Dr. Ermitânio Prado esteve internado para tratamento médico em um conhecido sanatório paulistano.
Estava abatido quando nos recebeu para uma conversa amena que acabou versando sobre temas de seu particular interesse – música, paleografia, história e direito.
Falamos a tarde inteira sobre Wagner e a ruptura dos cânones harmônicos tradicionais representados pela música européia decimonômica. Divagou longamente sobre a tensão latente no prelúdio de Tristan und Isolde que, segundo ele, musicalmente representa a progressiva dissolução do espírito medieval e esboroamento da identidade espiritual da cristandade européia. “Tudo isto galgando um poderoso mito!” – junge.
— A harmonia se enerva em sucessivas séries – diz ele – e eleva-se em brilhantes vagalhões harmônicos que se superpõem e tensionam a estrutura tonal aos seus limites…
— … fazendo prever o surgimento de uma nova música? – atalho provocativamente o tradicionalista advogado bandeirante.
— Uma nova velha arte, se se queira! Velha arte total! – resmunga.
Tira de uma delgada carteira de couro um livro que diz estar lendo com muito proveito. Diviso na lombada a inscrição Obras Completas de C. Gustav Jung.
Diz que o homem espiritual deve sobreviver na modernidade e que Wagner experimenta os limites harmônicos como quem prova da água na fonte e, a exemplo de Paracelso na sua especialidade, deixa antever o relativismo cientificista que será o espírito dominante que se precipitará como a marca da humanidade a partir do final do século XIX.
Palrando excitado sobre a imersão do homem medieval no mundo espiritual, traça a trajetória da sua chegada ao materialismo para atingir, logo após, e novamente, o mundo espiritual esquecido. Busca gizar os paralelos entre a música de Wagner e os impulsos da modernidade, indicando que é necessário reconhecer o homem medieval, com seus valores espirituais, na humanidade que desponta.
Dr. Ermitânio nunca deixar de afirmar-se um tradicionalista.
Volta a Jung. Lê em voz empostada e tonitroante o trecho destacado e iluminado por traços mentais:
“Para ele [Paracelso], homem e mundo são um agregado vivo da matéria, uma concepção que mantém afinidade com o ponto de vista científico do final do século XIX. Há, porém, uma diferença: Paracelso ainda não pensa mecanicamente, em termos de matéria química inerte, mas de maneira animista primitiva. A natureza, para ele, ainda é povoada de bruxas, íncubos, súcubos, diabos, sílfides e ondinas. Para ele, a vivência psíquica é, ainda, uma vivência da natureza. A morte psíquica do materialismo científico ainda não o atingiu, mas ele está preparando o caminho para esse fim. Ele ainda é um animista, de acordo com o primitivismo de seu espírito e, no entanto, já é um materialista. A matéria, como o absolutamente oposto no espaço, é o inimigo mais natural daquela concentração do ser vivo, que é a alma”.
E conclui de maneira muito interessante:
“Logo o mundo das ondinas e sílfides chegará ao fim [indica a chegada do materialismo científico] e somente na Era do espírito terão festiva ressurreição quando então, surpresos, nos perguntaremos como foi possível esquecer tão antigas verdades. Contudo, é bem mais fácil admitir que aquilo que não se entende, não existe”.
Depois deixa-se quedar em silêncio. Eu o respeito e acompanho nesse mutismo expressivo. Seus olhos estão embaciados, perdem-se na larguesa de um branco indizível.
Depois de um longo interregno, provoco-o sobre a situação dos cartórios brasileiros – de quem o Dr. Ermitânio é um crítico contundente, mas também um defensor, por acreditar que a segurança jurídica é um estandarte contra a barbárie. Diz o causídico:
— Caem os Registros, caem as instituições; esvai-se o sentido do mundo, registrado escrupulosamente em pesados livros protocolos.
Ermitânio diz que a propriedade se relativiza e a música se atonaliza. O homem escamba a essência em troca da sua existência no mercado de consumo. Seus direitos sideraram-se em metáforas confusas e contraditórias e protegem as aparências…
— Qu’est-ce que la propriété? Qu’est-ce que la propriété? – agita-se. E logo responde: a propriedade é um roubo… et pour cause, assaltemos o proprietário, profanemos a propriedade!”.
Fiando-se nas predições do Dr. Ermitânio, talvez as corporações não tenham forças para soerguer a montanha.
— É chegada a hora de descer às catacumbas, eis que seremos perseguidos e massacrados pelo senso comum teórico dos eruditos de açougue travestidos de burocratas e peritos.
Temo o haver excitado em demasia. Busco voltar a Wagner, a Jung, mas ele segue a bramir e a vociferar, como o leão do Jocquey:
— De norte a sul se dirá: cartórios nunca mais! E eis que eles resistirão, de uma forma ou de outra, pois as pessoas insistem em nascer, morrer, copular, ter, não ter, dar, receber, comprar, vender, e os homens – ah! estes estranhos peregrinos nesta terra ignota -, eles não deixam de anotar suas venturas e desventuras em pequenos cadernos que atravessaram o arco dos tempos!
Kollemata, Dr. Ermitânio, kollemata!
