Aldemário Troca-Letras

Crônicas Registrais. Aldemário Troca-Letras foi uma escrevente de cartório, mas sua paixão era cuidar das flores. Sua história emociona ainda hoje seus velhos colegas de profissão.

Aldemário Silveira foi um escrevente habilitado de uma pequena serventia de Registro de Imóveis. Apesar de ser admirado e reconhecido por ser um colega leal, bom datilógrafo, exímio nas contas, acabou não passando disso. Ele sabia tudo de geometria e aritmética, calculava a área de complexas figuras geodésicas, sabia como ninguém lidar com as frações ideais, extraía raízes quadradas e cúbicas, mas não dominava com destreza o principal instrumento de um bom cartorário: a linguagem.

Passados mais de cinco anos, Aldemário foi elevado automaticamente a escrevente habilitado, sem submeter-se ao exame de habilitação que àquela época era exigido. Temia ser reprovado pela banca composta pelo juiz, um tabelião e um registrador da comarca. A partir de então, Aldemário se especializaria em examinar e registrar títulos judiciais.

Fazia rapidamente os cálculos de frações, verificava a exatidão do recolhimento do imposto, era mais preciso e rigoroso que o partidor da comarca. Gostava de ler especialmente os formais de partilha, queria saber detalhes que cercaram a vida do de cujus. Do que morreu? Foi morte súbita ou doença crônica? Deixou filhos? Brigavam entre si? Se o velho deixara amante, o assunto lhe atraía especialmente. Quanto mais grosso o litígio, mais ele se entretinha. Diziam que era “braço curto”, mas isso era uma injustiça, já que ele sempre acabava cumprindo suas tarefas no prazo.

Havia, no entanto, um aspecto pitoresco de sua personalidade: Aldemário era um incorrigível troca-letras. Tinha uma inteligência brilhante, é verdade, mas às vezes nos revelava pérolas, como “atende o telofone” (em vez de telefone), “troca as tocoveleiras” (em vez de cotoveleiras).

Todos ríamos das situações engraçadas nas quais ele se metia e das expressões que todo cartorário sabia de cor e logicamente evitava, mas Aldemário repetia inocentemente: “certidão de objeto em pé; “mandato de penhora”… Deixava escapar, vez por outra, numa nota devolutiva, um “retifique-se o formol de partilha”, ou “não se respeitou a meiação do cônjuge supérstite”, pedia a “certidão negativa de anos e alienaçõese outras coisas do gênero. Todos mofavam de suas escorregadelas. Às vezes, quando líamos para ele em voz alta uma transcrição, nos interrompia: “confronta com quem?” E todos, à volta, repetíamos em uníssono: “confronta com quem de direito”. Para ele essa expressão, tipicamente cartorária, não fazia o menor sentido, “imóvel confronta com imóvel, não com pessoas… Coisas não podem ser sujeitos de direito”, resmungava, e seguia datilografando.

Um dia, porém, ele se excedeu. Ao registrar um formal de partilha oriundo de um inventário litigioso, no qual os herdeiros e uma concubina, insinuante atriz de teatro, disputavam o acervo, Aldemário deixou escapar no ato de registro: o “espírito de fulano de tal” – em vez de o “espólio de fulano de tal”. Ele lavrou e subscreveu tranquilamente o ato, o escrevente autorizado lhe seguiu como de costume, o Oficial emitiu a certidão do ato praticado e a parte retirou o título no balcão.

Tudo seguia seu curso remansoso até que, dias depois, um advogado muito conhecido na comarca – homem falastrão, muito sagaz e espirituoso –dirigiu uma petição sardônica ao Oficial do Registro, requerendo providências nos seguintes termos:

“Sr. Oficial.

Na qualidade de advogado e representante de Fulano e de Cicrano, herdeiros do falecido pai Beltrano, venho requerer a V. Sa. que retifique o ato de registro praticado, por representar engano evidente cometido, nos termos do art. 228 do Regulamento.

Em nome dos herdeiros, da legatária, e atendendo especialmente a um chamamento do além, requeiro as providências cabíveis antes que a diatribe se traslade dos tribunais para um centro espírita, ou para um ringue de Telecatch.

Como de costume, exigimos que admita o erro e suporte a corrigenda e que o retifique imediatamente.”

A petição irritou profundamente o Oficial. Ele não era dado a gracejos e tinha um mau-humor temível. Jamais sorria, odiava piadas, abominava comédias. Até mesmo juízes e promotores que passaram pela comarca o temiam. Sua ranzinzice fez fama além da comuna. Com os bofes virados, recebeu a petição e deu o andamento cabível.

