Publicidade registral e direito à privacidade

Fernando P. Méndez González

O OR entrevista nesta semana o registrador e ex-decano do Colégio de Registradores da Espanha, D. Fernando Méndez González.

Registrador em Barcelona, Fernando Méndez González é uma autoridade mundial em temas de registros públicos. Foi decano do Colégio de Registradores de Espanha em período em que os registros prediais naquele país passavam por enormes dificuldades. Sob sua batuta, o corpo de registradores soube enfrentar os desafios e robusteceu, ainda mais, o paradigmático serviço registral espanhol.

Conheça a opinião de Fernando Méndez González sobre temas atuais de publicidade registral e direito à privacidade.

Observatório do Registro – Recentemente, a EuropaPress veiculou nota em que a Associação de Defesa dos Usuários dos Registros Públicos (Audrp) apresentou uma denúncia à Agência Espanhola de Proteção de Dados contra o Colégio de Registradores, “por facilitar dados de caráter pessoal a terceiros, via internet”. A questão nuclear reside na emissão de notas informativas sem comprovação do legítimo interesse e justificação da rogação.

Fernando Méndez: Como se sabe, os notários espanhóis pretendem sobreviver à custa de se apropriarem das funções registrais. A função de qualificação registral, por exemplo, é alvejada sob o argumento de que haveria uma “dúplice qualificação”, já que o notário exerce um exame de legalidade e o registrador se superpõe a ela. Se os notários pudessem qualificar os títulos, em realidade seriam eles os registradores. Ademais,  seriam os autores intelectuais do ato de registro, reduzindo os registradores a meros mecanógrafos ou amanuenses…

OR – Se eles qualificam, podem simplesmente eleger os registradores e com isso emitir as informações simples…

FMG – A notícia veiculada pela EP se radica na estratégia de se apropriar da função de expedição de informação registral. Na Espanha há duas formas de se veicular a informação registral: (a) nota simples informativa e (b) certidão. A terceira – leitura direta dos livros – está proibida, pois a Lei de Proteção de Dados impede que os interessados possam aceder diretamente aos dados protegidos. No caso de certidões, o Registrador examina o conteúdo do registro e subscreve o documento. Já na nota simples informativa, em tese não se examina o conteúdo, mas na prática esse exame ocorre. Veja que o registrador não firma o documento, que leva o selo do Registro. Seu preço é excessivamente barato.

OR – O registrador não assina a nota simples informativa?

FMG – Atualmente, não se justifica que os documentos registrais, quaisquer que sejam – inclusive a nota simples –sejam emitidos com simples selos, quando deveriam ser assinados. Definitivamente, penso que deveria desaparecer o conceito da nota simples informativa sendo reduzido o acesso à informação registral a uma única via: a certificação. O esquema atual responde a uma realidade econômica, social e tecnológica ultrapassada, não se adequando às necessidade de rapidez e segurança de nosso tempo em que se torna uma realidade a contratação impessoal.

OR – Mas, atualmente, como essas informações são solicitadas ao Registrador?

FMG – Elas podem ser solicitadas diretamente no Registro, mediante requerimento firmado pessoalmente pelo próprio solicitante, ou pela internet. Em todos os casos, o solicitante deverá identificar-se e manifestar o interesse que justifica a expedição da informação. Este interesse há de ser “conhecido”, nos termos da Lei Hipotecária, o que a doutrina e a jurisprudência interpretam como “legítimo”. O interesse deve ser manifestado, não justificado.

OR – Fiz uma rápida pesquisa na Internet acerca da Associação de Defesa dos Usuários de Registros Públicos e desponta unicamente a repercussão da notícia aqui comentada. O site da entidade não traz os nomes das pessoas que compõem a diretoria. Afinal, quem administra e representa a ADURP?

FMG – A Adurp compõe-se de um grupo de três notários, cujo presidente é o vice-decano do Colégio Notarial de Las Palmas. Por seu turno, seu decano é o vice-decano do Conselho Geral do Notariado. As notas que geraram as discussões foram solicitadas pela internet, com nomes e documentos de identidade falsos e com motivos absurdos. Em alguns casos obtiveram-se as respostas, mas observe-se: (a) Não obtiveram nenhuma nota rogada presencialmente, pois nesse caso seriam obrigados a identificarem-se exibindo suas cédulas de identidade (DNI). (b) Omite-se o fato, bastante relevante, que a maioria das requisições deixaram de ser atendidas; (c) Pela internet se pode comprovar a identidade do requerente, já que os dados relativos ao nome e DNI ficam arquivados em nossos sistemas a partir da solicitação.

OR – A questão do controle do interesse legítimo parece ser a pedra de toque do problema.

