FLAUZILINO, um homem além de seu tempo

Quando nos referimos a homens extraordinários, singulares, quando pensamos em profissionais que se destacam entre pares, é respeitado pela comunidade de juristas a que pertence, dizemos que são “homens além de seu tempo”.

No que respeita ao Registro de Imóveis brasileiro, quantos podem ser considerados “homens além de seu tempo”? José Tomás Nabuco de Araújo, Lisipo Garcia, Waldemar Loureiro, Serpa Lopes, Afrânio de Carvalho, Filadelfo Azevedo, Dídimo Agapito da Veiga, Elvino Silva Filho, Jether Sottano… São nomes que despontam nesta galáxia de luminares, homens a quem muito devemos por manter viva a instituição do Registro de Imóveis brasileiro, transformando-o ao longo do tempo, renovando-o, permitindo que assimilasse novas demandas e proporcionasse respostas adequadas às exigências do tempo.

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Quem nos lê? Quem nos lerá?

Folhas varridas pelo vento.
Folhas varridas pelo vento

Os velhos cartórios eram feitos à imagem e semelhança dos escritórios de mosteiros medievais. Dobrados sobre estações de cedro, dispostas numa grande sala, deitávamos os pesados livros de registro sobre as escrivaninhas e neles inscrevíamos lentamente os títulos protocolados.

O tempo corria vagarosamente, como o pôr do sol sob as persianas do velho casarão do cartório. Diante de nossos olhos atentos passavam inventários, partilhas, hipotecas, penhoras, arrestos, arrematações… Quantos dramas humanos nos revelavam, quantas alegrias e tristezas, tantas chegadas, tantas partidas… lances da vida representados em rios de símbolos e de sentidos. Sentíamo-nos partícipes da grande família humana, retratávamos os lances do destino inscrevendo-os nos pesados livros de registro.

Cabia-nos recolher e coligir escrupulosamente os elementos de transcendência real para plasmar os atos de registro. Não se enganem, senhoras e senhores, o registro era um ato de criação. Não se pense que os antigos livros eram de mera transcrição, cópia literal, verbo ad verbum, das escrituras públicas. Nunca fomos meros amanuenses; realizávamos transcrições das transmissões, não reproduções literais de títulos e documentos. Éramos de certa forma livres, mas sempre advertidos pela tradição e pelo decano do ofício: “a liberdade é consentimento numa ordem”. Lavrávamos os atos de modo pessoal, mas em estrita observância aos ditames da praxe multissecular. Sou capaz, ainda hoje, de reconhecer o estilo pessoal de cada um: a elegante caligrafia do Sr. Andrônico, a escrita robusta e precisa do Bepo, elas desfilavam garbosamente em contraste com os garranchos do Bodão.

Às vezes nos distraíamos junto à pia do scriptorium, desmontando e lavando a caneta tinteiro. A tinta se esvaía na água corrente e carregava consigo nossas angústias e tristezas. Outras vezes, substituíamos a pena cansada e viciada, deixando que o profundo azul-royal da tinta Quink tingisse os dedos. Depois de tudo, era preciso desbastá-la, buscando o exato eixo para que deslizasse suavemente sobre o papel. As penas, assim como os escreventes, se tornam melhores com a lavratura diuturna.

A caneta reconhece o bom escriba e a ele se dobra, dócil e gentilmente. Aprendi num velho cartório que a caligrafia nos torna homens muito melhores.

Outras vezes nos dedicávamos à árdua tarefa de decifrar a escrita irregular de um velho escrevente alcoólatra. Era preciso adivinhar o sentido do texto a partir dos garranchos e garatujas que se tornavam tanto mais esotéricos quanto mais avançada era a hora do dia. Pelas manhãs, sua letrinha serifada era nítida e elegante; já no começo da tarde, porém, com o raciocínio enturvado pelo álcool, o velho escriba derrapava, transbordava as margens tracejadas de linhas e colunas rubras e avançava sobre os vastos domínios que se acham à margem – o território livre das averbações. Hic sunt leones! O velho escrevente, no meio da tarde, já não se sustentava e esboroava feito um meteoro torpe sobre o livro.

