Agonia central – ou anomia registral? – bis

Introdução

Gostaria de compartilhar aqui pequenas nótulas reflexivas dedicadas a um tema que parece ter despertado vivo interesse entre notários e registradores – especialmente a partir do advento do Provimento 89/2019, que criou o ONR – Operador Nacional do Registro Eletrônico de Imóveis e que deu um renovado ânimo ao SREI – Sistema de Registro de Imóveis eletrônico.

Os temas centrais que permeiam todas as discussões envolvendo os temas do registro eletrônico são estes: centralização versus descentralização de dados e cobrança de taxas pela prestação de serviços complementares por birôs de serviços eletrônicos estaduais.

Ainda há pouco recolhemos o sentimento de alguns setores da classe registral que manifestaram perplexidade com a situação que se foi delineando com o avanço de iniciativas que temos chamado de para-registrais. Enquanto nos desgastamos em diatribes intestinas sobre o tema da centralização de dados e implicações com a LGPD, empresas privadas avançam sobre o Registro de Imóveis, “centralizando dados e sendo útil”, como alguém registrou com certa dose de realismo – ou de cinismo.

Devo confessar que igualmente experimento o mesmo sentimento de perplexidade. Todavia, como pretendo demonstrar logo abaixo, penso que o tema da centralização versus descentralização de dados – e o impacto dos modelos organizativos no sistema de proteção de dados pessoais – é, no fundo, uma falsa questão. Tenho sustentado que é possível conciliar os interesses que nascem de novas demandas da sociedade com a tutela e a proteção de dados pessoais, harmonizando as ideias de universalização e centralização de acesso com a distribuição de dados, molecularizando todo o sistema registral brasileiro.

No transcurso dessas discussões adveio a Lei 14.206, de 27 de setembro de 2021, recolocando o tema na arena política-corporativa. A centralização de dados e a cobrança de taxas heterodoxas são, de fato, uma indigestão institucional provocada por ideias extravagantes, imperfeitas e fora do lugar.

O art. 42-A da Lei 8.935/1994 é um corpus alienus na lei de notários e registradores. Sabemos a origem da iniciativa, mas não sabemos o seu derradeiro desenlace. Entretanto, calha lançar algumas nótulas reflexivas acerca do que se nos afigura mais do que uma defectiva redação legislativa; este será, possivelmente, o primeiro passo de uma aventura temerária que provocará um cisma ainda maior das especialidades do serviço notarial e registral, retardando sua regeneração e modernização.

Art. 42-A da Lei 8.935/1994 – Nótulas reflexivas

Vamos ao texto:

“Art. 42-A. As centrais de serviços eletrônicos[1], geridas por entidade representativa da atividade notarial e de registro[2] para acessibilidade digital a serviços e maior publicidade, sistematização e tratamento digital de dados e informações inerentes às atribuições delegadas[3], poderão fixar preços e gratuidadespelos serviços de natureza complementar que prestam e disponibilizam aos seus usuários de forma facultativa[4].”

[1] – Centrais de serviços eletrônicos.

Note-se, de partida, que a expressão tradicional, cunhada por MANUEL MATOS[1] sempre foi “serviços eletrônicos compartilhados”, conforme consagrado primeiramente no Provimento Conjunto 1/2007, de 29/8/2007, baixado por MARCELO MARTINS BERTHE e MÁRCIO MARTINS BONILHA FILHO[2] e aproveitada posteriormente pelo Provimento 32/2007[3], da Corregedoria Geral de Justiça de São Paulo. A experiência paulistana ganharia foros de regulação uniforme no Estado por meio do Provimento 29/2007[4], pelo qual tabeliães e registradores do Estado de São Paulo seriam autorizados a realizar certos atos por processos veiculados em meios inteiramente eletrônicos.

Após uma sucessão de atos normativos baixados no estado de São Paulo, a Corregedoria Nacional de Justiça editaria e publicaria o Provimento 47/2015, colhendo um trabalho pioneiro da ARISP – Associação de Registradores Imobiliários de São Paulo, presidida por FLAUZILINO ARAÚJO DOS SANTOS – e disciplinaria os serviços eletrônicos compartilhados, expandindo a experiência paulista para todo o território nacional[5].