Os filhos e a amante se odiavam, e esse pequeno acidente acabou por acirrar os ânimos. Difamavam-se mutuamente. Os legitimários a chamavam de “barregã lasciva e lúbrica”; a legatária devolvia com “janotas arrivistas e idiotas espanéficos”. As expressões provinham certamente do vocabulário prolixo do chicaneiro que parecia divertir-se açulando o conflito

Entretanto, o assunto realmente explodiu quando o editor de um conhecido jornal sensacionalista manchetou, entre fotos de mulheres a pelo e assassinatos à queima-roupa: “Espírito de falecido desce para fazer justiça no cartório de imóveis”.

Durante uma semana inteira não se falava de outra coisa. Aldemário chegava em silêncio e saía mudo do cartório. Os colegas riam à sorrelfa, faziam troça do pobre escrevente habilitado. Pouco a pouco, ele perdia o interesse pelos rumorosos processos litigiosos, tornava-se taciturno e triste.

Não tardou e se exoneraria do cartório. Abandonou a velha máquina de escrever, os carimbos, a almofada violeta com seu nome cinzelado, o Código Civil puído e foi dedicar-se ao cultivo de orquídeas e avencas. Viveu solitariamente até o seu derradeiro dia. Diziam que decifrava o código secreto da natureza inscrito nas flores e discernia os mistérios da proporção divina nos pequenos fetos que se lançavam ao sol preguiçosamente. Nunca mais vi o pobre Aldemário troca-letras. Os velhos escreventes, já aposentados, diziam que partira há algum tempo e hoje descansa numa pequena campa do Recanto da Paz, cercado de glicínias e ipomeias. Todo o referido é verdade e dou fé.

Títulos registrados em outros ofícios – admissibilidade. (Certidão de RTD é título inscritível?)

Introdução

Com o advento da Lei nº 14.382, de 2022, alterou-se a Lei de Registros Públicos (LRP) para inclusão do § 4º do art. 221, inovando o processo de registro. O dispositivo se coordena com o § 6° do art. 19 da mesma lei. Ambos têm a seguinte redação:  

Art. 19. A certidão será lavrada em inteiro teor, em resumo, ou em relatório, conforme quesitos, e devidamente autenticada pelo oficial ou seus substitutos legais, não podendo ser retardada por mais de 5 (cinco) dias.

(…)

§ 6° O interessado poderá solicitar a qualquer serventia certidões eletrônicas relativas a atos registrados em outra serventia, por meio do Sistema Eletrônico dos Registros Públicos (SERP), nos termos estabelecidos pela Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça.

Art. 221 – Somente são admitidos registro:

(…)

§ 4º Quando for requerida a prática de ato com base em título físico que tenha sido registrado, digitalizado ou armazenado, inclusive em outra serventia, será dispensada a reapresentação e bastará referência a ele ou a apresentação de certidão.

Quais serão as repercussões da mudança legislativa na praxe cartorária? Vamos nos deter nesse ponto, buscando formular algumas questões para debate e aprofundamento desse e de outros temas conexos.

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Original e cópia – o inebriante efeito especular da digitalização. Velhas questões, novos desafios

Introdução

Neste pequeno ensaio, vamos nos deter no tema das distinções entre original e cópia e seus consectários – autoria, autenticidade, integridade. Com o perdão do trocadilho, qual o papel que o título digitalizado “com padrões técnicos” desempenha no processo registral? São equivalentes – o título original e o digitalizado – em ordem a sustentar a inscrição e promover a mutação jurídico-real? 

Narciso - Caravaggio,1594
Narciso – Caravaggio,1594

Os espelhos nos assombram, assim como as cópias digitais. Desde o Mito de Narciso, cujo trágico desenlace todos conhecemos, cumprindo a profecia de Tirésias – si non se uiderit – a realidade e as suas representações sempre intrigaram o homem.[1] Borges cravou uma passagem perturbadora em Tlön, Uqbar, Orbis Tertius: “os espelhos têm algo de monstruoso” porque “multiplicam o número dos homens”.[2] Em Tlön, as idealizações e as representações qualificam, de certo modo, os fatos e a materialidade substancial das coisas. O mundo não é um concurso de objetos no espaço, nem há substantivos na Ursprache de Tlön… Magritte, em seu La reproduction interdite (1937), nos convida à reflexão acerca da realidade e de suas representações. O que é real? O que é surreal?[3]

