CEN-TRA-LI-ZA-ÇÃO – entenderam?

CEN-TRA-LI-ZA-ÇÃO – entenderam?
Sérgio Jacomino [1]

A pós-modernidade e o relativismo – a fragmentação do real e a era do post truth

Deparei-me nesta radiosa manhã com o texto As centrais de cartórios e os riscos à proteção de dados pessoais – Centralização do sistema registral é incompatível com as disposições da LGPD, de autoria de renomados juristas que se dedicaram à tarefa de prospectar o que poderia vir a ser o ONR – Operador Nacional do Registro Eletrônico de Imóveis e o SREI – Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis [2].

O texto é uma reiteração de argumentos já apresentados e que parecem dimanar de uma mesma fonte original, fonte esta que, por seu turno, busca diligentemente erigir uma espécie de “mito fundacional” do Sistema SREI-ONR, assentando-o sobre meras narrativas. Nihil novi sub sole, apenas um típico fenômeno de desinformação.

Mas, afinal, qual o eixo essencial do artigo? Em que bases se assenta?

Sob um texto bem escrito, com a citação de autores e temas relevantes, afinal nos deparamos, apenas e tão somente, com uma suíte jornalística. Qual a gema nuclear do discurso? Responde-se: CEN-TRA-LI-ZA-ÇÃO – expressão soletrada, escrita, reescrita, sobrescrita, como se a verdade pudesse ser proscrita e de suas cinzas pudesse brotar a fonte de todas as virtudes.

A história não nos condena

O fato mais impressivo e que sobressai da sucessão de artigos que têm vindo a lume ultimamente[3] é que os críticos alvejam o SREI e o ONR sem terem lido a documentação técnica elaborada, desenvolvida e especificada por engenheiros e juristas de escol[4]. Tivessem-na lido e não encontrariam ali qualquer referência a mitologemas como “centralização de dados”, afronta à LGPD, supressão da pessoalidade no mister registral e muito menos a entrega do sistema a “entidades privadas”. Constatariam, diversamente, que o tema sempre foi enfrentado com base na ideia medular de interoperabilidade do sistema registral, conceito que só ligeiramente foi entrevisto neste texto que parece ignorar as etapas de regulamentação do art. 38 da Lei 11.977/2009 pelo Poder Judiciário brasileiro.

Já observei ser factível, como resposta aos desafios postos aos registradores pátrios, conceber uma infraestrutura em que se possa entrar e sair de todos os nós que compõem o grafo registral pela reafirmação coordenada e arquetípica dessa maravilhosa máquina de descentralidades representada pelo Registro de Imóveis do Brasil[5].

Entretanto, os autores desconhecem tudo isso e vão ao infinito e além. Dizem que a “modernização tecnológica dos cartórios não pressupõe a centralização de bases de dados nas mãos de associação privada escolhida a dedo”.

É claro que não, absolutamente não! Jamais se cogitou de promover a centralização de dados e nada disso ficou consagrado na especificação do SREI. De onde se tiram essas conclusões? Como podem, nesta altura de estudos e discussões institucionais acerca do SREI-ONR, com tantos documentos produzidos, tantos debates travados, sustentar tamanha barbaridade?

A doença imaginária e o santo remédio

Parece incrível que os zelosos críticos se esforcem tanto para combater a centralização de dados, o esvaziamento de prerrogativas de registradores, a afronta à LGPD, ameaças essas representadas pelo SREI e ONR. Soa de fato bizarro que sejam obrigados a criar espantalhos para mais corajosamente atacá-los para defender-nos!

A situação é de fato paradoxal. Lutam contra um fantoche imaginário, um tigre de papel. Pergunto-me: que interesses, afinal, defendem? Quem de nós será contrário à proteção de dados? Quem será a favor de centralização de dados públicos em entidades privadas? Quem pode, em sã consciência, defender a vulneração dos dados públicos confiados aos registradores imobiliários?

O texto recende a um truísmo acaciano.

Alude-se a uma difusa “associação privada escolhida a dedo” com base em legislação que cria “centrais e figuras como ONR”, sem qualquer preocupação de investigação retrospectiva, sem consideração pelo trabalho alheio empreendido ao longo de mais de uma década.