Dr. Ermitânio Prado nunca se houvera dado ao trabalho de investigar a Nouvelle Vague francesa, “Lâche flatterie”! – diria. Contudo, sempre muito empático aos alemães, no momento de sua recuperação de saúde, abrira uma exceção à influência em Herzog, assistindo, de uma só tacada, ao monumental Aguirre e a cólera dos deuses e ao O Enigma de Kasper Hauser. A violência do primeiro não abalou sua índole fortalecida, mas o segundo o prostrou em novos pesadelos apocalípticos.
Após longa tertúlia acerca da correta proposição ao viajante da cidade dos mentirosos e ao da cidade dos que falam a verdade, perguntamos ao leão do Jóquey por qual motivo os fatos precisavam ser registrados em O Enigma de Kasper Hauser.
“Mas eram mesmo os fatos?” – devolve de imediato, com sua peculiar sagacidade.
“Ou algo muito mais profundo, a que se referiu um estimado amigo, no erudito texto Catayros e o retorno às catacumbas:
(…)e os homens – ah! estes estranhos peregrinos nesta terra ignota -, eles não deixam de anotar suas venturas e desventuras em pequenos cadernos que atravessaram o arco dos tempos!“?
Dr. Ermitânio Prado exaltou-se deveras ao buscar em seus papéis a citação do texto de seu amigo registrador. Preocupamo-nos, mas logo notamos que esta leitura lhe houvera causado excelente impressão. Logo, nos brindou com a sua análise:
“O notável registrador paulista nos mostrou que a realidade somente o é em termos da realidade do discurso. A potência glossolálica que somente se realiza no acontecimento do dizer – em um “ter lugar” (histórico – para além da função meramente vital do cativo Kasper Hauser) no mundo. Os moradores da cidade de Nuremberg somente se podem reconhecer como homens quando dão testemunho do não-homem Kasper Hauser – feixe de funções vitais sem história. É o não-homem que precisa ser registrado, como afirmação da humanidade dos homens de Nuremberg.”
E pontifica, finalmente, com um sorriso leve nos lábios: “o registro, em O Enigma de K. H. lavra a impossível realidade extralinguística, e, no mesmo sentido, a não-humanidade do homem que não se possa logicizar, fazendo-se palavra registrável e historicisável.” – excusando-se do neologismo.
E então se despede, pois há pressa para escrever. Parece se recuperar a passos largos de seu desencantamento do mundo.
Dou voz ao Dr. Ermitânio, que não se conteve quando lhe disse que a Sra. postou um comentário aqui.
Ficou feliz em perceber que sabe (“sempre soube!”) que o leão despreza o existencialismo furtado.
Mandou-me escrever (fez de mim um escriba!) que o fundamental, para se compreender a charada no Enigma, é atentar para a sobrepresença do notário (Clemens Scheitz) que registra em seu Protokoll – assim mesmo se ouve na fala original – o absolutamente inusitado do encontro entre Kaspar Hauser e os homens de Nürnberg.
“Ein schönes Protokoll, ein genaues Protokoll, ich werde ein Protokoll schreiben, wie man es nicht alle Tage erlebt”!
“O velho escriba e seus arcanos… Muito bem, muito bem… Ele materializa, exultante, para a gente-coisa, o indizível e inescritível da gente-buraco”.
“O poder dos escribas é manifesto! Kaspar Hauser nos chega em quanta, tragado pelo signo perene do tabellio…”.
Diz que a tradução é péssima, que o traidor não captou o sentido fundamental que o notário desempenha na trama… Que o punctus contra punctus, representado pela galáxia verbal, singularizada pelo notário, não foi perfeitamente compreendido pelos sátrapas da linguagem…
“Os tradutores são gorilas metidos a Virgílio”…
Está enfermado, pobre Ermitânio. “O preconceito é ut cute leprae! – grita furioso…
“Gente espiralada cifram-se em serifas incompreensíveis! Lavram capitulares rubirescentes, alçam rubricas que incendeiam o rolo ignoto. Almagre informe e enfermo! Recebe a ígnea linguagem dos anjos em labaredas sem sentido…”
Deixemo-lo em paz com as crianças e Wagner. Está febril e tem muitos sonhos de que não se lembra.
Nas tardes frias do breve inverno paulistano, Dr. Ermitânio Prado costuma sentar-se em sua poltrona Sheriff e bebericar um Twinings Earl Grey, com bem pouco leite e sem açúcar. Num destes momentos particularmente gratos às tertúlias, o ilustre advogado manifestou um certo desconforto com o ultrapassar abusivo dos fatos pela suspeita linguagem. “Está certo, está certo, a intuição permanece a fonte de toda a inteligibilidade” – na esteira de suas recentes leituras de Carl Gustav Jung, “mas há que haver mais esforço na ordenação dos conteúdos dados à consciência”. Uma breve pausa para um gole da bebida quente e prossegue: “Kollemata, por exemplo – um conceito que nosso amigo registrador insiste em destrinchar, se encontra na confluência de inumeráveis rios semânticos, nem por isso, devemos decretar a insensatez de seu inventário. As palavras remetem a outras e outras palavras, não são isoláveis em significação, mas coágulos de contextos de linguagem e interlocutores – a história, meus caros, mais uma vez, a história.”