O que é ruim para os Estados Unidos é péssimo para o Brasil.

Chain of titleUm amigo enviou-me a indicação de um livro recentemente lançado nos Estados Unidos e que rendeu uma pequena resenha na FSP do dia de hoje (2/7). Trata-se do Chain of Title: How Three Ordinary Americans Uncovered Wall Street’s Great Foreclosure Fraud, de David Dayen.

Logo pensei na expressão de Juracy Magalhães que fez fortuna na época da ditadura militar: “o que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”?

O sistema hipotecário norte-americano (e seus complexos modelos de securitização e mobilização do crédito imobiliário), chama a atenção por influenciar, ainda hoje – após o cataclismo norte-americano -, o mercado brasileiro.

Com a legitimação de recentes decisões de tribunais superiores dá-se um grande impulso a tendências emulativas de registros públicos por empresas de informação. Falo especificamente da recente decisão do STF que reconheceu a validade jurídica de registros administrativos. Em recente julgamento, o ministro Marco Aurélio entendeu inexistir um conceito constitucional fixo, determinado e estático de registro público. Segundo ele “compete à lei ordinária a regulação das atividades registrais”, abrindo as portas pra criação de registros de segurança jurídica por mera iniciativa legislativa. O art. 236 da CF foi relativizado (comentários aqui).

Cláudio Machado é um amigo atento. Soube identificar os elos que nos ligam ao fragoroso colapso do sistema hipotecário norte-americano e seu modelo de registro eletrônico posto nas mãos de instituições financeiras. Ele, que não é da área registral imobiliária, sabe que algo assim está em marcha no Brasil com os recentes regulamentos do Banco Central do Brasil afiançando sistemas de registros de direitos privados, organismos paralelos e homólogos aos velhos e bons Registros Públicos. Já tive ocasião de comentar (e criticar) essa tendência. Uma série de artigos sobre o assunto pode ser consultado aqui.

Vemos agora que além da fraude de identidade (identity theft – artigos aqui) temos a “fraude do despejo”, fase terminal de complexos processos de cessão de direitos que acabam na titularidade de credores completamente desconhecidos dos devedores e deixados sem qualquer rastro nos sistemas de registro. Algo assim ocorre aqui mesmo, no Brasil, fato que comentei e critiquei em Registro público de imóveis eletrônico: riscos e desafios, escrito em parceria com Fernando P. Méndez González e Ricardo Dip (São Paulo, Quinta Editorial, 2012, 167 p.).

O modelo americano, impulsionado pelo seu impressionante MERS – Mortgage Eletronic Registry System (em tradução livre: Sistema de Registro Hipotecário Eletrônico), representou, segundo Dayen “o maior atentado contra o direito do consumidor já ocorrido nos EUA”.

O exemplo americano pode ser pedagógico para os brasileiros. Estamos emparedados e sob cerrado ataque estatizante (como no paradigmático Projeto SINTER e sua infraestrutura de captura de dados registrais – v. série de comentários aqui) ao lado de tendências privatizantes radicais, retirando os registros da órbita das atividades públicas, reguladas e fiscalizadas pelo Poder Judiciário, depositando-as em discretos e opacos bancos de dados de empresas transnacionais.

Toni Sciaretta na FSP recomenda o livro que, segundo ele, explica didaticamente o funcionamento do crédito imobiliário norte-americano. O ponto alto do livro, diz, “é discutir a vergonha que o americano de classe média sente de ficar com o nome sujo na praça e de ser despejado”.

Poderia inverter a blague e dizer, com uma nesga de tristeza: o que é ruim para os Estados Unidos é péssimo para o Brasil.

V. Livro mostra lado cruel da crise das hipotecas nos EUAresenha de Toni Sciaretta, FSP de 2.7.2016.