que estou falando e não calha aqui explicitá-los. Na condição de presidente do IRIB, à época de todos esses acontecimentos, coube-me a defesa da instituição. Posso lhes garantir que não foi uma tarefa fácil. Não foi simples.

Passado já um certo tempo, hoje assisto aos novos lances como simples espectador, perplexo, mas atento aos movimentos que, longe de amainarem, somente recrudescem dia após dia.

Ainda agora há uma proposição em curso no Congresso Nacional em que o ONR é novamente alvejado. É possível identificar as impressões digitais daqueles que impulsionam essa guerrilha contra o ONR e enfrentam as decisões e iniciativas do próprio CNJ[1]. Acerca desses fatos já não me cabe mais falar, eis que são temas que as entidades corporativas devem curar como possam ou queiram.  

Feitas estas considerações preambulares, deixe-me revelar uma entrevista que fiz com Marcelo Berthe e Flauzilino Araújo dos Santos nas vésperas da lei – no dia 12 de janeiro de 2021.

O registro de nosso colóquio flagrou um instantâneo de alegria e descontração, depois de um estresse tremendo que foi o acompanhamento da tramitação da MP 996, de 2020. (SJ).

SJ – Qual a impressão do senhor a respeito desse importante marco legal para o registro de imóveis eletrônico no Brasil? Foi uma jornada difícil e cheia de obstáculos e o senhor desempenhou um papel relevantíssimo, com uma visão de longo alcance em prestígio à função socioeconômica e à institucionalidade do Registro de Imóveis eletrônico. Como recebe a notícia de que a lei afinal foi sancionada?

MMB – Sérgio, Flauzilino. em primeiro lugar eu gostaria de cumprimentar e dizer da alegria de estarmos aqui juntos e dando continuidade a esse trabalho que se iniciou há tantos anos. Seguimos juntos, coesos, do mesmo jeito, com a mesma disposição de fazer a coisa certa. Esta epopeia teve início lá atrás, quando demos os primeiros passos no projeto do SREI, um longo do percurso percorrido em mais de mais de uma década[2]. Tudo começou em 2009, já passa de uma década… Foram muitas dificuldades, mas aos poucos alcançamos muitas vitórias, na minha opinião.

Tivemos a possibilidade de criar o ONR, mais tarde[3], e de regulamentar o ONR[4], o que acabou se mostrando uma grande vitória no final de 2019. Depois veio a possibilidade e a oportunidade de se institucionalizar o ONR no âmbito da Corregedoria Nacional de Justiça com outro provimento que criou a Câmara de Regulação e o Conselho Consultivo, que são órgãos que vão dar institucionalidade e, mais do que isso, longevidade e continuidade a esse projeto[5].

Porém, faltava algo que é essencial e que tantas vezes nos levou a questionar: como será financiado o ONR? Aí veio um outro trabalho. Primeiro, fizemos algum esforço na esfera administrativa, no bojo do próprio Provimento 109[6], no sentido de criar uma receita pra financiar os trabalhos, isso nos limites do que podíamos fazer na esfera administrativa. Mas não deixamos o assunto de lado e fomos à luta para que conseguíssemos criar essa receita por força de lei. E hoje ela se concretiza depois de uma luta para incluir a emenda cujo texto foi incorporado à lei.

Eu mesmo escrevi os dois parágrafos que vieram a municiar a emenda que acabou sendo aceita e incorporada pelo deputado relator Reginaldo Bulhões, com grande esforço, mas também com empenho da ministra Maria Thereza de Assis Moura, do Flauzilino Araújo dos Santos, do Sérgio Jacomino, de todos que se empenharam nisso.

Depois tivemos a grata notícia de que ele tinha acolhido nossa emenda. Isso já nos parecia uma grande vitória. O texto foi levado ao plenário da Câmara e depois de muitas gestões foi finalmente aprovado. Aí foi para o Senado e veio a aprovação sem nenhuma mudança. E, finalmente, foi a sanção. E hoje, no último dia para a sanção, nós temos a grata notícia de que a lei está assinada, sancionada, com as emendas que precisávamos. Agora, sim, o ONR está institucionalizado, regulamentado, registrado e viabilizado economicamente.

SJ – Este foi o último dia para a sanção e o primeiro dia do resto das nossas vidas como registradores imobiliários, agora sob um novo marco regulatório, um outro paradigma. Afinal, Flauzilino, o Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis sai do papel e vai afinal para a realidade?

FAS – Houve uma grande conjugação e convergência de eventos que culminaram com a regulação que nós temos hoje e que viabiliza financeiramente o registro eletrônico de imóveis no Brasil. A começar pela gestão do ministro Gilmar Mendes, que levou o doutor Marcelo Berthe para a assessoria da presidência do CNJ e como coordenador do Fórum Fundiário, no bojo do qual foi instalado o projeto SREI. Depois tivemos a oportunidade de propor o reconhecimento do SREI dentro da legislação brasileira, em 2016, por ocasião da edição da MP 759, que foi convertida na Lei 13.465/2017, que, além de reconhecer o projeto SREI desenvolvido pelo CNJ, ainda supriu uma lacuna da Lei 11.977/2009, que dizia respeito à forma como os oficiais do RI se organizariam para prestar o registro eletrônico em caráter nacional.