A expressão “serviços eletrônicos compartilhados” faria fortuna. Em várias passagens ela seria utilizada. O seu significado e a tradução mais adequada e autorizada que se lhe poderia emprestar foi-nos revelada pelo Ministro DIAS TOFFOLI em voto proferido no PP 00003703-65.2020.2.00.0000:

“compartilhamento das plataformas eletrônicas não retira a autonomia e a independência de cada registrador no exercício do seu juízo de qualificação dos títulos a registrar conforme as suas competências, nem tampouco os exime da responsabilidade de guarda e conservação dos assentamentos a seu cargo. Todavia, é da natureza dos meios eletrônicos a adoção de padrões universais, para o nivelamento dos serviços. Mas eles são meras ferramentas de trabalho que podem ser compartilhadas, por simples questão de racionalidade, adequação, eficiência e economicidade. É isso apenas”[6].

O fato de as centrais eletrônicas de serviços compartilhados terem sido assumidas por associações de classe, disse o Sr. Ministro, não muda a natureza pública dos serviços prestados pelos oficiais de Registro de Imóveis por intermédio da plataforma compartilhada:

“Essas centrais poderiam estar sob a responsabilidade de associações de classe ou organizadas diretamente pelos próprios registradores. Isso pouco importa. O comando legal foi dirigido aos registradores imobiliários e nada impediria dessem cumprimento à determinação da lei por meio de uma associação de registradores”[7].

Em suma, a expressão – serviços eletrônicos compartilhados – traz ínsita a ideia de que se estabelece um concurso de esforços materiais e humanos para consumação do registro eletrônico de modo rápido, ágil e eficiente, a cargo de cada unidade de registro de imóveis, tal como previsto no art. 37 da Lei 11.977/2009, tudo sem que a sua natureza se transubstancie. A centrais serão, apenas e tão-somente, uma longa manus de cada registrador brasileiro consorciado na iniciativa de racionalização de processos.

A inovação legislativa revela uma subversão semântica que julgo digno de nota: suprimiu-se a ideia de compartilhamento, buscando-se uma relativa autonomia das centrais que foram deslocadas do seu eixo primordial e regulamentar, transformando-se em meros satélites a orbitar uma entidade nacional de notários e registradores que não revelou o seu nome e nem seus objetivos.

Já não há compartilhamento de recursos materiais e humanos, tal e como previsto no Provimento 47/2015 (já revogado, art. 3º e seus parágrafos) e no Provimento 89/2019 (art. 24 e seus parágrafos). Nesse sentido, os “serviços de natureza complementar”, tal como previsto na norma alterada, jamais poderão ser os serviços próprios e indelegáveis de notários e registradores e isso por uma boa e singela razão: o que é ato próprio e indelegável de registradores será necessariamente obrigatório – jamais complementar, nem eventualmente gracioso, a exclusivo talante de seus protagonistas.

Além disso, ainda que se admita que tais centrais possam ser meros ramais despersonalizados e dependentes da “pessoa jurídica de direito privado” que as gerencia, é preciso definir claramente sob qual fundamento legal esse arcabouço jurídico repousa, vinculando ramais estaduais com o caráter sui generis de sucursais anômalas em relação à matriz singular.

Quanto mais se observa a esdrúxula infraestrutura criada pela lei mais nos afastamos dos atos e atividades próprios dos notários e registradores – e mais nos achegamos à prefiguração de entes privados que se formam e organizam sob a égide da autonomia privada, sem qualquer controle, fiscalização e regulação do Poder Público.

[2] Entidade representativa da atividade notarial e de registro

As tais centrais de serviços criadas pela lei vinculam-se a uma pessoa jurídica de direito privado que representa… “atividades”? Soa realmente extravagante a redação e só por abuso de linguagem se pode chegar ao sentido pretendido: entidade representativa de notários e registradores.