Ingressei no nobile officium ainda muito jovem. Inscrevi, transcrevi, averbei… lavrei a verba elegante da praxe cartorária em livros de registros manuscritos. Tenho dito aos meus colegas de ofício: “vivemos uma espécie de crepúsculo do ofício registral”. Isto dizemos para nós mesmos, velhos escribas, e rimos, rimos feito crianças. “Tudo o que no mundo existe começa e acaba num livro”, todos sabemos – especialmente nós outros, os escribas, que lavramos a nota inaugural e final da sinfonia inacabada dos homens.

Quem nos lê, quem ainda nos lerá? Haverá quem nos compreenda essencialmente? Ou seremos tragados e traduzidos por uma máquina? A lavra perita que encarna o espírito do tempo (e de certo modo o traduz) é varrida pelo vento, como as folhas secas no quintal. É tão lindo e triste o ocaso. Todo o referido é verdade e dou fé.

Crônica revista e atualizada para publicação no site Migalhas Notariais e Registrais: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-notariais-e-registrais/399325/

Um cartório na boca da noite

O só evocar o seu nome,  logo me vem à memória a figura de um negro vigoroso, boina displicentemente jogada sobre a calva, sorriso cativante e dentes perfeitos e alinhados. Francisco Rodrigues da Silva foi o responsável pela faxina da serventia à época em que eu era um mero auxiliar de Cartório.

Sempre chegava quando todos já se tinham retirado. Abria a porta pantográfica, acendia as luzes, e logo se punha a faxinar o velho Cartório de Registro de Imóveis. Ouvia um radinho de pilha que depositava cuidadosamente sobre os arquivos enquanto varria as salas, retirava as bitucas do cinzeiro, esvaziava os papeis do “cesto ofício”, espanava e lustrava os móveis.

À noite tudo se acalmava. Eu ficava até mais tarde, o silêncio era convidativo, sentia conforto na solidão. Os livros se fechavam, as máquinas que matraqueavam as certidões negativas de ônus e alienações silenciavam, cessava a conversa fiada dos escreventes em disputa com o burburinho no balcão. Chicão vinha restituir a ordem após um dia inteiro de inscrições, averbações, transcrições e palrações frouxas e irrelevantes que reverberavam nas paredes cinzas do cartório.

Quando me encontrava com Francisco, sempre falávamos de amenidades, ríamos de qualquer bobagem, éramos felizes, alegres, despreocupados. Ele jamais se detinha nas suas tarefas e quando me via, logo abria um sorriso cativante, tomava a vassoura e parecia que dançava ao som que brotava do pequeno Spica posto sobre o velho fichário União.

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Um amor fugaz

O Cartório de Registro de Imóveis era multifacetado, agregava anexos como a Corregedoria Permanente, os Cartórios do Júri e o de Menores. Trabalhar nos anexos era diferente e poucos se interessavam. Havia processos administrativos disciplinares, sindicâncias, expedição de alvarás para menores frequentarem bailes nos finais de semana, mas havia uma parte sinistra que suscitava a curiosidade mórbida de alguns escreventes: os processos do júri, com suas horripilantes fotos em preto e branco. Viam-se pobres vítimas assassinadas de muitas maneiras – a machadadas, enforcadas, esfaqueadas, baleadas, até mesmo decapitadas. As fotos jaziam entre as folhas amareladas dos autos e o pequeno auxiliar de cartório sempre as espiava de soslaio quando tinha que numerar e rubricar as folhas dos autos. As fotos metiam-lhe medo e repugnância, às vezes pesadelos.

Os homicidas eram levados a júri e as  sessões eram sempre muito concorridas. As pessoas se aboletavam no grande salão do tribunal para acompanhar os debates travados entre o Dr. Raposo Mendez, um refinado velhacaz, e o promotor de justiça da comarca, Dr. Eustáquio da Silveira. Os debates se tornariam antológicos, mas o que mais impressionava o jovem cartorário era a perícia do escrivão do júri, o “Seu” João Penaforte. Ele reduzia os momentos importantes do julgamento em elegantes termos de audiência e o fazia com rapidez faiscante, dedilhando o teclado estilizado de uma Remington 19. Era como se a máquina fosse uma extensão de si mesmo. João antecipava-se ao comando do juiz, adivinhava-lhe os pensamentos, intuía suas intenções, era como se conduzisse, ele próprio, o curso da sessão. Quem trabalhou nas comarcas do interior sabe muito bem o valor dos escrivães experimentados e certamente terá ouvido falar do grande João Penaforte, o escrivão do Tribunal do Júri.