Com o advento das novas tecnologias, muitos de nós não conseguem distinguir de modo seguro um original de sua cópia reprográfica; um objeto real de um simulacro; um fato substancial de sua representação digital. A questão torna-se ainda mais perturbadora quando pensamos que, no âmbito dos documentos natodigitais, já não se verifica a summa divisio que vinca os originais e suas cópias; todas as cópias são originais e vice-versa…

As recentes reformas legais são surpreendentes. Causam-nos perplexidade. Pensemos nos contratos digitalizados “com padrões técnicos”. O que são eles propriamente? Assombram-nos os extratos – emanação especular que se desprende dos negócios jurídicos pela via da novilíngua digital, errando por hubs, centrais eletrônicas e cartórios; assalta-nos a ideia de infalibilidade e fidedignidade das redes de blockchain, tokens, artefatos criptográficos e de seus protocolos divinos. O que é real? O que é surreal? O que é meta-real?

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Litigando contra si mesmo

Nos idos da década de 60, passou pela comarca um juiz muito rigoroso que, tempos depois, viria a ocupar o cargo de presidente do antigo e honorável 2º Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo, chegando à desembargadoria no início da década de 80.

Naquele tempo, os escreventes dos Cartórios de Registro de Imóveis, assim como seus oficiais, eram dublês de escrivães e escreventes do judicial e do extrajudicial. Assim previam as Ordenações do Reino e foi assim até bem pouco tempo em São Paulo.

Valtinho Leite, escrevente de sala, funcionário do Registro de Imóveis, era um bom datilógrafo, muito atento a todos os detalhes da audiência, qualificava as partes e as testemunhas, colhia suas assinaturas, sempre sob o olhar vigilante do magistrado.

Um certo dia, viu que o juiz enrubescia à medida que folheava um processo posto sobre a mesa. O escrevente conhecia-o muito bem e sabia quando se apoquentava: suas bochechas se tornavam róseas, ofegava, os dedos tamborilavam nervosamente sobre o vidro posto sobre a bandeira do Estado de São Paulo e a imagem de São Judas Tadeu. Depois de folhear os autos, disse, pigarreando e apagando o cigarro no cinzeiro de cristal:

– Como pode, Senhor Valtinho, como pode o advogado do autor distribuir a ação e ao mesmo tempo contestá-la em nome do réu?

Era uma ação de despejo por falta de pagamento. Valtinho conhecia o advogado, um homem de boa índole, pai de família, advogado conhecido e respeitado na comarca. Terá se equivocado? Decidiu interceder. Saiu da sala de audiências e foi ao encontro do advogado. Disse-lhe que deveria apresentar-se perante o juiz para se desculpar. Alegaria acúmulo de serviço, equívoco no peticionamento e coisa e tal. “O homem é brabo”, advertiu.

Assim combinaram e no dia seguinte foram ter à presença do magistrado. Valtinho pediu licença e introduziu o advogado, que logo tomou a palavra:

– Excelência, foi culpa do excesso de trabalho. O locador é amigo pessoal de longa data. Somos confrades no Círculo do Pensamento Esotérico. Já o inquilino é meu contraparente e, sabe como é, Doutor, não se pode negar um pedido da minha mulher… Tossiu, coçou a ponta do nariz.

O Juiz observava os dois atentamente. Valtinho sentou-se num canto da sala e fingia mexer na caixa de papel-carbono, o causídico suava, parecia sufocar com a gravata que ajeitava nervosamente.

– Pois bem, disse o magistrado depois de meditar e ponderar. Façamos o seguinte: vamos marcar uma audiência de conciliação e conhecer as razões das contrapartes, inquiri-las acerca dessa original pretensão deduzida em juízo. Dito isso, o juiz encerrou o colóquio.

O advogado percebeu que se metia numa bela enrascada e logo tratou de desistir da ação, subscrevendo uma petição datilografada às pressas na sala dos advogados. No dia seguinte, compôs-se com o autor e saldou a dívida do réu, diligenciando para que desocupasse o imóvel o mais rapidamente possível.

O magistrado promoveu-se para a comarca da Capital. Valtinho Leite recebeu o novo juiz e inaugurou nova fase no cargo de escrevente responsável pelo anexo do Júri, Menores e Corregedoria Permanente. Na corregedoria, conheceria ainda histórias dramáticas, mas algumas hilárias – como as artes de Pedro Faceto, o escrevente que virou desembargador. Um dia, manuseando a arma do crime – uma Beretta automática –, Faceto disparou no teto do cartório, fazendo desabar a estrutura de gesso e causando um início de pânico no fórum.

Deixemos este caso para a próxima certidão. Nada mais. Todo o referido é verdade e dou fé.