FMG – Em relação ao controle do interesse legítimo, pondere o seguinte. Em primeiro lugar, o interesse deve ser manifestado, mas não justificado perante o Registrador. Em realidade, tanto faz que se alegue um motivo absurdo – como aliás se fez – ou um legítimo, porém falso. Trata-se de circunstâncias que o Registrador ordinariamente não pode apurar. Além disso, o critério adotado pela jurisprudência – sobre qual seria o interesse verdadeiramente legítimo – é muito amplo. Dou um exemplo: a um jornalista se reconhece amplamente esse interesse. Depois, as requisições chegam pela internet por intermédio do Colégio de Registradores, o que empresta aos pedidos uma aparência de regularidade, isso tudo sem contar que essas requisições vêm em grande quantidade…

OR – O que demonstra que não se pode mudar o sistema em virtude das exceções. Não se decreta o fim da aviação civil por que um avião se acidentou…

FMG – Solicita-se uma grande quantidade de notas simples em todo o país. Atendemos a notários, advogados, bancos, administradores, incorporadores, etc. Em regra não há qualquer problema, pois o uso da informação é racional e adequado às necessidades do mercado imobiliário.

OR – Afinal, houve invasão à privacidade nos casos denunciados?

FMG – Em nenhum caso se facilitou o acesso a dados protegidos, absolutamente. Sob esse aspecto, é fundamental que se diga que não se tem notícia da ocorrência de uma só falha.

OR – Podemos considerar tudo isso uma disputa por mercado de trabalho?

FMG – O fato é que, com a estratégia idealizada, buscou-se demonstrar que os Registradores não controlam devidamente os dados sob sua guarda. Fazendo-se passar por uma Associação de Usuários, o que pretenderam foi aceder livremente à informação registral sem o controle do registrador. A única conclusão a que se pode chegar é que o sistema não está concebido para que as pessoas possam atuar como hackers. Em tese, acessar os dados registrais, subvertendo as finalidades para as quais o sistema foi criado, forjando identidade e interesse legítimo, supõem: suplantação da personalidade, falsificação de documento, cessão não consentida de dados, etc. Por fim, tanto o Ministério da Justiça, quando a Agência de Proteção de Dados, estão cientes de todo o ocorrido. À parte isso, o sistema eletrônico será reforçado e aperfeiçoado.

OR – Muitos procuram uma analogia com informações sensíveis que, por exemplo, os médicos mantêm sob sua guarda. Não seria justificável que os médicos ou a associação médica veiculasse essas informações a terceiros por meio de suas entidades. Como responder a essas críticas?

FMG – Vamos por partes. Em primeiro lugar, a informação registral está em cada Registro, não no Colégio, que não a possui nem pode aceder a ela. O Colégio de Registradores criou um sistema eletrônico denominado FLOTI (fichero localizador de titularidades inscritas) que serve para encaminhar as requisições de informações ao registro correspondente, mas não acede diretamente à informação registral. Por outro lado, quando um adquirente inscreve, já sabe que sua aquisição pode ser conhecida mediante a solicitação de informação, um requisito indispensável para que o mercado possa funcionar adequadamente. No exemplo dos médicos, os dados sensíveis, assim como os demais de uma história clínica, não estão concebidos para que possam ser consultados por terceiros, a não ser por outros médicos.

OR – Há notícia de efetivo dano experimentado por quem teve sua situação jurídica publicitada por uma nota simples na Espanha?

FMG – Já houve notícias de que a ETA [Euskadi Ta Askatasuna, “Pátria Basca e Liberdade”, grupo terrorista que busca a independência da região basca, NE] obteve dados patrimoniais mediante a solicitação de informação registral por meio de pessoas físicas. Já no âmbito do Registro Mercantil, houve queixas dos empresários espanhóis que se ressentiram do fato de que seus concorrentes franceses, por exemplo, poderiam obter mais e melhores informações examinando os depósitos em contas inscritos no Registro Mercantil espanhol. A inversa não é verdadeira; isto é, os espanhóis não podem, com a mesma comodidade, examinar os depósitos em contas no Registro Mercantil francês porque a França transpôs de forma diferente as diretivas europeias sobre a matéria. Tudo isso leva à necessidade de uniformizar a regulamentação a nível europeu, pois a informação homogênea é essencial para o bom funcionamento do mercado. Já em outro plano, é usual que os jornalistas investiguem políticos solicitando informações aos Registros de Imóveis e Mercantis. A essas informações teriam direito, segundo consagra a jurisprudência. Em suma, o serviço de informação do sistema registral espanhol goza de excelente reputação e é valorizado pelos cidadãos, empresas e administrações, pois facilita extraordinariamente o funcionamento dos mercados imobiliário e hipotecário, proporcionando a adoção de medidas cautelares ou promovendo a execução de sentenças, colaborando com a efetividade do processo judicial.

