A recente Lei 11.922, de 13.3.2009, sancionada pelo Presidente Lula, é um estranho corpo legal enquistado no sistema do crédito imobiliário.
O diploma tem origem na MP 445, de 6 de novembro de 2008, que dispunha sobre a dispensa de recolhimento de parte dos dividendos e juros sobre capital próprio pela Caixa Econômica Federal.
Logo a matéria entraria em discussão na Câmara Federal. No seu itinerário, várias emendas foram apresentadas; outras tantas oferecidas pelo Senado e afinal, consolidadas e votadas, foram encaminhadas à sanção. A tramitação e seus acidentes podem ser acompanhados aqui.
A questão mais delicada desta lei, vista da perspectiva dos registros públicos e do direito civil – para não falar do Crédito Imobiliário como um todo -, reside nos arts. 7º e 8º da citada lei, verbis:
Art. 7º. Fica dispensado o registro de averbação ou arquivamento no Registro de Imóveis e no Registro de Títulos e Documentos do aditivo contratual de que trata o art. 5º desta Lei.
Art. 8º. Os contratos renegociados, nos termos desta Lei, poderão ser transferidos, mediante acordo entre as partes, com anuência expressa da instituição financeira credora, mediante a simples substituição do devedor.
Aparentemente, houve cochilo do legislador que, com o dispositivo, pode abalar o edifício que sustenta o regime dos direitos reais no país, mantido e prestigiado pelo novo diploma civil de 2002.
Uma leitura radical e uma exegese literalista levaria à conclusão de que a transferência dos bens imóveis, nas condições previstas na lei, dar-se-ia fora do registro, contrariando, frontalmente, dispositivos legais cravados no Código Civil (art. 1.245).
Evidentemente, esta exegese não pode prosperar, sob pena de se consumar uma verdadeira grotesquerie.
O acidente legislativo ocorreu a partir da emenda oferecida pelo ilustre deputado baiano Nelson Pellegrino (PT). Apresentada a 11.11.2008, a dita emenda, sem o crivo crítico das várias comissões, acabou se acomodando no texto consolidado e afinal sancionado.
O dep. Nelson Pellegrino singelamente justificou a inserção da matéria nos seguintes termos:
Muitas têm sido as iniciativas parlamentares da Câmara dos Deputados no sentido de apresentar adequada solução para os financiamentos do Sistema Financeiro da Habitação formalizados sem a cobertura do FCVS Fundo de Compensação de Variações Salariais e que ainda hoje se encontram desequilibrados financeiramente.
A presente emenda reflete um entendimento a respeito dessa questão que é fruto de inúmeros debates ocorridos nos últimos anos tanto na Comissão de Desenvolvimento Urbano como na de Finanças e Tributação com a participação, inclusive, a convite desta Casa, de representantes e técnicos da Caixa Econômica Federal, do Poder Executivo e dos agentes financeiros privados.
Visou, de maneira acertada, corrigir o desequilíbrio contratual que afeta (e afetará) um grande número de mutuários e seus agentes prestamistas, causando certa instabilidade no sistema.
Mas teria sido necessário, à guisa de ilusória economicidade, chegar ao ponto de subverter a boa ordem que impera no sistema de direitos reais do país?
Claro que não.
Registro da averbação
A iniciativa padece de inúmeros equívocos técnicos e pode representar um risco lateral que talvez não tenha sido antevisto na alvura das boas intenções que sempre embalam iniciativas legislativas que-tais.
Em primeiro lugar, é preciso dar o devido desconto para os casos de profanação de cânones jurídicos e linguísticos por quem, embora sendo advogado – como é o caso do ilustre parlamentar – não é afeito à matéria técnica-registral.
Não é adequado dizer-se “registro de averbação”, que são, juntamente com a matrícula, espécies do mesmo gênero (art. 167 e 172, dentre outros, da Lei 6.015, de 1973).
A expressão não faz qualquer sentido e talvez o autor quisesse mesmo, ao atropelo da lógica, abarcar as duas hipóteses, no afã de não se flagrar impotente depois, em face da perícia exegética do intérprete que destrinça, com espírito e argúcia, o traço imperito do legislador. Anteviu, com rara sensibilidade, que os exegetas, com seus ardis interpretativos verdadeiramente diabólicos, há muito deixaram de se fiar na mens legislatoris para aplicação das leis que são ditadas, como se sabe, pelo alto espírito técnico e científico e soberano interesse social.