Entretanto, há uma dificuldade de partida: qual seria essa entidade inominada? Há várias entidades nacionais representativas de notários e registradores em sua legal e constitucional especialidade (IRIB, ARPEN, ANOREG, IEPTB, CNR, IRTDPJ, CNB). Qual delas teria a atribuição legal para “gerir” centrais estaduais das diversas especialidades que compõem o quadro da Lei 8.935/1994? Do ponto de vista estritamente legal e constitucional pode-se responder: nenhuma – salvo o ONR, que, por expressa disposição legal mantém vinculadas todas as unidades de registro de imóveis dos estados e Distrito Federal (§ 5º do art. 76 da Lei 13.465/2017), sob o a regulação, disciplina e permanente fiscalização da Corregedoria Nacional de Justiça (§ 5º do art. 76 da Lei 13.465/2017).

Além disso, não é cabível que uma pessoa jurídica de direito privado possa gerir, como reza a lei, outras pessoas jurídicas de direito privado, regularmente constituídas nos estados, sem malferir a sua autonomia.

Não se pode pretender igualmente (o que parece se insinuar na estereotipação infraestrutural enunciada) que a entidade (no singular), ou seus ramais estaduais, possam atuar monopolisticamente na prestação de serviços que são meramente complementares e de cariz estritamente privado. Tais entes não podem receber tal favor da lei, remanescendo tal dispositivo como corpo estranho na Lei dos Notários e Registradores.

[3] – Acessibilidade digital  – publicidade, sistematização e tratamento digital de dados e informações inerentes às atribuições delegadas

“Acessibilidade”. Provavelmente, o que debalde se buscou foi uma expressão precisa – tal como “universalização de acesso”. À parte o uso de uma palavra já tangida por sentidos muito próprios – acessibilidade[8] – o foco mais importante deve ser posto, entretanto, na  “sistematização e tratamento digital de dados e informações inerentes às atribuições delegadas”.

Afinal, o que esse sistema criado pela lei pretende? Uma vez mais nos deparamos com a assimilação e apropriação de atividades que são próprias de notários e registradores, trespassadas a entidades exógenas e estranhas ao sistema constitucional, sem qualquer controle ou fiscalização direta pelo Poder Público. A coleta, sistematização e tratamento de dados de caráter pessoal e patrimonial dos cidadãos brasileiros pelos Registros Públicos e Notas devem pautar-se pelo princípio da finalidade[9].

A lei alude a “tratamento digital de dados”. Vejamos como a LGPD o define: “toda operação realizada com dados pessoais, como as que se referem a coleta, produção, recepção, classificação, utilização, acesso, reprodução, transmissão, distribuição, processamento, arquivamento, armazenamento, eliminação, avaliação ou controle da informação, modificação, comunicação, transferência, difusão ou extração” (inc. X do art. 5º da LGPD).

Neste contexto, quais dados poderão ser tratados e compartilhados por essa entidade? O permissivo do art. 42-A da Lei 8.935/1994 cinge-se a dados que não se relacionam diretamente com os atos próprios de notários e registradores. Quando tratados, como diz o dispositivo, tais dados poderão ser veiculados por meios e canais que não se confundem com os instrumentos de publicidade jurídica criados pela Lei de Registros Públicos. São coisas muitos distintas, são atividades imiscíveis.

Afigura-se ao intérprete a coexistência de dois sistemas que não se coordenam nem implicam reciprocamente. Os “dados e informações inerentes às atribuições delegadas”, passíveis de serem tratados, não pode podem ser tredestinados. A inerência é um “estado de coisas que, por natureza, são inseparáveis e que somente por abstração podem ser dissociadas” e representa uma relação “entre o sujeito e uma qualidade que lhe é intrínseca” (HOUAISS). O que é inerente ao sistema notarial e registral (art. 236 da CF) não pode ser subdelegado a entes privados personalizados ou não. Ou bem se tem o sistema notarial e registral, tal e como previsto na Constituição Federal, com repartição de competências e delegação em caráter pessoal, ou estamos diante de uma nova figuração de sistemas extravagantes de publicidade, como antevisto no voto do Ministro AYRES BRITO a cargo de entidades que reclamam o “conduto da concessão ou da permissão, normadas pelo caput do art. 175 da Constituição como instrumentos contratuais de privatização do exercício dessa atividade material (não jurídica) em que se constituem os serviços públicos”[10]