OR – Como conciliar a necessidade social e econômica da publicidade registral com o direito à privacidade?

FMG – Trata-se de um dilema de difícil equação. No sistema espanhol, a inscrição, em linhas gerais, é voluntária, mas fundamental para a segurança e liquidez da aquisição. O preço é a titularidade que é tornada pública pela publicidade registral – embora com certas limitações. Parece-me que se deve reconhecer a todo o cidadão o direito de saber a quem pertence um imóvel determinado, sem maiores detalhes. Se se busca uma informação mais ampla e completa, há limitações fundamentais: em primeiro lugar, o direito a obter a informação registral há de responder à finalidade do registro – ou seja, corrigir assimetrias informativas no mercado imobiliário. Portanto, a informação há de ser provida nos casos em alguém dela efetivamente necessite, seja porque vai adquirir o imóvel, seja porque dará o bem em garantia.

OR – Voltamos ao tema do legítimo interesse…

FMG – De fato, controlar o legítimo interesse, joeirando a boa ou má utilização do sistema é extremamente difícil. Quiçá a solução poderia ser exigir autorização do titular registral para o acesso à informação completa. Depois, os denominados dados sensíveis somente poderão ser conhecidos com autorização do afetado ou por aquelas pessoas especialmente autorizadas pela lei que, a meu juízo, devem ser unicamente os juízes, promotores de justiça ou a Fazenda Pública, no caso de fiscalização. Enfim, creio que a atual facilidade para se obter uma informação registral completa, excluídos os dados sensíveis ou especialmente protegidos, deve desaparecer.

OR – O que o Colégio está fazendo para mitigar os problemas apontados?

FMG – Creio que o Colégio esteja dialogando com a Agência de Proteção de Dados e com o Ministério da Justiça. Em primeiro lugar, nas requisições realizadas pela internet, o Colégio somente dará curso à tramitação do pedido se exista a necessária manifestação de um interesse que responda à finalidade institucional do Registro – ou quando esteja em causa aqueles casos em que a jurisprudência tenha reconhecido o direito à informação, como é o caso dos jornalistas. O controle cabe a cada Registro. A proveniência da requisição do Colégio, acaba por criar uma aparência de que tal interesse efetivamente existe, o que pode facilitar o êxito parcial do estratagema utilizado por quem burla o sistema. Há que se buscar um sistema de comprovação automática do número de DNI declarado – se de fato existe, se há correspondência com o nome do solicitante, etc. A largo prazo, é necessário ir restringindo o acesso à informação registral.

OR – A certificação digital (assinatura digital), por gerar a presunção de autoria da assinatura, não poderia se constituir no instrumento obrigatório para rogação de informações registrais? Com isso se constituiria uma prova pré-constituída contra aquele que faz mal uso da informação.

FMG – Sem dúvida! Na Espanha, todos as novas cédulas de identidade (DNI) são digitais e incorporam a firma eletrônica, o que significa que em uns 5 ou 6 anos todos os cidadãos disporão de uma DNI, podendo firmar eletronicamente. Nesse ambiente, a exigência da firma eletrônica para veicular a requisição de serviços registrais pela internet não representará qualquer problema adicional e servirá para controlar, com suficientes garantias, a identidade pessoal do solicitante. Atualmente, como medida adicional de segurança, os registros arquivam as requisições durante 5 anos, precisamente para esta finalidade. Uma medida complementar poderia ser a de que o registro se comunicasse com o titular registral toda vez que alguém solicitasse uma informação e que esta fosse emitida. Ou que os titulares pudessem ter conhecimento do fato consultando sempre que quisessem o registro.

OR – Os documentos particulares, firmados pelas partes com assinatura digital, poderiam confortavelmente substituir as formalidades custosas da escritura pública?

FMG – De um ponto de vista – das garantias de autenticidade do documento -, não há a menor dúvida a respeito. Questão diversa é saber se essa equivalência justificaria a substituição do meio tradicional em todos os casos. Tendo a considerar que seria justificável nos casos de documentos “estandarizados”, nos quais há a interveniência de grandes corporações ou instituições bancárias que colocam em jogo seus ativos reputacionais (por exemplo, nos casos de hipotecas bancárias). Nos demais casos, não é assim tão óbvio que a substituição possa ser vantajosa, pois a intervenção notarial não seria substituída pela autoria documental do próprio particular, mas poderia concorrer serviços de outros profissonais. Nesse caso, não se garante que esses outros serviços sejam mais especializados, nem mais baratos. Cada caso é um caso e devem ser muito bem estudados.

