Memorial de Ayres

Depois de escrever e postar o artigo sobre a queima de arquivos na primeira república – “autos-da-fé republicanos”, nas palavras de Gilberto Freyre – Dr. Ermitânio Prado, meu leitor mais atento e crítico, deixou uma mensagem à espera de moderação. Como moderar-lhe a acidez e o azedume? Como temperar uma opinião sempre empedernida e intransigente?

Não me resta mais do que reproduzir a sua mensagem, com ressalva da responsabilidade.

Caro Dr. Jacomino.

As suas leituras serôdias de Machado frustraram-me por não desentranhar, como se esperaria, as mais sutis conclusões do genial escritor. Nem mesmo a sua avaliação acerca da pirotecnia política comandada do Jardim Botânico por Rui Barbosa pode-se considerar exata.

Vamos por partes. Hoje lhe envio um pequeno comentário sobre Machado e seu festejado pendor abolicionista. Abolicionismo dissimulado, bem de se ver. Amanhã lhe envio ruminações sobre a ruindade fazendária.

Sempre duvidei da inteira adesão de Machado, aliás José da Costa Marcondes Ayres, às ingênuas teses abolicionistas até hoje veiculadas. Mais do que prudente e discreto, Machado era realista – com o abuso da expressão. Sabia das implicações que decorreriam inevitavelmente de uma abolição imediata e sem indenização, descolada de um amplo concerto político. Machado foi uma testemunha melancólica dos episódios que se sucederam no período que lhe foi dado viver a história.

A situação do país pode ser vislumbrada na trama do romance. A alforria concedida coletivamente pelo Barão de Santa-Pia, antecipando-se à vaga abolicionista, mostra como pouco, quase nada, mudaria na realidade social e econômica dos manumitidos:

“Estou certo que poucos delles deixarão a fazenda; a maior parte ficará commigo, ganhando o salario que lhes vou marcar, e alguns até sem nada, – pelo gosto de morrerem onde nasceram (apontamentos de 10 de abril, à p. 52 da edição citada pelo Sr. Registrador).

A expressão mais contundente do contraponto que se estabelece entre a história de amor burguês protagonizado pelo casal Tristão e Fidélia e a realidade das senzalas nos dá o Conselheiro nesta passagem:

“Lá se foi Santa-Pia para os libertos, que a receberão provavelmente com danças e com lágrimas; mas também pode ser que esta responsabilidade nova ou primeira…” (idem no diário 28 de abril de 1889).

Cala o Conselheiro. As reticências são eloquentes e encerram, prudentemente, suas inevitáveis conclusões interiores. Enterrou a “cabeça entre os joelhos”, como fez no dia 13 de maio, quando todos saíram às ruas para saudar a Princesa e os Ministros no Paço.

“A maior parte ficará comigo, ganhando o salário que lhes vou marcar e alguns até sem nada”, disse o Barão ao Desembargador Campos. O seu prognóstico também era realista e seria confirmado mais tarde, quando Fidélia recebe o pedido dos libertos para que os trouxesse consigo ao Rio de Janeiro no caso de venda da propriedade após o falecimento do Barão. O episódio renderia o comentário sardônico do Conselheiro: “tinha graça vê-la chegar à Corte com os libertos atrás de si, e para quê, e como sustentá-los?”.

Convenhamos que já então se desenhava uma triste sina: condenados a um futuro de agricultura de mera subsistência, quando muito – ainda que proprietários da Fazenda Santa-Pia por doação da generosa viúva -, ou acomodados nas cidades em mocambos, cortiços e favelas. Não há futuro alvissareiro com essa abolição à brasileira…

É evidente que a libertação do elemento servil ocorria já quando a escravidão era menos necessária – ou sustentável, tanto faz. Assim é que a Viúva Noronha abdica da propriedade, deixando-a para seus “bons” escravos e renuncia, de quebra, à vida modorrenta na Corte e parte para outras aventuras comerciais, além-mar. Neste passo, destaque-se a notável coerência de classe expressa nas ideias que compartilha com seu pai, para quem o direito absoluto de propriedade se exerce inclusive contra a propriedade, aniquilando-a. É lapidar a afirmação do Barão de Santa-Pia quando se decide pela manumissão coletiva de seus escravos:

– “Quero deixar provado que julgo o acto do governo uma expoliação, por intervir no exercício de um direito que só pertence ao proprietário, e do qual uso com perda minha, porque assim o quero e posso”.

A renúncia à propriedade do grande Barão será o mais vibrante símbolo de poder que ascende às vésperas da República!

As vidas paralelas que se entrecruzam no romance tecem o cenário de uma sociedade que se desenvolve às cambulhadas, abandonando, “com saudades de si mesma”, uma sociedade fechada e que vê, sobressaltada, as transformações que já não é capaz de controlar.

O casal Tristão e Fidélia abandona o país num momento em que a agricultura definha – “parece-lhe que a lavoura decai”, registra o Desembargador Campos – e surgem novos e poderosos instrumentos de crédito – crédito, aliás, que sempre seria negado aos escravos libertos.

A cena final é emblemática. “Consolavam-se a si mesmos” – diz o Conselheiro, melancolicamente. O romance termina nos estertores da monarquia, já à entrada da quartelada que lhe vai dar cabo. O casal  Aguiar definha fantasmagoricamente, como desmorona uma ordem social e econômica anacrônica.