O tema é sensível e já mereceu um enfrentamento cerrado. A Corregedoria Geral de Justiça do Estado de São Paulo, por exemplo, já deixou assinalado que, “por força do art. 236 da Constituição da República, os dados entregues ao registro de imóveis estão sob a guarda dos relativos Oficiais, e de mais ninguém (Lei nº 6.015/1973, arts. 22, 24, 26 e 167 e 169; Lei nº 8.935/1994, art. 46, caput; Prov. nº 89/2019, arts. 8º, § 2º, e 11; NSCGJ, Cap. XIII, itens 9 e 36)” e conclui:

“Por conseguinte, os Registradores são controladores e responsáveis pelas decisões referentes ao tratamento (LGPD, art. 5º, VI, c. c. art. 23, § 4º; NSCGJ, Cap. XIII, item 129). Quaisquer outros órgãos, instituições, serviços ou associações têm funções meramente ancilares, subordinadas ao modelo que a Carta de 1988 adotou: a delegação é feita a cada Oficial concreto, e de cada um, portanto, a missão de velar pelo respeito à proteção dos dados postos em seus arquivos”[11].

O “tratamento de dados pessoais destinado à prática dos atos inerentes ao exercício dos respectivos ofícios” acha-se a cargo dos notários e registradores brasileiros, a quem se delegou, pessoalmente, tal atribuição[12]. Rezam as NSCGJSP:

“Consideram-se inerentes ao exercício dos ofícios os atos praticados nos livros mantidos por força de previsão nas legislações específicas, incluídos os atos de inscrição, transcrição, registro, averbação, anotação, escrituração  de livros de notas, reconhecimento de firmas, autenticação de documentos; as comunicações para unidades distintas, visando as anotações nos livros e atos nelas mantidos; os atos praticados para a escrituração de livros previstos em normas administrativas; as informações e certidões; os atos de comunicação e informação para órgãos públicos e para centrais de serviços eletrônicos compartilhados que decorrerem de previsão legal ou normativa”[13].

A parte final do dispositivo não deve toldar a compreensão e promover uma expansão de sentidos acerca do permissivo legal (comunicação e informação para centrais). Entenda-se: as centrais referidas na norma estadual paulista são as centrais de serviços eletrônicos compartilhados, criadas por ato normativo do CNJ (Provimentos 47/2015 e 89/2019) com o sentido já indicado anteriormente – longa manus dos próprios registradores que atuam sob a fiscalização e regulação do Agente Regulador (§ 4º do art. 76 da Lei 13.465/2017).

Às Centrais de Serviços Eletrônicos Compartilhados se atribuiu a realização de certas tarefas muito limitadas – produção de índices e dados estatísticos, plataforma de acesso e envio de títulos sem retenção de dados que transitam pelo hub registral –  portal de penhora online, indisponibilidade de bens etc. Jamais se consentiu com a transmigração de dados para tratamento e utilização por entidades exógenas.

No caso concreto de São Paulo, o compartilhamento de dados, autorizado em caráter extraordinário, visou especificamente  formulação de estatísticas – item 397 (Regularização Fundiária), itens 414 e 415 (índices conjunturais do mercado imobiliário) do Cap. XX, das NSCGJSP. Nada mais. Não “podem ser transmitidos dados que de qualquer forma possam ser relacionados a pessoa física” e nem mesmo aos dados objetivos de imóveis matriculados[14].

Nunca é demais recordar que os serviços notariais e de registro, exercidos em caráter privado por delegação do Poder Público, terão o mesmo tratamento dispensado às pessoas jurídicas de direito público (§ 4º do art. 23 da LGPD). Os serviços de notas e de registro só podem tratar os dados pessoais com vistas ao “atendimento de sua finalidade pública, na persecução do interesse público, com o objetivo de executar as competências legais ou cumprir as atribuições legais do serviço público” (art. 23, caput, da LGPD).

Como vimos anteriormente, os Registros Públicos devem observar o princípio que regra as atividades de gestão, tratamento e veiculação de dados registrais: princípio da finalidade. A finalidade precípua do sistema registral é constituir, declarar e publicizar situações jurídicas relativas a bens imóveis ou direitos inscritos. Nesta perspectiva estão proibidos de “transferir a entidades privadas dados pessoais constantes de bases de dados a que tenha acesso”, com exceções da própria lei (§1º do art. 26 da LGPD). Mesmo transparecendo uma aparente faculdade legal (art. 42-A da LNR) o compartilhamento exige uma finalidade específica, não serviços meramente complementares e facultativos.  

