Interessado e apresentante na vigente LRP

O pequeno estudo abaixo foi preparado para fornecer subsídios à especificação do SREI – Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis, a cargo do ONR – Operador Nacional de Justiça. Trata-se de estudo em andamento e deve ser concluído em breve. Entretanto, tendo em vista a necessidade de compartilhar parte dos estudos feitos, resolvi postar aqui, na data das discussões travadas com a gestora Nataly Cruz, a quem agradeço pelas preciosas sugestões. (Sérgio Jacomino).

Foi com o advento da Lei 6.015/73 que surgirá o problema de se distinguir claramente os conceitos de apresentante e interessado. A quem incumbe expressamente requerer o simples exame do título e cálculo dos respectivos emolumentos?

Afrânio de Carvalho apontará que o registro será instado pelo interessado e essa postulação poderá ser feita por escrito ou verbalmente. Acrescenta que o acesso dos títulos é facultado a qualquer pessoa, “transformando-se assim o interessado em simples portador, de acordo com uma prática mais do que centenária”[1].

Segundo Carvalho, o registro pode ser rogado, dentre outras modalidades, por requerimento tácito do interessado, tão-só pela apresentação do título inscritível. Encontrando fundamento na regra do art. 857 do Código Civil de 1916 – à qual emprestou caráter genérico – defenderá que a inscrição poderá ser feita por qualquer interessado, “tanto aquele a quem aproveita, como aquele a quem prejudica, bem como pelo representante ou órgão de um ou de outro”[2].

Entretanto, o Código de 2002 não prevê regra simétrica àquela. Ademais, a Lei 6.015/73 acabou consagrando uma redação francamente aberta no artigo 217, verbis: “o registro e a averbação poderão ser provocados por qualquer pessoa, incumbindo-lhe as despesas respectivas”. Uma vez mais, Afrânio de Carvalho criticaria a redação da lei:

“Ao invés de aludir a ‘qualquer interessado’, a nova Lei do Registro declara que a inscrição pode ser provocada por ‘qualquer pessoa’, o que não é exato, bastando, para comprová-lo, lembrar a inscrição da hipoteca legal ou da judicial. Daí interpretar-se a expressão nova como equivalente à antiga”[3].

E enumera, num quadro analítico, aqueles que poderiam ser considerados interessados no registro: partes no negócio jurídico, representantes, mandatários tácitos (portador dos títulos) e terceiros interessados.

Divergindo da opinião de Afrânio de Carvalho, em alentado trabalho publicado na Revista de Direito Imobiliário, Tabosa de Almeida reconheceria que é precisamente por aproveitar os argumentos de Afrânio de Carvalho, que o autor considerava consistentes, que se pode compreender a extensão da expressão qualquer pessoa do art. 217 da LRP. Em primeiro lugar, localizando e identificando o locus de seu advento – o Capítulo IV (Das Pessoas). Abaixo dessa epígrafe, encontramos normas relativas às pessoas. Mas, quaisquer pessoas? A resposta aponta para aqueles que figuram e interagem no próprio registro. Depois, é certo que a regra da apresentação dos títulos por meros portadores – em regra mandatários tácitos – é uma prática mais do que centenária.

Desde os primórdios do Registro Hipotecário pátrio, os títulos, lavrados alhures nos tabelionatos, deveriam ser apresentados a Registro. Daí o campo semântico de apresentante ir tomando, paulatinamente, o sentido de interessado. Vejamos como isso ocorreu no curso da história. Tome-se o exemplo do art. 6º do Decreto 482, de 14 de novembro de 1846:

“Art. 6º – As pessoas que pretenderem registrar alguma hypotheca, deverão apresentar ao Tabellião do Registro geral da Comarca onde se acharem situados os bens hypothecados: 1.º o titulo que constituir a hypotheca, ou em original, ou em traslado authentico: 2.º copia duplicada e fiel do mesmo titulo, assignada pela propria parte, ou seu bastante procurador, e competentemente sellada”. 

Posteriormente, O art. 66 do Decreto 3.453, de 26 de abril de 1865, aperfeiçoaria o regulamento anterior e faria referência a partes legítimas para postularem o registro:

“Art. 66. Em geral e salvas as disposições especiaes deste regulamento (art. 234 e 268), são partes legitimas para requererem o registro aquelles que transmittem ou adquirem algum direito por virtude dos titulos apresentados, assim como as pessoas que os succedem ou representão.

Art. 234. Podem requerer a inscripção da hypotheca especial ou convencional:

§ 1.º O credor.

§ 2.º O devedor.

§ 3.º As pessoas que o representão; ou compareção por parte delles ainda que sem procuração.

§ 4.º Todas as pessoas que tiverem interesse na inscripção.

Art. 268. São competentes para requererem a transcripção as mesmas pessoas que podem requerer a inscripção hypotecaria ( art. 234).

Tal regra se repetiria no art. 63 do Decreto 370, de 2 de maio de 1890.

Já no Decreto 18.542, de 24 de dezembro de 1928, houve a condensação das disposições constantes dos regulamentos anteriores:

“Art. 223. O registro será promovido por qualquer interessado, constante dos titulos apresentados, seus successores ou representantes”.