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Um homem leigo e seus temores

A intervenção em cartórios é uma operação traumática. As serventias extrajudiciais são fiscalizadas de modo permanente, visitadas por juízes em correições ordinárias ou extraordinárias. Ao final, lavra-se no Livro de Atas de Visitas e Correições elogios, advertências, suspensões, podendo chegar até mesmo à perda da delegação.

Olavo Limoeiro era um Oficial da velha-guarda. Impunha-se pelo porte físico avantajado, voz tonitruante, era dono de um linguajar que alguns consideravam vulgar e inadequado. Homem duro e corajoso, sabia enfrentar desafios, mas era também um sujeito divertido, pescador, exímio contador de piadas, tinha extraordinária presença de espírito.

Olavão adorava organizar churrascos regados a cerveja à beira da represa. O juiz da comarca, o promotor, velhos advogados do foro, todos frequentavam o seu rancho arejado e bem cuidado. Embora não tivesse completado o segundo grau, seu nome era sempre lembrado pelos juízes quando a situação de determinado cartório era crítica e reclamava a decretação de intervenção, com o afastamento do titular.

Certa feita, Olavão foi nomeado pelo Corregedor-Geral de Justiça para intervir num cartório problemático da Alta Mogiana. As denúncias eram fartas: selos e verbas sonegados, longas ausências injustificadas, atecnia na lavratura dos atos, depósitos extraviados, atrasos no registro de títulos e muitas outras irregularidades. Todas elas seriam elencadas na ata de correição que foi publicada no DOJ (Diário da Justiça) para opróbrio do serventuário e de seus pares.

Mal chegando ele à cidade, e passados poucos dias, espalhou-se a notícia de que o interventor cancelaria todos os registros feitos pelo Dr. Peralva, o Oficial titular, sob o argumento de que eram nulos de pleno direito. Dizia-se que a Corregedoria faria uma razia nas inscrições, não restaria pedra sobre pedra. A notícia era falsa e fora propagada primeiramente pelo dono de um pasquim local, Chico Cachoeira, velho jornalista e amigo de infância do Oficial, parceiro de noitadas num certo lupanário da região. E depois, como se não bastasse, a notícia se alastraria feito fogo pela rádio de um político local, aumentando ainda mais a confusão.

As pessoas acorreram ao Cartório para certificar-se de que o seu registro não seria cancelado. Alguns diziam que as escrituras não tinham sido registradas porque o “safado do Peralva” consumira os selos e emolumentos em jogos de azar e noitadas no mal afamado “Espora de Prata”.

Foram dias tumultuados, gritarias no balcão, filas na calçada, pessoas passando mal, a polícia fora chamada. O cabo Aleixo aproveitaria o ensejo para certificar-se de que o registro do seu rancho não seria “cassado”.

Eu havia sido nomeado para auxiliar na intervenção e procurava ajudar Olavão como podia, mas a desconfiança da população parecia invencível. Forasteiro na cidade, eu me perguntava – que diabos eu vim fazer neste fim de mundo?

Numa sexta-feira, um velho postou-se ameaçadoramente num canto da recepção. Ali ficou plantado, observando o movimento, o entra e sai das partes, a algaravia, fitava tudo com ar sisudo, cara fechada, o chapéu enterrado na cabeça e as mãos enfiadas nos bolsos de um desbotado paletó ocre.

A verdade é que a figura começava a provocar certo receio no pessoal. Seria um pistoleiro contratado pelos fazendeiros? Um jagunço? Pensaria que o registro do sítio que recebera de herança seria cancelado?

No final do expediente, como o sujeito ainda persistisse no local, as escreventes esconderam-se no arquivo; outros refugiaram-se no banheiro, espiando pelas frestas da porta entreaberta. Tinham medo de sair, o expediente findava, escurecia.