Uma vez mais: não se pode consentir na centralização de dados, transformando o sistema registral em um birô de informações pessoais e patrimoniais hauridas dos livros de registro ou de repositórios eletrônicos confiados, com exclusividade, aos notários e registradores brasileiros.

[4] Serviços de natureza complementar e facultativa – preços e gratuidades

Vimos anteriormente que os serviços qualificados na lei como complementares e meramente facultativos não se confundem com os atos próprios praticados por notários e registradores, atos vinculados e obrigatórios, além de regulados e fiscalizados pelo Poder Público competente.

Esse enquadramento afasta as ditas centrais (e a própria entidade que as vincula) do plexo legal e constitucional que conforma as atividades notariais e registrais brasileiras. As centrais de serviços compartilhados não se imiscuem nessa figuração de cariz privatístico. Trata-se de uma “fuga privatística”, na expressão bastante feliz do desembargador RICARDO DIP. Suas intuições sempre foram corretas na identificação do fetiche tecnológico que encanta desavisados. Em vez de “um portal de acesso unitário aos dados hoje sob a custódia dos cartórios”, diz o jurista de modo quase profético, busca-se a instituição de uma central de dados “posto sob a gestão direta de uma entidade privada partícipe das receitas que se auferirem”. E remata:

“Trata-se, pois, de uma inédita fuga privatística de uma atividade definidamente público-jurídica, a que se adiciona o presságio de uma complexa e uniformista solução tecnológica, de maneira a depor-se em mãos dos técnicos a direção do serviço registral”[15].

Novamente se insinua entre nós a cobrança de meros “preços” pelos serviços complementares e facultativos prestados por entes privados. Nem mesmo isso há de abalar a firme orientação que vem de ser confirmada pela Corregedoria Nacional de Justiça. Desde o episódio representado no PP0003703-65.2020.2.00.0000[16] a diretiva se impôs pela voz do Ministro HUMBERTO MARTINS. Segundo ele a cobrança de “taxas administrativas” pela prestação de serviços de centrais é uma aberração:

“Um absurdo em si mesmo! Não cabe a nenhuma central cartorária do País efetuar cobranças dos seus usuários, ainda que travestidas de contribuições ou taxas, pela prestação de seus serviços, sem previsão legal”[17].

O Ministro DIAS TOFFOLI averbaria:

“O direito não se conforma com uma interpretação capaz de permitir seja burlada uma vedação legal expressa e irretorquível. Registradores e notários são remunerados pelos emolumentos previstos em lei, e não por chamadas ‘taxas, cobradas por associações de classe aos usuários que pretendam ter um serviço eletrônico de qualidade’”[18].

Mais tarde, o Corregedor Nacional de Justiça, o mesmo Ministro HUMBERTO MARTINS, editaria o Provimento CNJ 107/2020[19] que cravou, logo em seus primeiros artigos, o seguinte:

“Art. 1º É proibida a cobrança de qualquer valor do consumidor final relativamente aos serviços prestados pelas centrais registrais e notariais, de todo o território nacional, ainda que travestidas da denominação de contribuições ou taxas, sem a devida previsão legal.

Art. 2º Os custos de manutenção, gestão e aprimoramento dos serviços prestados pelas centrais devem ser ressarcidos pelos delegatários, interinos e interventores vinculados as entidades associativas coordenadoras”.

Por fim, o mesmo entendimento seria reiterado em recente decisão da Sra. Corregedora Nacional de Justiça, Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, no PP 0010562-97.2020.2.00.0000. Nesta respeitável decisão, o tema da cobrança de preços pela prestação de serviços complementares voltou a ser agitado em razão da informação prestada nos referidos autos de que haveria legislação estadual sancionando tal prática e autorizando a sua cobrança por certas centrais estaduais. Registrou a Sra. Ministra que “as leis estaduais se referem à prestação de serviços complementares, a serem contratados, facultativamente, pelos usuários, não autorizando, portanto, os serviços cogitados pela requerente nestes autos, que são próprios dos registradores”[20].