No Decreto 4.857, de 9 de novembro de 1939 a mesma regra se acha no art. 233.[4]

Serpa Lopes já advertia que “na interpretação do que se deve entender por interessado na promoção do registo, deve presidir uma visão mais larga possível, tendente sempre a facilitar e não a embaraçar ou, por qualquer forma, tolher a sua realização”.[5]

Por fim, a atual redação do art. 217 pode ser considerada defectiva pelos equívocos que gera. Melhor era a redação do art. 233 do regulamento anterior, que se referia a qualquer interessado, muito embora os reparos de Serpa Lopes.

Como se sabe, confundem-se amiúde os papéis de interessado e apresentante, de modo que é necessário solver o problema relevando-se os efeitos que a ação ou a omissão acarretem. Assim, sempre que o ato envolver a produção de qualquer sorte de efeitos jurídicos, repercutindo, negativa ou positivamente, na situação jurídica inscrita, o intérprete deverá ser conduzido ao sentido de relevar os interesses jurídicos envolvidos e aí estaremos diante da figura de interessados

A regra pode ser haurida do princípio de rogação, com apoio no art. 13 da Lei sob comento. 

O problema não é novo. Já na vigência do antigo regulamento, sentiu-se a necessidade de aclaração em correições realizadas pela Corregedoria Geral de Justiça de São Paulo. Temos, aqui, uma antecipação do que viriam a ser as atuais normas de serviço. Assim verberava o então Corregedor-Geral da Justiça do Estado de São Paulo, Des. Samuel Francisco Mourão, em decisão proferida a 3 de julho de 1961, publicada no Diário Oficial do Estado a 4 de julho do mesmo ano.:

“Apresentante (artigo 183 do decreto 4.857, supra) não é o mero portador do título levado a registro. É o adquirente, ou o transmitente, seus sucessores, ou seus representantes, o interessado, em suma, no registro, como o credor hipotecário etc. (V. decreto federal 370, do 2/5/1890 – artigos 63, 211, 244; Código Civil – artigos 838, 839, 857.)”[6].

Mas as distinções sempre foram feitas de modo muito preciso. Por exemplo, no Agravo de Petição 71.658, o então Corregedor Geral, Pedro Chaves, lançaria interessantes observações: “o apresentante a que se refere o Decreto 4.857, no art. 217, não pode ser outro que o interessado a que alude o mesmo decreto no art. 233, qualidade que o agravante positivamente não tem. Não foi sem razão que o despacho de sustentação invocou o sempre atual ensinamento de Celso – scire leges non est verba earum tenere, sed vim ac potestatem… [NE: saber a lei não é reter suas palavras, mas sua intenção e objetivo]”[7].

O Conselho Superior da Magistratura historicamente afastou certas confusões, aclarando, em boa orientação, as controvérsias que surgiam – como as de considerar o tabelião como “interessado” na suscitação de dúvidas[8] ou mesmo quando escreventes de cartórios de registro de imóveis pretendessem ilegitimamente impugná-las[9]. O sentido exato estava entranhado no regulamento de 1939 e o v. órgão sempre o reconheceu:

“Realmente, o sentido exato do termo apresentante, no Decreto citado, não é o vulgar de portador material do título. Apresentante é a pessoa juridicamente interessada no registro, aquela a quem tal ato aproveita.

É por essa razão que ao art. 233 do Decreto nº 4.857 limita a legitimação para promover o registro aos interessados constantes dos títulos apresentados, seus sucessores, ou representantes.

Tal regra não impede que o apresentante (interessado jurídico no título) confie a terceiro; para que o exiba perante o Oficial, com o fim de registro, mas o portador material não ganha com isso a qualidade de apresentante, que continua com o interessado no negócio, salvo se agir por conta e em nome do interessado, como procurador com poderes bastantes”[10].

Posteriormente essa distinção e definição aninharam-se no item 15, XIII, do Provimento 1/69, de 16 de abril de 1969, da Corregedoria-Geral da Justiça do Estado de São Paulo:

“XIII – Ter em conta que o apresentante não é mero portador do título levado a registro. É o adquirente, ou o transmitente, seus sucessores, ou seus representantes, o interessado, em suma, no registro”[11].

Walter Ceneviva critica a expressão apresentante. Segundo ele, “apresentante não é a pessoa que comparece com o título, para oferecê-lo a registro, mas aquela que tem interesse no referido assento, como titular da eventual prioridade ou precedência dele consequente. O termo apresentante, no caso, é mal-empregado, já que a interpretação gramática pode levar a tomá-lo como sinônimo de portador do papel, daquele que o exibe ou entrega. Como a lei, em outras disposições, alude a parte, esta expressão seria mais adequada”[12].

Baseado em sua doutrina o CSMSP voltaria ao tema das distinções entre essas figuras – agora sob a égide da atual LRP[13]. A partir deste precedente, não se reconheceria legitimidade ao mero apresentante para impugnação de dúvidas suscitadas. Flauzilino Araújo dos Santos fere o tema:

“Interessado, na dicção da Lei de Registros Públicos, não se confunde com o apresentante ou portador. Eles podem ser qualquer pessoa que esteja de posse do título, ao passo que interessado é aquele que direta ou indiretamente tenha legítimo interesse no movimento ou mutação do registro, o que deverá ser cabalmente demonstrado”[14].