Olavão, peito aprumado, lançou um olhar desafiador antes de enfrentar-se com o mal-encarado desconhecido que vinha em sua direção. Ao aproximar-se do balcão lentamente, as mãos socadas no bolso, o estranho fez um gesto inesperado, parecia inclinar-se, e com voz fina e desafinada, quase ao pé do ouvido de Olavão, disse:

Dotor, discurpa priguntá… É que sou meigo no assunto… 

Olavão desatou uma risada sonora e desbragada. O velho começou a rir também, sacudia o paletó terroso e o corpo desajeitado, as mãos tapavam o sorriso desdentado, os funcionários respiraram aliviados.

Encerramos o expediente, apagamos as luzes, fechamos o cartório e Olavão foi tomar umas cervejas no boteco acompanhado do velho mal-encarado.

Pouco a pouco, a paz voltaria ao cartório. Os registros não foram cancelados, o Dr. Peralva foi aposentado e a vida da comarca retomou o seu modorrento ritmo normal.

Sobre o velho, jamais pude saber o seu nome, apenas que era um cidadão leigo nos assuntos de cartório. O referido é verdade do que dou fé.

Sérgio Jacomino. A crônica foi originalmente publicada no Migalhas Notariais e Registrais: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-notariais-e-registrais/397599/um-homem-leigo-e-seus-temores–secao-tudo-e-verdade-e-dou-fe

O Oficial-Maior e o baixo-clero cartorário

Cartórios brasileiros

Seu Vitinho e seu terno surrado*

Seu Vitinho era o Oficial-Maior do Registro de Imóveis da comarca. Era um homem de meia idade, atarracado, nervoso, mal cabia no terno cinza surrado e camisas puídas e amareladas. A gravata era verde esmeralda, destoava do conjunto, mas sempre lhe pareceu que o complemento o tornava ainda maior. Afinal, ele era o Oficial “Maior” da Serventia.

Já Seu João Arconte era o Oficial do Registro de Imóveis. Homem bonachão, bondoso, tímido, de poucas palavras. Não tinha filhos. Era casado com Dona Rutinha Arconte, de quem se dizia ter sido escrevente autorizada em priscas eras. Era uma mulher de “boa família e fina estampa”, diziam os que um dia a conheceram. Com sorte se podia encontrar sua letrinha miúda e caprichada perenizada nalgum livro de transcrição das transmissões. Os mais velhos juravam que se devia a ela o fato de o Cartório jamais contratar mulheres.

Seu João Arconte havia acedido ao cargo de Oficial ainda na década de 50, por concurso público, nomeado pelo Governador do Estado. Encontrou o Cartório como o deixara o antecessor, importante figura da Primeira República. Mantinha o mobiliário que vinha de outras gerações de notários, escrivães, depois registradores. Ali havia carimbos, penas, mata-borrões, tinteiros, sovelas, prensa, mimeógrafos… O cartório terá sido sempre assim, cravado no mesmo lugar, imune à passagem de corregedores, promotores, advogados e do próprio tempo, que fluía lenta e preguiçosamente.

O prédio do Registro de Imóveis era um casarão de várias salas, cada qual com sua especialização: havia a sala de conferência, exame e extrato, a de certidão, a de transcrição. Os escreventes lavravam atos manuscritos por cópia dos extratos que eram redigidos pelos mais experientes. Havia ainda o arquivo, a sala do café e o balcão de atendimento das “partes”. No final do corredor, bem escondidinho, achava-se a saleta do Oficial. Seu João se deliciava em ouvir os clássicos na Rádio Eldorado enquanto prenotava os títulos, sempre munido de sua Parker 51 e de seus indefectíveis óculos Persol 649.

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Instrumentos particulares, títulos digitalizados – requisitos técnicos. As reformas sucessivas da Lei 14.382/2022

O advento da Lei 14.382/2022 representou o despontar de um novo paradigma no sistema registral pátrio: a ereção do Registro de Documentos (ou menos que isso: registro de meras indicações eletrônicas), em oposição ao chamado Registro de Direitos, modelo adotado no Brasil desde as origens da publicidade hipotecária, em 1846, filiado às matrizes da Europa Continental[1]. O SREI – Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis vinha se estruturando, aperfeiçoando e modernizando sob os auspícios de um seleto grupo de registradores com a supervisão e coordenação do CNJ[2].