Em sede de “embargos” – incabíveis na espécie – o representante voltaria a agitar os temas feridos na r. decisão, ocasionando nova decisão da Sra. Corregedora Nacional de Justiça:

“Como mencionado, por ser um serviço próprio, este deve ser prestado pelo registrador, que pelo serviço já é remunerado por emolumentos, não sendo possível cogitar de cobrança a tal título, por intermédio das centrais, sob pena de responsabilidade disciplinar, sem prejuízo da repetição do indébito, na forma prevista no Provimento 107/2020”.

O voto do Ministro DIAS TOFFOLI deve ser lembrado por constituir-se na base e fundamento para a decisão reiterada, anotando-se, de passagem, que os serviços complementares, oferecidos facultativamente aos usuários, não podem se converter em favorecimento a utentes preferenciais, em detrimento dos demais, “como se fosse possível diferenciar os usuários do serviço público entre aqueles que pagam e os que não pagam pelo conforto, disponibilizando-se a eficiência apenas para os que pagarem uma taxa de facilidade não prevista em lei e de duvidosa legitimidade constitucional”, disse o Ministro TOFFOLI[21].

Por identidade de razão, pode-se cogitar que será de duvidosa constitucionalidade o dispositivo agregado artificiosamente na Lei 8.935/1994 (art. 42-A).

Conclusões

O texto que se enquistou na Lei 8.935/1994 é bastante sofrível. Pode levar a equívocos e a riscos. O seu advento mobilizará a Corregedoria Nacional de Justiça a regulamentar o dispositivo. Como dito na mesma decisão, o “advento desse novel dispositivo legal, referindo-se a serviços de natureza complementar prestados facultativamente aos usuários pelas centrais de serviços eletrônicos, tornou imperativo o exercício da competência regulatória, pela Corregedoria Nacional, de tal modo a viabilizar a interpretação uniforme, em âmbito nacional, acerca do que estabelece a lei”[22].


Notas

[1] A expressão foi cunhada por MANUEL MATOS. Depois de uma experiência exitosa na cidade de São Paulo, no dia 12/4/2007, em evento realizado no Hotel Renaissance (SP), seria lançada a plataforma digital em parceria com o IRIB. V. Boletim Eletrônico IRIB n. 2.902, 11/4/2007. Cfr. MATOS. Manuel. CRSEC, Central Registral de Serviços Eletrônicos Compartilhados: o IRIB na era digital. São Paulo: Boletim do IRIB em Revista n. 332, 2007, pp. 114-117.

[2] Provimento Conjunto 1 e 2 VRPSP 1/2007, de 29/8/2007. Marcelo Martins Berthe e Márcio Martins Bonilha Filho. Acesso: http://kollsys.org/prs.

[3] Provimento CG 32/2007, de 11/12/2007, DJ 13/12/2007, Des. GILBERTO PASSOS DE FREITAS. Acesso: http://kollsys.org/9y2.

[4] Provimento CG 29/2007 de 4/10/2007, DJ 9/10/2007, des. GILBERTO PASSOS DE FREITAS. Acesso: http://kollsys.org/9rr. Para consultar o dossiê de atos normativos da CGJSP: https://bit.ly/3uDnyPm.

[5] Provimento CNJ 47/2015 de 19/6/2015, Min. NANCY ANDRIGHI. Acesso: http://kollsys.org/hzt. O dito ato normativo seria revogado expressamente pelo Provimento CNJ 89/2019, de 18/12/2019, DJ de 19/12/2019, Min. HUMBERTO MARTINS (art. 37). Acesso: http://kollsys.org/oay.

[6] PP 0003703-65.2020.2.00.0000, Minas Gerais, j. 23/6/2020, rel. Min. HUMBERTO MARTINS. Acesso: http://kollsys.org/p2e.

[7] Idem, ibidem.

[8] Segundo o inc. I do art. 3º da Lei 13.146/2015 a acessibilidade é a “possibilidade e condição de alcance para utilização, com segurança e autonomia, de espaços, mobiliários, equipamentos urbanos, edificações, transportes, informação e comunicação, inclusive seus sistemas e tecnologias, bem como de outros serviços e instalações abertos ao público, de uso público ou privados de uso coletivo, tanto na zona urbana como na rural, por pessoa com deficiência ou com mobilidade reduzida”. Vide também inc. I do art. 2º da Lei 10.098/2000, dentre outras leis e regulamentos.