6 comentários sobre “Publicidade registral e direito à privacidade

  1. Jacomino: Você fez a seguinte questão ao entrevistado:

    ” Os documentos particulares, firmados pelas partes com assinatura digital, poderiam confortavelmente substituir as formalidades custosas da escritura pública? ”

    São atitudes como estas que levam à desunião de nossa tão amada classe. Sou filho de registrador de imóveis, sou ex-escrevente de registro de imóveis, e hoje tabelião de notas. Tenho, portanto, condições de dizer a você, que se julga tão defensor de nossa classe, que comentários como o por você feito, ainda que em forma de perguntas à entrevistados, somente acirram a tão combalida relação notário x registrador. Porque não procurar o fortalecimento de toda a classe? Porque ficar criticando a escritura pública ao invés de capacitar os seus funcionários a entenderem o processo notarial? Nem me venha dizer que na Espanha os notários estão causando problemas aos registradores! Outro País, meu caro!

    Decepcionante!

  2. Caro Sr. Tarcísio.

    Responda o Sr. a questão. É melhor a escritura pública? É mais barata? É mais segura?

    É preciso tomar uma certa dose de coragem e começar a discutir seriamente estes pontos sensíveis. Eu tenho uma opinião formada a esse respeito e já a deixei firmada e confirmada por aí. Não preciso justificá-la agora. Penso que essa defesa corporativa, além de estúpida, é contraproducente. Por vários motivos. E se o Sr. não a pôde alcançar até aqui, não vale mesmo a pena insistir no ponto.

    Uma nótula final: não critiquei a escritura pública na entrevista. E pra falar bem a verdade, todos nós sabemos como é o “processo notarial”, em que o notário, muita vez, é capturado pela legião de subnotários que infestam certos cartórios e lavram escrituras que não resistem à mínima qualificação registral.

    Fale à vontade por aqui. Não há censura à opinião nem às críticas – inclusive as dirigidas aos registradores, que são muito bem-vindas e que são o estímulo essencial para sair dessa pasmaceira em que notários e registradores se meteram numa defesa corporativa obtusa e ineficaz.

  3. E os péssimos escreventes registrais que “infestam” os Cartórios de Registro de Imóveis Brasil afora, como ficam? Defender uma categoria não é estúpido, como você fala! Estúpido é achar um instrumento particular, destituído de todo e qualquer controle, melhor que a escritura pública! Estúpido é não aceitar opiniões contrárias! Estúpido é se julgar acima do bem e do mal, não acha?

  4. Eu somente acho que este tipo de discussão, envolvendo registradores e notários, não deve ser travada em espaço aberto… A opinião pública já não gosta da classe… imagine quando notários falam mal de registradores e registradores falam mal de notários! Fica difícil defender o indefensável, concorda? Não quis criar contigo, qualquer discussão, mas mero debate, ainda que ache que espaços abertos não são os mais adequados para tanto… Nossas diferentes opiniões têm valor e argumentos que podem, e devem, ser conhecidos pela opinião pública e legisladores, mas não as nossas desavenças e brigas internas! Isso somente prejudica a classe como um todo! Estou há 5 (cinco) anos Tabelião e acredito que nunca discuti com o Registrador da Cidade… e isso porque acho que “cada macaco no seu galho”. O importante é o diálogo…

    Abraços e, de minha parte, o debate continua!

  5. Caro Tarcísio.

    Conheço, há anos, a opinião de D. Fernando sobre os temas debatidos. Ele fez uma ressalva importante que, para mim, faz toda a diferença. A firma digital resolve uma parte do problema, não o essencial. Fundamentalmente, a atuação notarial é indispensável. Alguém terá que fazer o que fazem, e não tem sentido algum deslocar essa atribuição para outra categoria profissional qualquer.

    Insisto: os temas postos têm que ser debatidos sem o ranço corporativo que ainda acomete, como espécie de febre serôdia, certa representação política de notários e registradores.

    Os notários estão preparados para as novas demandas sociais? Estão apetrechados para a economia digital? Penso que sim, sinceramente. Possivelmente até mais do que os próprios registradores. O Colégio Notarial de São Paulo é um exemplo eloquente de capacitação tecnológica e preparo profissional.

    O que falta aos coleguinhas é abandonar o discurso rançoso da reserva de mercado e adotar o da competência e qualificação profissionais como requisitos indispensáveis para superar os desafios no novo milênio.

    No mais, convido-o a fazer uma pesquisa minuciosa neste site para descobrir por quais razões defendo o notariado brasileiro. Não por favor algum, mas por convicção pessoal. Só não me peça para não expressar a minha própria opinião…

  6. Acho que tanto o Tabelião quanto o Oficial Registrador não só podem mas como devem, também, qualificar os títulos. Há também, nos diversos registros de imóveis do Brasil, escreventes que mal qualificam o título apresentado, acatando-o para registro.

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