É certo que há muito caiu, dissolvida na absoluta irrelevância, certas distinções fundamentais – como a principalidade do ato de registro e a acessoriedade da averbação. Este embrutecimento se deve à boa alma brasileira que exercita o padrão de comportamenteo social que a caracteriza: unidos, levando vantagem em tudo. No caso, na cobrança inferior de emolumentos à custa do operador jurídico encarregado do nobre ofício.
E tudo teria sido tão fácil… Bastaria agregar, ao saldo devedor apurado no inciso I do art. 5º desta estranha lei, o valor dos emolumentos – procedimento, aliás, já autorizado pelo Banco Central, p. ex., no empréstimo rural (cfr. Res. 3.638, de 26 de novembro de 2008, art. 2º, Res. 3.515, de 30 de novembro de 2007).
Também não calha à boa técnica jurídica a idéia de se vedar o “arquivamento”, no Registro de Imóveis, do “aditivo contratual”. Por uma simples e boa razão: não se “arquivam” no Registro de Imóveis títulos que não sejam os registrados ou averbados (art. 194 da LRP).
Por outro lado, o art. 7º desta estranha Lei, ao prever a dispensa do registro da transferência, cria uma antinomia insuperável ao colidir frontalmente com o disposto art. 169 da Lei de Registros Públicos, que prevê a obrigatoriedade do registro para a produção de todos os seus regulares efeitos.
A obrigatoriedade do registro, com o sentido de manifestar a situação jurídica dos bens de forma perene e organizada, encontra, nesta lei, uma espécie de clandestinidade de segundo grau. Ao negar o acesso dos títulos à publicidade registral, a estranha lei fá-los fluir pelos escaninhos labirínticos da administração.
Na tutela deste acervo, troca-se a pena perita do escriba e os arquivos públicos pela opacidade e irracionalidade burocrática do monstro.
L’esprit de la loi
Entendamos o espírito da lei.
Busca-se uma solução para legião gaveteira, que gravita o sistema como opacos sujeitos de parcos direitos. Afinal, meros ocupantes de imóvel financiado, os adquirentes informais se achavam sujeitos a riscos por não poderem contar com mecanismos ágeis de alienação com subrogação da dívida nas condições originais.
O Sistema Financeiro, por outro lado, alegava desequilíbrio nos contratos e sempre exigiu, com base em Lei, a interveniência obrigatória da instituição financiadora para o caso de alienação (art. 1º, § único, da Lei 8.004, de 1990).
A expressão chave desta estranha lei é simples substituição de mutuário – como se a substituição do mutuário não implicasse uma profunda mutação no plexo de direitos subjetivos que se formam a partir do núcleo do negócio de financiamento imobiliário.
Vamos afastar a hipótese prevista no item III, do art. 5º, por sugerir – só sugerir! – que o procedimento seja o adequado – prorrogação do prazo da hipoteca ou sua substituição pela alienação fiduciária.
Nas demais hipóteses, troca-se, simplesmente, Tício por Mévio, mediante a assinatura num aditivivo contratual, roborando disposições que vêm perfeitamente delienadas para se afastar o demônio do “desequilíbrio financeiro”.
E pronto! É o contrato solúvel, que se arma e desarma ao gosto da banca.
Mas as coisas não são tão simples assim.
O gaveteiro contumaz
O gaveteiro (qualificado na lei por ocupante do imóvel – art. 3º, inc. II), já munido de um contrato opaco, firma um outro, agora com o alienante subrogante e o agente financeiro e o destino, por incrível que pareça, é o mesmo limbo jurídico, agora representado pelos escaninhos obscuros das instituições do crédito imobiliário. Não há o efeito da publicidade imobiliária, com o sentido próprio e técnico da palavra, nem se irradia a eficácia jurídica que só um bom sistema registral pode proporcionar.
A lei institucionalizou o contrato de gaveta de segundo grau!
A principalidade do acessório
Tomemos um exemplo prático.
Tício transfere seus direitos e obrigações a Mévio (arts. 3ºe 5º). Este fica subrogado nas obrigações originárias de Tício para com Semprônio, prestamista (art. 5º, §§ 1º e 2º), salvo as estipulações ou outras alterações que o sistema lhe impuser (cautelas elencadas nas cláusulas gerais do art. 5º).
O fato digno de nota é que a garantia hipotecária acha-se inteiramente apoiada e vinculada ao direito de propriedade de Tício (art. 1.419, do CC), que já não integra a relação que se estabelece pelo contrato aditivo de simples substituição do devedor. Segundo a lei, ele, Tício, ainda é tido e havido como o legítimo proprietário. É o que reza o art, 1.245, § único do Código Civil:
Art. 1.245. Transfere-se entre vivos a propriedade mediante o registro do título translativo no Registro de Imóveis.