[9] Sobre a finalidade da publicização dos atos registrais confira-se: MARANHÃO. Juliano Souza de Albuquerque (org.) Proteção de Dados e Registro Imobiliário. São Paulo: Boletim do IRIB em Revista n. 362, dezembro de 2020, item 4.2, p. 24 et seq.

[10] ADI 2.415, rel. min. AYRES BRITTO, j. 10/11/2011, p., DJE de 9/2/2012. Acesso: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=1718027

[11] Processo CG 53.702/2020, decisão de 29/4/2021, Dje 29/4/2021, Des. RICARDO MAIR ANAFE. Acesso: http://kollsys.org/qji.

[12] Item 130 do Capítulo XIII do Tomo II das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça.

[13] Item 130.1 locus cit. nota 7 supra.

[14] Estas questões estão bem definidas no Processo CG 53.702/2020, Osasco, decisão de 5/11/2020, Dje 5/11/2020, des. RICARDO MAIR ANAFE. Acesso: http://kollsys.org/plm. No mesmo processo, porém em data posterior, ficou bem assentado: “Não se discute que, adotado o sistema de fólio real, a matrícula seja escriturada em torno de um critério essencialmente objetivo, qual seja o imóvel a que ela diz respeito. Todavia, isso não serve para concluir que a matrícula seja meramente um signo impessoal, pois ela é chave de acesso a informações pessoais”. Vide nota 7 supra.

[15] DIP. Ricardo. Registros sobre registros. # 50, 3/5/2017. Acesso:  https://bit.ly/3D7NW6W [mirror].

[16] PP 0003703-65.2020.2.00.0000, Minas Gerais, decisão de 16/5/2020, Min. HUMBERTO MARTINS deferindo liminar para suspensão do pagamento de taxas pela central de Minas Gerais. Acesso: http://kollsys.org/ovu.

[17] PP 0003703-65.2020.2.00.0000, j. 19/6/2020, DJ 6/8/2020, rel. HUMBERTO MARTINS. Acesso: http://kollsys.org/p8s.

[18] Idem, nota 16.

[19] Provimento CNJ 107/2020, de 24/6/2020, Ministro HUMBERTO MARTINS. Acesso: http://kollsys.org/p18.

[20] PP 0010562-97.2020.2.00.0000, decisão de 10/8/2021, Min. MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA. Acesso: http://kollsys.org/qqh.

[21] Voto do Ministro DIAS TOFFOLI proferido no PP 0003703-65.2020.2.00.0000, citado na nota 16 supra.

[22] Idem, ibidem nota 20.

6 comentários sobre “Agonia central – ou anomia registral? – bis

  1. Na minha opinião o problema maior é o amadorismo da ONR na implementação do SREI, onde oferecem tais serviços através do site http://registrador.org.br/ que sequer possui conexão segura (HTTPS). Isso por si só é indicativo de que a ONR não possui capacidade técnica para estar oferecendo tal serviço.

    • O Observatório do Registro não se vincula ao ONR. Nem integra centrais estaduais de prestação de serviços, nem tampouco tem qualquer participação econômica em empresas que exploram os serviços próprios de notários e registradores. As críticas devem ser dirigidas ao ONR ou às empresas citadas. Att. O Editor.

  2. […] [16] O art. 42-A veio embarcado por emenda apresentada na tramitação MP 1.051/2021 (PLV 16/2021), consagrada afinal pela Lei 14.206/2021 (art. 25). Posteriormente, na conversão da MP 1.085/2021, o dispositivo que havia sido revogado por ela (inc. IV do art. 20) voltaria uma vez mais à balha. Mais recentemente, nos termos do art. 10 do Provimento CN-CNJ 130/2023, os ON´s, bem como os tabeliães e registradores, ficaram proibidos de “cobrar dos usuários do serviço público delegado valores, a qualquer título e sob qualquer pretexto, pela prestação de serviços eletrônicos relacionados com a atividade dos registradores públicos, inclusive pela intermediação dos próprios serviços, conforme disposto no art. 25, caput, da Lei n. 8.935 de 1994, sob pena de ficar configurada a infração administrativa prevista no artigo 31, I, II, III e V, da referida Lei”. O art. 42-A padece de regulamentação, mas afigura-se um cenário de limitada atuação do ente ali previsto. Anteriormente, v. JACOMINO. Sérgio. Agonia central – ou anomia registral? – bis. São Paulo: Observatório do Registro, 23.102021, acesso: https://cartorios.org/2021/10/23/agonia-central-ou-anomia-registral-bis/. […]