Ora, o ONR foi criado por lei (art. 76 da Lei 13.465/2017) e é regulamentado e fiscalizado pelo Poder Judiciário, a quem compete a relevante tarefa institucional de atuar como agente regulador[6]. É evidente que não podemos suspeitar que o Poder Judiciário pudesse subverter o próprio sistema registral que se acha sob seu poder normativo, regulamentar e fiscalizatório. Como o agente regulador permitiria um ataque ao estatuto jurídico do registrador, à LGPD, vulnerando dados que se acham legalmente mantidos sob a guarda e custódia dos próprios registradores (art. 22 e seguintes da Lei 6.015/1973 c.c. art. 46 da Lei 8.935/1994)?[7]

A nomenklatura registral

A nomenklatura registral – Lênin com o dossiê do ONR

Essa crítica serôdia sustenta que o SREI seria submetido a uma “autoridade única”, uma espécie de nomenklatura registral, cujo poder “aumenta de forma muito acentuada”. Insiste-se na narrativa extravagante, já veiculada anteriormente, que associa a atuação do CNJ e do ONR a “burocratas soviéticos” concertados para “impor uma única tecnologia vencedora”[8].

Ao longo de uma década viemos combatendo a dita “centralização de dados”, explorada por entidades para-registrais que foram espocando ao longo do tempo e ocupando uma lacuna criada por novas demandas econômicas e sociais. Será possível que uma década de lutas e de acesas diatribes redundarão nessa crítica ligeira, injusta, assacada contra aqueles que, artífices do ONR-SREI, deram seus melhores talentos para a sua criação? Haja paciência, Catilina!

Seria o caso de se perguntar: onde estavam esses mesmos críticos quando combatemos as iniciativas de centralização de dados no SINTER – Sistema Nacional de Gestão de Informações Territoriais, instituído pelo Decreto 8.764/2016?[9] Onde estavam quando lutávamos de modo solitário contra a captura dos serviços registrais por entidades para-registrais?[10] Em que trincheira se aninhavam quando nos insurgimos contra o envio de dados das DOI´s às centrais estaduais? Em que lado da fronteira se encontram agora? Não percebem o tanto que se fez e está sendo feito acerca do impacto da LGPD nas atividades registrais?[11]

Como Pilatos no credo

Os autores deram-se ao trabalho de citar, por exemplo, o excelente artigo da engenheira ADRIANA J. UNGER elaborado em parceria com o jurista BRUNO BIONI et alii. Leram-no, mas, aparentemente, não foram capazes de lhe captar o sentido. Tivessem-no lido e examinado com atenção e logo descobririam que o texto contradiz o que disseram. O tema central originou-se, justamente, das discussões travadas no âmbito do IRIB, ONR e Núcleo de Estudos Avançados do SREI (NEAR).

Por incrível que possa parecer, não puderam perceber que o sistema de produção de dados estatísticos e índices foi desenvolvido de modo descentralizado?

O texto de ADRIANA J. UNGER, BRUNO BIONI et alii é de uma clareza solar, mas não custa destacar os seus trechos principais:

“The SREI model has specified a distributed data architecture that allows for the creation of a consolidated list of indicators while keeping the management of records under the responsibility of each registrar, who is held as legal guardian of such records” (…)

“Concerning property registry data, the SREI works as a Distributed Data Network (DDN). According to Popovic (2015), a DDN is a network in which no central repository of data exists” (…)

“data are maintained by and reside behind the firewall of each data holder, which maintains control over its data and has standardized its data according to a common data model. DDN provides several key benefits, with security in place so that each site maintains ownership over its own data, addressing and alleviating data holders’ concerns over data security, data privacy and proprietary interests”. (…)

“The SREI architecture promotes security and interoperability of registry data, maintaining the main characteristic of the Brazilian registry system: public service delegated to private agents (the registrars), who are also currently responsible for providing information about the registry data. DDNs represent a new network architecture paradigm that enables data access and interoperability while mitigating most security and privacy risks associated with data transfer and maintenance of centralized data repositories (Maro et al., 2009)”[12].

ADRIANA UNGER foi uma das engenheiras responsáveis pela especificação do SREI no projeto capitaneado pelo CNJ desde o ano de 2010. Atuou, logo a seguir, no próprio IRIB – Instituto de Registro Imobiliário, na altura sob minha presidência. Ali coordenou uma série de estudos relevantíssimos acerca do Registro de Imóveis Eletrônico tendo dirigido uma POC do sistema registral em plataformas eletrônicas.

SREI – POC

A POC (proof of concept) do SREI relevou, defendeu a descentralização de dados, a interoperabilidade, a criação de mecanismos de proteção de dados pessoais e, por meio de lei, envidou todos os esforços para criar um organismo gestor do sistema sob a fiscalização do Poder Judiciário (§4º do art. 76 da Lei 13.465/2017).[13] No paper citado, os seus autores sustentaram, exatamente, a tese que é apropriada pelos articulistas nessa espécie de guerra santa travada contra uma malade imaginaire[14].