Já anteriormente ele se havia debruçado sobre o assunto chegando à conclusão de que a “regra é o interessado apresentar o título objetivando o registro. Exceção é a apresentação do título apenas para exame e cálculo de emolumentos e sempre, repita-se, mediante pedido expresso do apresentante[15].

Certamente o registrador paulistano levou em consideração que, aninhado no vocábulo apresentante, encontrado na parte final do art. 12 da LRP, se acha o verdadeiro sentido de interessado.

Mas quem é essa figura – apresentante – que desponta na Lei em várias passagens? Em primeiro lugar, é preciso destacar a tradição de nosso direito registral, que sempre se referiu ao movimento do interessado na apresentação do título a registro. Por essa razão, nos termos do art. 13, II, da LRP, o ingresso do título para mero exame e cálculo (art. 12, § único) implica postulação expressa de quem demonstre e decline legítimo interesse para tanto. Trata-se de renúncia excepcional a direitos que a Lei garante tão-só com a prenotação do título.

[este estudo seguirá no contexto da especificação do SREI, a cargo do ONR – Operador Nacional do Registro de Imóveis]. 15.7.2021, SJ.

Nota do editor

Em 23/12/2023, após o advento da Lei 14.382/2022, escrevi um pequeno capítulo sobre o tema aqui tratado – Interessados, apresentantes, partes… Indico ao leitor interessado o texto: Instrumentos particulares, títulos digitalizados – requisitos técnicos. As reformas sucessivas da Lei 14.382/2022


[1] Carvalho. Afrânio. Registro de Imóveis. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 1982, p. 326.

[2] Loc. cit., p. 329

[3] Idem, ibidem.

[4] No Decreto-Lei 1.000, de 21 de outubro de 1969, a regra se achava consagrada no art. 218.

[5] Serpa Lopes. Miguel Maria de. Tratado dos Registos Públicos. Vol. IV, 4ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1961, p. 375, n. 724.

[6] V. Provimento da CGJSP de 3/7/1961 que dispôs sobre inúmeros aspectos das serventias baseados em “correições gerais ordinárias, realizadas em maio e junho de 1961, nas comarcas de Socorro, Serra Negra, Amparo, Itatiba e São Roque”. V. Revista dos Tribunais n. 310, de 1961, p. 767. Acesso: http://kollsys.org/q3i.

[7] Agr. Pet. 71.658, Piracicaba, j. 29/4/1955, DOJ 21/5/1955, rel. des. Pedro Chaves. Acesso: http://kollsys.org/s8.

[8] Veja-se no corpo do v. aresto citado acima na nota 9: “o Tabelião que lavra uma escritura, com a prática do ato e entrega do traslado exaure suas atribuições funcionais e assim se aceita a incumbência da prática de outros, o faz como simples intermediário, gestor encarregado ou mandatário, mas nunca como interessado”.

[9]  “Observa-se que quem impugnou a dúvida, como apresentante, foi um escrevente do 2º Ofício de Votuporanga, quando o Conselho, através de reiteradas recomendações, tem firmado que o apresentante do título, a que se refere a lei, só pode ser um interessado e não qualquer pessoa que leva esse título ao Registro de Imóveis para transcrição”. Agr. Pet. 87.783, Votuporanga, j. 10/6/1958, rel. des. VASCONCELLOS LEME. Acesso: http://kollsys.org/ncj.

[10] 171.328/1968, Promissão, j. 24/9/1968, DOJ 8/10/1968, rel. des. Hildebrando Dantas de Freitas. Acesso: http://kollsys.org/fax.

[11] Provimento CG 1/1969, de 16/4/1969, Des. Hildebrando Dantas de Freitas, Corregedor-Geral da Justiça. Acesso: http://kollsys.org/t8g. Posteriormente, a regra trasladou-se para a Consolidação de Normas da Corregedoria Geral de Justiça de São Paulo. NSCGJSP. Normas do pessoal. Provimento CG 1/1973, de 17/10/1973, Des. José Carlos Ferreira de Oliveira. V. art. 773: “O apresentante do título não é o seu mero portador, mas, o adquirente ou o transmitente, seus sucessores, ou seus representantes”. Acesso: http://kollsys.org/rsh.

[12] CENEVIVA, Walter. Lei dos Registros Públicos comentada. 18ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p.29, n. 19.

[13] Ap. Civ. 718-0, Sorocaba, j. 15/12/1981, DOJ 13/1/1982, rel. des. BRUNO AFFONSO DE ANDRÉ. Acesso: http://kollsys.org/wu.

[14] Santos. Flauzilino Araújo dos. Princípio da legalidade e registro de imóveis. Boletim do Irib em Revista, n. 318, set./out. 2004, p. 28.

[15] Idem. Algumas linhas sobre a prenotação. Revista de Direito Imobiliário,RT/Irib, v. 43, jan./abr. 1998, p. 62,

Deixe uma resposta