Câmara-e debate modernização dos registros

Presidente do Irib entrevistado da semana[1]

A Câmara Brasileira do Comércio Eletrônico (www.camara-e.net) traz nesta semana a entrevista com o Presidente do Irib – Instituto de Registro Imobiliário do Brasil, Sérgio Jacomino. Oficial de Registro Imobiliário em São Paulo, é doutor em direito civil pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), membro efetivo do Cotec – Comitê Técnico do Comitê Gestor da ICP-Brasil e co-editor das publicações oficiais do Irib. Como Presidente do Instituto, tem se dedicado a abrir novos canais de diálogo com a sociedade, procurando demonstrar a importância econômica, social e jurídica dos registros prediais brasileiros. Autor de inúmeros artigos, proferindo palestras no Brasil e no exterior, Sérgio Jacomino é o porta-voz reconhecido dos registradores imobiliários do Brasil.

Nesta entrevista, o Presidente do Irib enfrenta o tema da regulação das atividades registrais no país. Confira abaixo.

Câmara-e: Como analisa o cenário brasileiro na questão da modernização do sistema de registros?  

SJ: A questão fundamental, hoje, passa pela superação de um paradigma: a atomização dos registros públicos brasileiros. No que consiste esse fenômeno? Cada cartório de registro acha-se isolado, submetido por força legal a normação de instâncias administrativas locais (juízes corregedores ou diretores – art. 30, XIV da Lei 8.935/94) ou estaduais (Corregedorias-Gerais). Esse fenômeno de fissiparidade do registro causa desbalanceamentos indesejáveis. Vamos analisar como isso ocorre na prática. Hoje, o mercado demanda uniformidade de procedimentos. O crédito imobiliário, por exemplo, cria contratos-padrão, estabelece regras que apontam para uma regulação plenária, utiliza-se de standards para diminuição de custos e padronização, inclusive para transitar essas informações confortavelmente e sem ruídos por redes eletrônicas. Ora, se em cada região ou localidade temos um procedimento registral específico para tratar de demandas homogêneas, temos então um grave problema de assimetrias, gerando custos de balanceamento que já não são tolerados pelo sistema. Mas não é só isso. Há outros exemplos…

Quais?  

Bem, temos um processo de profundas transformações em curso. Pode-se pinçar, como exemplo, a regularização fundiária, que está na ordem do dia. As regras de registro devem ser uniformes em todo o território nacional, sob pena de malograrem as políticas públicas engendradas para resolver esse grave problema social. A regularização fundiária no Estado de São Paulo, só para ficarmos num único exemplo, tem um tratamento distinto da concretizada em Minas Gerais. Temos, portanto, que ultrapassar o modelo de atomização dos registros, alcançando o modelo de molecularização, integrando cada ponto numa ampla rede de interconexões. É justamente na questão da informatização dos registros públicos brasileiros que essa deficiência se nota mais agudamente.

Quais são os principais entraves para que a malha estrutural brasileira migre para plataformas digitais?  

Como dizia anteriormente, o fenômeno de atomização dos registros rende assimetrias. Não é possível conceber uma malha estrutural para interação dos registros fora de um padrão claramente pré-estabelecido. E quem nos dará esse padrão? A Constituição Federal estabelece que compete privativamente à União legislar sobre registros públicos (art. 22, XXV). Toda a estrutura formal dos registros (livros, procedimentos, práticas registrais, etc.) deve ser prevista por norma federal. Ocorre que, historicamente, os registros sempre estiveram adstritos ao Judiciário estadual, de quem sempre dependeram, desde as suas origens medievais, em termos de regulação da atividade. Estávamos em uma relação de convivência e interdependência muito particular, integrando a galáxia judiciária. Os chamados serviços extrajudiciais era uma das faces da moeda judiciária. Com o advento da Constituição de 1988, parece ter havido uma fissura. Até que ponto a especialização de atividade exigirá uma relativa independência do Judiciário, só o tempo dirá…

Mas os registros públicos não estão sujeitos ao Poder Judiciário?  