§ 1º. Enquanto não se registrar o título translativo, o alienante continua a ser havido como dono do imóvel.
Pode ter o bem penhorado por outras dívidas, por exemplo. É que, apesar do contrato aditivo, Tício sustenta a inabalável presunção de ser o proprietário, com todas as consequências daí decorrentes, respondendo todo o seu patrimônio – aí incluído o bem hipotecado – por todas as dívidas, presentes e futuras (art. 391 do NCC). Pensemos nos créditos privilegiados para termos uma idéia dos riscos inerentes a esta aventura.
Por outro lado, os terceiros não serão afetados pelo contrato de gaveta de segundo grau criado pelo gênio legislativo – e isto pela boa razão de que os títulos não registrados não podem ser opostos a terceiros. É o efeito de inoponibilidade que decorre como sanção pelo não-registro (art. 169 da Lei de Registros Públicos).
Nesta quadra, merece transcrição o art. 252 da LRP:
Art. 252 – O registro, enquanto não cancelado, produz todos os efeitos legais ainda que, por outra maneira, se prove que o título está desfeito, anulado, extinto ou rescindido.
Será cabível imaginarmos que Mévio, para defesa de seu direito contra eventual ataque, tivesse que lançar mão do § 2º do art. 1.245 do Código Civil? (“Enquanto não se promover, por meio de ação própria, a decretação de invalidade do registro, e o respectivo cancelamento, o adquirente continua a ser havido como dono do imóvel”). Mas será o registro inválido? Ou será simplesmente defeituoso o contrato firmado sob as bênçãos do agente do crédito imobiliário?
Vejam como a lei afronta o claro direito do cessionário de ver averbada a cessão no Registro Imobiliário, nos exatos termos do art. 289 do C ódigo Civil (“O cessionário de crédito hipotecário tem o direito de fazer averbar a cessão no registro do imóvel”).
Enfim, aos mesmos e multifários problemas que o gaveteiro se sujeita, o de segundo grau também experimentará.
Por exemplo, ocorrendo a morte de Tício, a propriedade se transferirá, ipso facto, a todos os seus herdeiros legítimos ou testamentários, que poderão pleitear (e haverão de alcançar) o registro da partilha.
Imagine-se o trabalho (e o custo) para se cancelar este registro… Não terá sido mais fácil, cômodo, econômico providenciar, desde logo, o registro do aditivo?
Fim do contrato, início da faina
Imaginemos o cenário que se desenha com a realização do contrato. Cumprido o instrumento de gaveta de segundo grau, já com a dívida inteiramente quitada, será necessário que se realize e transferência regular e efetiva do imóvel, pois o contrato aditivo previsto nesta lei é um arremedo de alienação imobiliária. Pretender a mutação jurídico-real por seu intermédio é o mesmo que esperar a reprodução de eunucos.
Voltando ao nosso caso, pensemos que, nos casos mais comuns, poderá ter transcorrido muito tempo desde a assinatura do aditivo e o término do contrato, tudo dependendo do prazo pactuado para integral pagamento.
Aqui começa o calvário de quem necessita localizar a contraparte do contrato original para firmar agora o contrato definitivo.
Percebem como a história contratual se repete como farsa? Isto assemelha-se a um compromisso de compra e venda, porém, neste caso, desarmado da eficácia real que robustece todo o contrato de promessa tradicional registrado.
De que ação se armará Mévio para o caso de não obter a definitiva? Adjudicação compulsória, obrigação de fazer, usucapião… medidas judiciais que certamente haverão de sobrecarregar o Judiciário, onerar o cidadão e causar muito aborrecimento para as partes.
Como se vê, a fortaleza do registro milita contra a dinâmica subreptícia dos contratos de gaveta de segundo grau, agora lamentavelmente oficializados.
Cadeia oficial da clandestinidade
O art. 8º da Lei traz um dispostivo digno de figurar na história da teratologia jurídica:
Os contratos renegociados, nos termos desta Lei, poderão ser transferidos, mediante acordo entre as partes, com anuência expressa da instituição financeira credora, mediante a simples substituição do devedor.
Se soubesse do que se trata, poder-se-ia imaginar que o deputado baiano visou inaugurar, entre nós, o sistema de transmissão de bens imóveis com força no contrato, solo consensu, isto é, com o só acordo de vontade, independentemente do Registro. Mudamos o sistema – de marcada feição tudesca – para o sistema francês.