E os negros libertos? Bem, os negros alforriados e libertos, viram-se afinal livres para um novo jugo!

Dr. Ermitânio Prado, advogado.

6 comentários sobre “Memorial de Ayres

  1. Caro Doutor Ermitânio,

    Como tem passado?

    Soube que, desde as leituras de Carl Gustav Jung, reiteradamente sonha com o coração se divorciando da consciência. Interessante alusão. No entanto, preocupo-me que haja desenvolvido crises de gota como projeção desta luta racional. Ocorre-me dizer-lhe que se tranqüilize, pois sempre haverá um véu suficientemente espesso para justificar o pecado. Ora, em tempos de dessacralização burguesa, meu amigo, o autoflagelo é já demasiado.

    Folgo em saber que retoma as suas atividades, apesar da gota (ou, quem sabe, por conta desta – pouco importa).

    O que importa, de fato, é a criação poética – a sua e a deste seu antepassado espiritual – cujas personalidades críticas, no sentido mais eversivo do termo, se souberam transmutar por aí, quem sabe, numa Rua do Ouvidor.

    Imagino-os caminhando, acordes com que se devam associar na unidade do mesmo gesto o crer e o viver; e debatendo se haveria uma verdade última a que se poderiam reduzir as convenções, os hábitos e o obscuro destino do homem.

    Destino obscuro, porém indistinto em miséria. A costureira Dona Plácida, filha natural de um sacristão da Sé e de uma mulher que fazia doces para fora, expressa o vislumbre machadiano deste mundo sem futuro para o escravo emancipado, nada restando de solene da proposição de Nabuco:

    E de crer que Dona Plácida não falasse ainda quando nasceu, mas se falasse podia dizer aos autores de seus dias: — Aqui estou. Para que me chamastes? E o sacristão e a sacristã naturalmente lhe responderiam: — Chamamos-te para queimar os dedos nos tachos, os olhos na costura, comer mal, ou não comer, andar de um lado para outro, na faina, adoecendo e sarando, com o fim de tornar a adoecer e sarar outra vez, triste agora, logo desesperada, amanhã resignada, mas sempre com as mãos no tacho e os olhos na costura, até acabar um dia na lama ou no hospital; foi para isso que te chamamos, num momento de simpatia.

    Machado de Assis, Memórias Póstumas de Brás Cubas, p.56. Edição da Fundação Biblioteca Nacional. Departamento Nacional do Livro; http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000167.pdf

    A liberdade propalada não era apenas fruto de ingenuidade idealista, mas uma retórica cruel (atentemo-nos às sutilezas do texto). Por certo, algo irônico, certa vez justificou até mesmo Cotrim no trato com os escravos: “não se pode honestamente atribuir à índole original de um homem o que é puro efeito de relações sociais”.

    Machado de Assis, Memórias Póstumas de Brás Cubas, p.83. Fundação Biblioteca Nacional. Departamento Nacional do Livro; http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000167.pdf

    Efeito de relações sociais

    Não sem assombro, Machado de Assis compreendeu que não se pode dar voz ao Segundo Reinado lançando mão do ardil nobiliárquico. Se a baronia burocrática estava ferida de morte pelo capitalismo nascente, este moralista, sem motivos para lamentar a transição, a registra com olhos sarcásticos, de ressaca.

    Não há para ele um “bom passado” para retornar, tampouco quaisquer prospecções para o destino humano. Mira o futuro com a resistência do mulato que se evade da armadura social (ele sempre soube que o mundo é bem mais complexo do que supõe o seco reino das ideias).

    Adverte, neste sentido, que um reformismo legal desprovido de correspondência fática jamais poderia “aviventar uma instituição, se esta não corresponder exatamente às condições morais e mentais da sociedade. Pode a instituição subsistir com as suas formas externas; mas a alma, essa não há criador que lha infunda”.

    Machado de Assis, Notas Semanais (1878), p.29; http://zaapnet.com/conteudo/pesquisa/literatura/autores/machado_de_assis/notas_semanais.pdf

    À alma sincrônica, meu caro amigo!

    Um abraço e o desejo de sua mais pronta recuperação,

    Epifânia Neves

  2. A cada dia que passa (com minha trágica incursão no meridiano) mais me convenço do valor profético de “Os Demônios” de Dostoiévksi.

    Sugiro sua detida releitura pelo Dr. Ermitânio e pela Dra. Epifânia, cujas letras, no mais alçado dos estilos, é motivo da mais alta satisfação de meus desgastadíssimos neurônios.

    RD

  3. Dr. Ermitânio, D. Epifânia e outros leitores do Observatório e de Machado,

    Recomendo-lhes a leitura dos contos do “bruxo do Cosme Velho”, nos quais estão os mais refinados ardis narrativos deste escritor, presentes também em “Memorial de Ayres”, encobridor de sutis intenções.

    Tal narrador pretende sempre inquietar, desassossegar o leitor. Até o mais cauteloso dos leitores pode se deixar levar.

    Não há julgamentos morais no relativismo das ideias subjacentes ao discurso dos narradores machadianos.

    Saudações,
    Sarah Perales

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