  3. […] 16 O art. 42-A veio embarcado por emenda apresentada na tramitação MP 1.051/2021 (PLV 16/2021), consagrada afinal pela Lei 14.206/2021 (art. 25). Posteriormente, na conversão da MP 1.085/2021, o dispositivo que havia sido revogado por ela (inc. IV do art. 20) voltaria uma vez mais à balha. Mais recentemente, nos termos do art. 10 do Provimento CN-CNJ 130/2023, os ON’s, bem como os tabeliães e registradores, ficaram proibidos de “cobrar dos usuários do serviço público delegado valores, a qualquer título e sob qualquer pretexto, pela prestação de serviços eletrônicos relacionados com a atividade dos registradores públicos, inclusive pela intermediação dos próprios serviços, conforme disposto no art. 25, caput, da Lei n. 8.935 de 1994, sob pena de ficar configurada a infração administrativa prevista no artigo 31, I, II, III e V, da referida Lei”. O art. 42-A padece de regulamentação, mas afigura-se um cenário de limitada atuação do ente ali previsto. Anteriormente, v. JACOMINO. Sérgio. Agonia central – ou anomia registral? – bis. São Paulo: Observatório do Registro, 23.102021, acesso aqui. […]

  4. […] 16 O art. 42-A veio embarcado por emenda apresentada na tramitação MP 1.051/2021 (PLV 16/2021), consagrada afinal pela Lei 14.206/2021 (art. 25). Posteriormente, na conversão da MP 1.085/2021, o dispositivo que havia sido revogado por ela (inc. IV do art. 20) voltaria uma vez mais à balha. Mais recentemente, nos termos do art. 10 do Provimento CN-CNJ 130/2023, os ON’s, bem como os tabeliães e registradores, ficaram proibidos de “cobrar dos usuários do serviço público delegado valores, a qualquer título e sob qualquer pretexto, pela prestação de serviços eletrônicos relacionados com a atividade dos registradores públicos, inclusive pela intermediação dos próprios serviços, conforme disposto no art. 25, caput, da Lei n. 8.935 de 1994, sob pena de ficar configurada a infração administrativa prevista no artigo 31, I, II, III e V, da referida Lei”. O art. 42-A padece de regulamentação, mas afigura-se um cenário de limitada atuação do ente ali previsto. Anteriormente, v. JACOMINO. Sérgio. Agonia central – ou anomia registral? – bis. São Paulo: Observatório do Registro, 23.102021, acesso aqui. […]

  5. […] 16 O art. 42-A veio embarcado por emenda apresentada na tramitação MP 1.051/2021 (PLV 16/2021), consagrada afinal pela Lei 14.206/2021 (art. 25). Posteriormente, na conversão da MP 1.085/2021, o dispositivo que havia sido revogado por ela (inc. IV do art. 20) voltaria uma vez mais à balha. Mais recentemente, nos termos do art. 10 do Provimento CN-CNJ 130/2023, os ON’s, bem como os tabeliães e registradores, ficaram proibidos de “cobrar dos usuários do serviço público delegado valores, a qualquer título e sob qualquer pretexto, pela prestação de serviços eletrônicos relacionados com a atividade dos registradores públicos, inclusive pela intermediação dos próprios serviços, conforme disposto no art. 25, caput, da Lei n. 8.935 de 1994, sob pena de ficar configurada a infração administrativa prevista no artigo 31, I, II, III e V, da referida Lei”. O art. 42-A padece de regulamentação, mas afigura-se um cenário de limitada atuação do ente ali previsto. Anteriormente, v. JACOMINO. Sérgio. Agonia central – ou anomia registral? – bis. São Paulo: Observatório do Registro, 23.102021, acesso aqui. […]

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