Mas há o Código Civil e há ainda a larga e respeitável tradição do direito brasileiro, que desde Lafayette, considera o sistema brasileiro como sendo estruturado com base na teoria do título e modo. Entre nós, o registro é constitutivo do direito.
Depois, sabe-se que somente pode alienar (e dar em garantia) quem seja o proprietário (cfr. art. 1.420 do NCC). Sabemos também que somente é proprietário quem registra o seu título. Estes elementos formam o assoalho, vamos dizer assim, do Direito Brasileiro, como até as pedras sabem e proclamam. Como poderá Mévio, no exemplo formulado, transferir os seus direitos e obrigações a Semprônio se não os titulariza em plenitude? Mévio não é legalmente o proprietário, logo não pode alienar o que não tem – nemo plus iuris ad alium transferre potest quam ipse haberet.
O mesmo problema já apontado anteriormente se renova e potencializa. Posto que a alienação ainda estará pendente de se consumar, a cadeia de sucessores reclama o retorno à origem. E no início era o Registro!
Enfim, a lei criou a cadeia oficial da clandestinidade e esta inovação só pode merecer o qualificativo de teratológica.
O desate do nó górdio e a segurança jurídica do crédito imobiliário
A Lei 11.922, de 2009, criou uma situação que pode inocular o germe da instabilidade que se traduz por insegurança jurídica – situação que deveria infundir o terror no sistema do crédito imobiliário.
Como, portanto, impedir que o vírus que se insinua neste sistema se irradie e contamine os seus institutos?
É possível construir uma exegese integrativa do conjunto normativo que rege a matéria, para não pôr em risco todo o sistema do crédito imobiliário por fissuras que podem abrir o dique desta imensa represa constituída de milhões de contratos hipotecários já registrados.
O art. 1º, parágrafo único, da Lei 8.004, de 1990 (na redação que lhe deu a Lei 10.150, de 2000), reza que:
A formalização de venda, promessa de venda, cessão ou promessa de cessão relativas a imóvel financiado através do SFH dar-se-á em ato concomitante à transferência do financiamento respectivo, com a interveniência obrigatória da instituição financiadora.
A contrario do referido parágrafo único, pode-se sustentar que a transferência do financiamento (alvo perseguido pela lei) somente poderá se dar em ato concomitante com a formalização da venda, promessa de venda, cessão ou promessa de cessão relativas a imóvel financiado através do SFH.
O ato de formalização aponta para o preenchimento dos requisitos essenciais para que se dê a mutação jurídica – título e modo, vale dizer: título e registro. Sem o registro não se completa a mutação jurídica que avaliza todo o edifício da garantia hipotecária.
Conclusões
Como já dissemos, esta lei é teratológica e certamente não honra as tradições do crédito imobiliário no país.
Atravessamos as crises que abalaram os mercados hipotecários mundiais por contarmos com um sistema de crédito imobililário bem estruturado, ágil, dinâmico e um excelente Registro de Imóveis a serviço da mobilização do crédito.
É preciso confiar que o Sistema de Crédito Imobiliário deste país se aperceba do grande equívoco que esta lei representa. É preciso chamar à mesa de discussões representantes da Abecip – Associação Brasileira de Empresas de Crédito Imobiliário e Poupança, que são os maiores especialistas nesta matéria, representantes da Caixa Econômica Federal, técnicos do governo, para tentar acabar, de uma vez por todas, com iniciativas atabalhoadas que nascem, fundamentalmente, do preconceito e do desconhecimento do sistema registral brasileiro.
Não é de se estranhar que a emenda tenha partido de um baiano, já que naquele estado os serviços registrais e notariais, exercidos diretamente pelo Poder Público, sabidamente não funcionam. A Bahia está à parte do sólido sistema registral brasileiro em razão do descumprimento do preceito constitucional que determina o exercício das funções registrais através da delegação, e seu representante, apesar de apresentar emendas como a que está em questão, desconhece a Constituição, o Código Civil e a Lei 6.015. Não bastasse, o presidente sanciona a lei….
Parabéns pelos comentários e esclarecimentos. Sinto-me enriquecida com o conteúdo.
Parabéns pelos comentários à Lei 11.922/09, trazendo à baila impropriedades e ilegalidades do texto, e, ainda, oportunizando a discussão da materia entre profissionais de vários setores da sociedade.
Esse novo Frankstein vem a corroborar aquilo que todos nós já sabemos, resumido numa singela frase : O Brasil não é um país sério !
Só nos resta continuar lutando para preservar o pouco que resta de bom em nosso ordenamento juridico-legal.
Saudações