Podemos concluir, por mais paradoxal que isso possa parecer, que defendemos as mesmas teses. Entretanto, um abismo nos separa. Temos, do lado de cá, o testemunho e a abonação de um trabalho teórico e prático empreendido ao curso de mais de uma década em que os temas tratados com ligeireza foram aprofundados e desdobrados em dezenas de encontros científicos.

Esse manancial rico e profundo foi lamentavelmente ignorado pelos críticos.


Notas

[1] Registrador Imobiliário em São Paulo, Doutor em Direito Civil (UNESP), ex-presidente do IRIB – Instituto de Registro Imobiliário do Brasil. Membro Honorário do Centro de Estudos Notariais e Registrais (CENoR) da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Membro ativo na concepção e regulamentação do SREI e do ONR e membro do Conselho Consultivo do Agente Regulador do ONR (Portaria CNJ 57/2020, de 3/11/2020).

[2] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/as-centrais-de-cartorios-e-os-riscos-a-protecao-de-dados-pessoais-01062021.

[3] Um pequeno dossiê dos ataques que o ONR vem sofrendo pode ser consultado aqui: JACOMINO. Sérgio. ONR – vésperas da Lei 14.118/2021. Acesso: https://cartorios.org/2021/05/28/onr-vesperas-da-lei-14-118-2021/.

[4] A especificação do SREI foi feita pela LSI-TEC – Laboratório de Sistemas Integráveis Tecnológico, Instituição de Ciência e Tecnologia (ICT) que atua no desenvolvimento de tecnologia avançada para levar soluções inovadoras à sociedade. A documentação técnica se acha publicada há uma década. Vide: https://folivm.com.br/srei/.

[5] Sobre a questão da centralização de dados, v. JACOMINO. Sérgio. O Centro é Marginal – Viva a Centralidade das Periferias. In Boletim do IRIB em Revista n. 363, abril de 2021, p. 6. Acesso: https://issuu.com/sergiojacomino/docs/boletim_do_irib_363_-_abril_de_2021/s/12098695

[6] Não custa relembrar os marcos constitucionais e legais: JACOMINO. Sérgio. Quem regulamenta o SREI? Acesso: https://cartorios.org/2020/09/19/regulamento-do-srei/.

[7] A Corregedoria Nacional do CNJ criou um grupo de trabalho para estudar o impacto da LGPD nas atividades notariais e registrais. V. Portaria CN-CNJ 60/2020, de 18/12/2020, da Ministra Corregedora Nacional Maria Thereza de Assis Moura. O objetivo do dito GT é a “elaboração de estudos e de propostas voltadas à adequação dos serviços notariais e de registro à Lei Federal n.º 13.709/2018 (Lei Geral de Proteção de Dados). Acesso: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3655.

[8] A afirmação é risível. Se é tecnologia é “vencedora” é porque seria superior às demais… Mas não é nada disso! A afirmação original se acha aqui: JACOMINO. Sérgio. ONR – Aberta a temporada de caça às narrativas. Acesso: https://cartorios.org/2021/02/26/onr-aberta-a-temporada-de-caca-as-narrativas/

[9] Para um passeio à pedregosa batalha contra a centralização de dados no SINTER: https://circuloregistral.com.br/sinter.

[10] JACOMINO. Sérgio. Subdelegação de funções e a floração de atividades para-registrais. Acesso: https://cartorios.org/2018/11/02/subdelegacao-de-funcoes-e-a-floracao-de-atividades-para-registrais/

[11] V. Proteção de Dados e Registro Imobiliário. Estudo coordenado e elaborado pelo Prof. Dr. Juliano Souza de Albuquerque Maranhão (FD-USP), Ricardo Campos (Universidade de Frankfurt) e a pesquisadora Nuria López (PUC/SP): https://near-lab.com/.

[12] ] UNGER, Adriana; BIONI, Bruno; FANTINATO, Marcelo; LUCIANO, Maria. Measuring property registry in Brazil: A privacy by design econometric model. Conference: World Bank Land and Poverty Conference 2020 at Washington, USA. Disponível em: researchgat.net Acesso em 2/6/2021.

[13] POC-SREI – Prova de conceito do SREI. Acesso: https://near-lab.com/poc-srei/.

[14] O texto citado pelos autores se originou de trabalhos e pesquisas feitas no seio do próprio IRIB em projeto de produção de dados estatísticos e índices baseado em algoritmos de descentralização e proteção de dados pessoais. A POC-SREI foi conduzida e dirigida por Adriana J. Unger e Nataly Cruz.

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