Lamentavelmente, as iniciativas foram colhidas por uma medida provisória (MP 1.085/2021) que nos brindou muitas e profundas mudanças, algumas muito boas, outras nem tanto. Como temos buscado demonstrar na série de artigos publicados no site Migalhas Notariais e Registrais, para nossa sorte (ou azar) ficamos a meio caminho das reformas pretendidas por seus protagonistas. A razão é simples: não se reforma uma instituição multissecular a partir de impulsos de açodado furor reformista[3]. Temos agora uma central de centrais (SERP) que a muito custo busca se estruturar. É um modelo manco e imperfeito, falto de referências a que pudesse se filiar de molde a alicerçar a propalada “modernização” do sistema registral pátrio. [ íntegra].

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Crônicas vespertinas – neblinas vesperais

Neblinas vesperais, crepusculares,
Guslas gementes, bandolins saudosos,
Plangências magoadíssimas dos ares…

CRUZ e SOUSA, João da. Broquéis. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995. p. 90

Vésperas… Adoro esta palavra. Os leitores deste blogue vão topar com ela amiúde. Vesperais também me assalta agora e, rindo sozinho, lembro-me do que é bulir com vespas, o que se faz por aqui também.

Sempre alguém nasce na vida para ser gauche. O Tio Jacaré, o Sr. Doutor Ermitânio Prado, o SJ, não importa a ordem de chamada, vão todos eles assim perfilhados, “como se chegando atrasados, andassem mais adiante”. Ah Velho Leminski, que saudades de suas tiradas geniais.

Há oportunidades perdidas. São como os anéis de Saturno – lindos e inacessíveis. Meras quimeras, como a revoada de melros na noite sem estrelas. Já as ideias deitam-se no ocidente como joias nobres e decadentes. Repousam em arcas de gemas radiosas. “Ainda há belos crepúsculos, escriba”, parece que lhe ouço, Dr. Ermitânio… O arrebol conquista o Velho em êxtase arrebatado e lhe confia a eternidade. Enquanto isso, ele cofia a barba e revolve as cãs, desconfiado, sempre desconfiado.

Compartilho os textos aqui e acolá. Alguém haverá de lê-los um dia, quem sabe? Pus o seguinte frontispício aos escritos que se vão apreciar abaixo:

“…conhecendo o que os que esto leerem que nom screvo do que ouvy, mes daquello que per grande custume tenho aprendido”. 

(Dom DUARTE I, 1391-1438. Livro da Ensinança do Bem Cavalgar toda Sela)

É o que vos posso legar. Minhas ideias, minhas experiências. O mais é só o cansaço da jornada.

Pequeno índice

  1. ONR – vésperas da Lei 14.118/2021. SJ entrevista Marcelo Martins Berthe e Flauzilino Araújo dos Santos. Acesso: https://wp.me/p6rdW-2Ei
  2. Vésperas do SERP – uma ideia fora do lugar – parte I. Aqui se inaugura o périplo da tentativa de se criar entidades registradoras… Acesso: https://wp.me/p6rdW-3d1
  3. Vésperas do SERP – uma ideia fora do lugar – parte II. Début das entidades registradoras. Acesso: https://wp.me/p6rdW-3hW
  4. Vésperas do SERP – uma ideia fora do lugar – parte III. A MP 897/2019 – a entidade registradora “registral. Acesso: https://wp.me/p6rdW-3ir
  5. Vésperas do SERP – uma ideia fora do lugar – IV. Repositório Eletrônico Confiável Compartilhado do SREI – REC-SREI. https://wp.me/p6rdW-3i7

Vésperas do SERP – uma ideia fora do lugar – parte III

No artigo anterior[1], vimos como nasceram as entidades registradoras e se inaugurou um novo regime registral das garantias reais e mobiliárias ao lado do sistema tradicional de publicidade jurídica. Na sequência, veremos como as forças econômicas e corporativas buscaram pespegar estas mudanças na ordem civil, subvertendo os paradigmas do direito brasileiro.