O papel do IRIB

Um outro fator que convergiu de maneira muito positiva foi a eleição do Sérgio Jacomino para o IRIB exatamente num período em que havia necessidade de uma voz dos oficiais de Registro de Imóveis do país que pudesse ser verbalizada por um órgão de representação. E o IRIB, sob a presidência do Sérgio Jacomino, verbalizou, com muita competência, a posição dos oficiais de Registro de Imóveis do Brasil acerca da organização do ONR e também do registro eletrônico.

Tanto que após a edição da Lei 13.465/2017 foi o IRIB, na pessoa do Sérgio Jacomino, quem requereu ao Conselho Nacional de Justiça, mais precisamente à Corregedoria Nacional de Justiça, a fixação das diretrizes para a organização do ONR, já que a Corregedoria Nacional de Justiça foi guindada, por força de lei, à função de agente regulador do ONR. Então, felizmente, tivemos uma convergência de circunstâncias e de fatos. E novamente tivemos a oportunidade de ter o doutor Marcelo Martins Berthe na assessoria da presidência do CNJ, na gestão do ministro Dias Toffoli. E depois, na assessoria da Corregedora Nacional de Justiça, ministra Maria Thereza de Assis Moura.

Todos esses fatos convergiram para que os dispositivos legais dessa nova lei pudessem ser construídos dentro de um rigoroso entendimento jurídico e no interior da própria classe dos oficiais de Registro de Imóveis.

Então, como o doutor Marcelo Berthe pontuou, todas as coisas funcionaram de maneira sincronizada, como numa justa engrenagem. E agora nós vamos dar os demais passos, com determinação e legalidade, porque existem comandos legais a serem cumpridos. E cabe ao ONR e ao agente regulador do ONR, que é a Corregedoria Nacional de Justiça, darem esses passos legais para a implantação do Registro Eletrônico de Imóveis em todo o território nacional.

Sincronicidades

MMB – Sérgio, agora eu vou ser o entrevistador e lhe perguntar: você viveu tudo isso e teve esse papel importante aqui exposto. Acho que nada teria acontecido se não houvesse essa convergência de cada um fazendo a sua parte. E eu tenho a sensação de que nós agimos quase que como instrumentos de uma vontade maior. E eu não acredito que nós pudéssemos chegar até aqui sem que houvesse, de fato, uma vontade superior que desse impulso a tudo o que aconteceu. Como você vê isso tudo?

SJ – Eu já refleti muito sobre isso. Eu considero que nesse dia 12 de janeiro de 2021 se completa um ciclo importante do Registro de Imóveis e da minha própria vida. Eu sei que abraçar o IRIB não foi única e tão somente acolher uma instituição, mas foi atrair para mim mesmo os problemas desse organismo vivo e lhe dar uma contribuição pessoal para torná-lo ainda melhor. É como se os destinos do IRIB estivessem entrelaçados com o meu próprio num plano que escapa inteiramente à minha compreensão.

Como o Flauzilino falou, são eventos sincrônicos que ocorreram como se nós estivéssemos combinados, mas não só entre nós mesmos, que tínhamos o mesmo objetivo, mas entre todos os agentes envolvidos, todos aqueles que direta ou indiretamente deram uma contribuição para que tudo isso se consumasse e se tornasse realidade.

É muito pouco provável que tudo se organizasse de forma espontânea como resultado de um mero acidente a-causal. Tampouco não é verossímil que pudéssemos coordenar racionalmente todos os que deixaram uma contribuição nessa longa jornada. Na verdade, parece haver muito mais do que isso. Em primeiro lugar, uma história belíssima do Registro de Imóveis que todos nós respeitamos. Eu venero a história, venero a memória daqueles que me antecederam, respeito a contribuição que centenas de registradores deram ao longo de 160 anos do Registro de Imóveis no Brasil. E isso faz com que todos nós sejamos soldados em busca de uma boa nova, com um pé fincado no passado e o outro no futuro.

Então, o que nos dá legitimidade, o que nos dá todo esse vigor, cria essa potência de transformação, é a confiança de que nós estamos do lado certo, lutando o bom combate. E eu considero, mesmo, assim como o sr. falou – e fica este registro como uma conversa entre amigos – que, realmente, se não fosse essa inteligência superior, que transcende tudo e todos, e não teríamos chegado a esse ponto culminante do processo.

Eu lembro que perdi noites de sono, foi difícil, foi trabalhoso, foi dramático em alguns momentos, mas se existe um resultado positivo disso tudo é mercê de Deus e da honestidade intelectual de todas as pessoas que se envolveram nesse projeto.

Eu só tenho que agradecer. É uma oportunidade única de estar ao lado de grandes homens, gigantes do Direito, juízes, registradores que deram corpo a esse projeto.


Notas

[1] Trata-se do PL 1925/2021, do deputado paulista Abou Anni (PSL-SP).

[2] Uma visão panorâmica da trajetória do SREI vide: https://folivm.com.br/cnj/.

[3] V. art. 76 da Lei 13.465/2017.

[4] V. Provimento CN-CNJ 89 de 18/12/2019. Acesso: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3131.

[5] V. Provimento CN-CNJ 109 de 14/10/2020. Acesso: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3522.

[6] V. §§ 2º, 3º e 4º do art. 13, posteriormente revogados expressamente pelo Provimento CN-CNJ 115 de 24/03/2021 – acesso: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3823.

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