Agnóstico confesso. Escriba perfeito que implicava com as explicações fáceis, recalcitrava energicamente quando estava em causa a fé pública. Um tabelião-paladino que enfrentava os registradores (e os juízes) com a pena altaneira e sempre qualificada.
Custo a crer que Antônio Albergaria Pereira tenha partido. Eu o supunha eterno tão só por encarnar, como ninguém, os atributos de um bom profissional, notário ímpar, tabelião de lídima cepa. Um homem além de seu tempo, logo se viu em seu tempo.
“Perdemos o Albergaria”, diz o texto que tenho o gosto de republicar.
Guardo muitas lembranças do cruzado das notas. Não faz muito, estivemos juntos – Albergaria e eu – em posições antagônicas, contrapostas, discutindo as cláusulas de uma escritura pública que ele me havia apresentado a registro. Recebi-o na Biblioteca Medicina Anima, quando então me concedeu as fotos acima. Registro o ano da Graça de Nosso Senhor Jesus Cristo de dois mil e oito, aos vinte e três dias do mês de abril. Não me esqueço do dia, nem da impressiva visita.
Inconformado, Albergaria verberava como se discursasse com intensidade e vigor. Simplesmente não admitia a denegação do registro. Não se resignava com a nota devolutiva oposta pelo registrador, Albergaria, pequena flor tardia do tabeliado pátrio. Quem se atrevia a profanar ou desmerecer as cláusulas lavradas pelo cinzel perito do notário?
Percebi que lidávamos com realidades distintas. Melhor seria dizer que nos aproximávamos da verdade por caminhos diversos. Nessa batalha dialética era necessário ceder passo: in medio sedet inclita virtus.
Logo firmávamos o armistício e o registro afinal se consumaria. Mas não tardaria a manifestação serôdia de sua valente irresignação. Muitos puderam ler no Boletim Cartorário o relato das aventuras e de percalços enfrentados pelo notário para consumar aquele registro. Para ele, cada registro era uma batalha a ser vencida contra os infiéis da fé pública.
Hoje assumo publicamente ter sido o protagonista daquele episódio que alguns se lembrarão. Faço-o unicamente para sublinhar outra nota característica de seu caráter e de sua personalidade: soube preservar a identidade dos envolvidos, com todo o desvelo e respeito. Era um homem elegante no trato, afável, mas áspero na pena, não podia conter a verve crítica que lhe custava, às vezes, algumas amizades e lhe rendia não poucos desafetos.
Talvez por sua intransigente defesa da atividade notarial, nós, os registradores, lhe agraciamos com a Medalha Júlio Chagas – a comenda máxima de nossa corporação. Corria o ano da Graça de Nosso Senhor Jesus Cristo de dois mil e o Presidente do Irib, Lincoln Bueno Alves, aceitava a sugestão que lhe fora feita pelos seus pares de diretoria. E Albergaria foi – e continua sendo – o único notário no mundo agraciado com a medalha de nosso fundador.
Albergaria se foi; perdemo-lo. Mas não se consomem os símbolos, que resistem como monumentos duradouros de nossa trajetória nesta Terra dos Homens. Certamente sobreviverá ao barro de que somos feitos, resistindo, obstinado, nas linhas infinitas de sua lavra tabelioa e no exemplo de uma vida profissional que dignifica e dá valor à corporação dos tabeliães brasileiros.
Siga em paz, querido amigo! (SJ)
Perdemos o Albergaria
Perdemos o Albergaria: profissional sério, estudioso, debatedor, professor de muitos, carismático, aposentado inconformado, o ranheta Albergaria.
Tinha grande prazer em debater, característica dos homens lúcidos, criativos e de bem (aquele que deseja o melhor para os seus semelhantes).
Albergaria tinha em suas veias um sangue bravo. Discutir o direito com ele era debater com um ferrenho defensor dos próprios argumentos, postura que não o impedia de render-se, de entregar-se e de converter-se quando convencido. Era um intelectual.
Albergaria nos pedia sempre uma ata notarial. Sem compreender este novo mundo da eletrônica, queria ver como fazíamos atas de Internet aqui no 26º Tabelionato, mas adiou este encontro para outra existência. Não terá perdido muito… É mera técnica.
Nos despedimos de Albergaria em Cabo Frio, na homenagem que lhe fizeram os associados do Instituto de Estudos Albergaria. Estava frágil, mas lúcido, com a voz postada e forte. Foi a última homenagem de tantas que mereceu. Fiquem, pois, colegas, com esta ata emocional. Albergaria foi um grande homem e, como tal, um notário exemplar. (Paulo Ferreira, 26º Tabelião de Notas de São Paulo Felipe Leonardo Rodrigues, preposto-escrevente do 26º Tabelião de Notas de São Paulo).
Que lindo 🌷
Enviado do meu iPhone
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