A MP 897/2019 – a entidade registradora “registral”

A tramitação do PLC 30/2019 (MP 897/2019, convertida afinal na Lei 13.986/2020) revelaria o movimento concentrado, e muito bem orquestrado, no sentido de se buscar a modificação dos paradigmas do sistema de registro de direitos e de distribuição de competências e funções notariais e registrais. No relatório final do dito PLC 30, apresentado pelo deputado PEDRO LUPION, houve a tentativa de incluir, na redação derradeira, a criação de uma Central Nacional de Registro Imobiliário (art. 51)[2]. Na complementação de voto, o nobre deputado ainda alteraria a redação do art. 51 “para permitir à Central Nacional de Registro de Imóveis atuar como entidade registradora, observada a legislação específica”. A emenda assim achava-se redigida:

“art. 51 do PLV: alteração do caput para permitir à Central Nacional de Registro de Imóveis atuar como entidade registradora, observada a legislação específica; alteração no §2° para conferir maior abrangência ao recebimento eletrônico de títulos pela Central Nacional de Registro de Imóveis; supressão do §3º, pois o ato notarial somente adquire eficácia após sua confirmação pelo registro; e alteração do §7°, renumerado para §6°, para atribuir ao Conselho Nacional de Justiça a fiscalização e o funcionamento da Central Nacional de Registro de Imóveis”[3].

A ideia de uma entidade registradora, ou como preferia o Deputado DENIS BEZERRA – Central Nacional de Gravames –, se insinuava nos debates legislativos de modo discreto. Assim a concebia o ilustre deputado (e notário) do Ceará:

“Por fim, a criação de uma central nacional de gravames atende a uma necessidade do mercado de crédito, para que o agente financiador possa obter, de maneira rápida e efetiva, informações sobre a capacidade de pagamento e grau de endividamento do produtor, de forma a avaliar mais assertivamente o risco de crédito e as garantias ofertadas e ter uma plataforma de acesso aos cartórios. Quanto mais fácil e transparente foram essas informações, mas rápida será a concessão do crédito e mais fortes serão as garantias recebidas pelo financiador”.

Com fundamento nesta justificativa, o deputado apresentaria sua emenda, cujo teor era o seguinte:

“Art. XXX. Fica criada a Central Nacional de Gravames organizada pelos registradores de imóveis, em cooperação com os registradores de títulos e documentos e tabeliães de protesto, e que compreenderá os registros de garantias, gravames, constrições judiciais, indisponibilidades e protestos, indexados a partir do número de inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas do Ministério da Fazenda (CPF), ou número de inscrição no Cadastro Geral de Contribuintes do Ministério da Fazenda (CNPJ). Parágrafo único. Até 31 de julho de 2022 todos os atos anteriores constantes e vigentes até a edição desta lei serão inseridos na base de dados da Central Nacional de Gravames”[4].

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Vésperas do SERP – uma ideia fora do lugar – IV

Repositório Eletrônico Confiável Compartilhado do SREI – REC-SREI

Introdução

No transcurso dos trabalhos realizados na gestão da Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA à frente da Corregedoria Nacional de Justiça do CNJ (2020-2022), tivemos ocasião de encaminhar, para alguns membros do Conselho Consultivo, estudo e minutas de provimentos abaixo reproduzidos. Elas foram elaboradas antes da edição da MP 1.085, baixada ao apagar das luzes de 2021 (27/12) e anteriormente à legislação relativa às assinaturas eletrônicas. Portanto, as referências deste artigo são anteriores ao novo quadro legal. A ideia de tornar públicas as discussões e ideias que surgiram no interregno visa a contribuir com os debates.

Lamentavelmente, as discussões não chegaram a termo. Azafamados por questões mais urgentes, seja regulamentando aspectos considerados mais relevantes, seja defendendo o Projeto SREI de iniciativas açodadas de reforma do sistema registral, o texto dormitou na gaveta, esperando a oportunidade mais propícia para o encaminhamento ao então magistrado-auxiliar, integrante do órgão Agente Regulador da CN-CNJ, à época o Des. MARCELO BERTHE, de São Paulo.

Os textos devem ser considerados estudos preliminares para discussões, ajustes e aperfeiçoamentos. Não têm caráter oficial, nem esgotaram a matéria. São disponibilizados somente para figurar no bojo do capítulo – vésperas do SERP – uma ideia fora do lugar, série de artigos veiculados no Migalhas Notariais e Registrais na busca de registrar a história das tratativas e movimentos que precederam o advento da reforma da Lei de Registros Públicos brasileira.

Assumo inteiramente a responsabilidade pela redação e pelas propostas apresentadas.

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