A Constituição Federal diz que os serviços registrais e notariais serão fiscalizados pelo Poder Judiciário (art. 236, parágrafo primeiro). Algo muito distinto é a regulação dessas atividades. Malgrado o fato de a Lei 8.935/94 estabelecer que os notários e registradores estão sujeitos “às normas baixadas pelo juízo competente”, parece-nos que a regulação da atividade deva promanar da União. Esse ponto é importante. Vamos pensar numa infraestrutura como a de chaves públicas no Brasil. O modelo é hierarquizado, sujeitando os que se achem sob essa hierarquia à observância das regras baixadas pelo Comitê Gestor. As particularidades que guardam essas atividades (notariais e registrais), com a exigência legal de forma específica (documentos eletrônicos públicos), exigem uma regulação uniforme para todo o território nacional, de modo a garantir a interoperabilidade do sistema. Não é concebível que essa regulação se dê nos Estados, sem qualquer consideração de aspectos como estereotipação de regras em nível federal. Enfim, a minha opinião é no sentido de que a fiscalização da atividade deva estar sujeita ao Judiciário (atos próprios), mas a regulação não. Isso nos leva a pensar em um Conselho de Notários e Registradores e na necessidade de decretos federais regulamentando aspectos da Lei de Registros Públicos, adequando seus dispositivos às necessidades atuais e conjunturais.

Para criação dessa malha estrutural é preciso informatizar os registros, certo?  

Sim, é preciso migrar milhões de informações que se acham espraiadas em livros manuscritos ou fichas de matrículas. Esse conjunto deve povoar meios digitais. Ocorre que isso não é tão simples, nem vai ocorrer com a rapidez que muitos de nós desejaríamos. É preciso que sejamos realistas. Sempre pensamos no Registro de Veículos Automotores para tentar aproximar, a esse modelo, os registros prediais brasileiros. Ocorre que os cartórios não morrem jamais, como sempre digo aos meus alunos. A vida útil de um veículo (e de seus registros) é logicamente muito menor que a vida de um imóvel. No caso dos imóveis, existe uma longa cadeia de titularidades, direitos, restrições, mutações jurídicas, vicissitudes que permanecem perfeitamente conservadas de molde a proporcionar como que o “DNA” de um determinado imóvel. Como reduzir essa pletora de informações a variáveis pré-definidas que hão de compor uma base de dados? A vistosa variedade de situações, dados, padrões, fixados em diferentes mídias, não permite a migração sem que se faça um escrupuloso exame da qualidade dessas informações. Quando se dá uma certidão, por exemplo, o registrador elabora um exame tão rigoroso dos dados sob sua custódia quanto faria quando recebesse um documento para registro. Analogamente, quando se faça uma migração de dados, não se fará pura e simplesmente a transposição dos conteúdos de um medium a outro medium – do meio cartáceo ao eletrônico – sem um cuidadoso exame. Será necessária uma requalificação desses dados, articulação desses conteúdos com o hiperarquivo que o cartório de registro representa.

Mas um passo deve ser dado nesse sentido… O que o Irib tem feito para diminuir esse gap tecnológico?  

Um passo muito importante já está dado. O Irib, instituto que presido, tem uma atitude positiva, confessando suas convicções nas virtudes do meio eletrônico, sem olvidar os problemas que esse admirável mundo novo representa. Depois, há um curioso estalão proporcionado por sistemas informáticos que impulsionam “naturalmente” os dados para os meios eletrônicos. Os sistemas que já são utilizados nos cartórios, os pacotes de software, hardware, toda uma cultura da informática, conformam o “meio ambiente” da informação dos cartórios e impõem um padrão de tratamento de dados. Ora, isso tem impulsionado a informatização progressiva dos Registros. Entretanto, o risco, já apontado por mim em outras oportunidades, reside na tentativa, algo inconsciente, de buscar o apoio da informática para criar meros modelos homólogos dos tradicionais meios de fixação, conservação, manipulação, alteração da informação. Mutatis mutandis, seria o mesmo que utilizar um poderoso home theater para assistir aos slides da última viagem… Ora, um registro eletrônico, fólio real eletrônico[2], é muito mais do que a reunião de alguns dados parcelares como indicadores pessoais, reais, a exemplo do que temos desde 1846 nos Cartórios. É muito mais! Significa uma nova abordagem na conservação e transação desses dados vitais para a sociedade e a economia. Falamos de um verdadeiro sistema, um novo paradigma, com toda a complexidade que o tema encerra. Nesse sentido, o Irib tem se empenhado em discutir com seus associados e com os demais interessados em temas de direito registral os novos modelos organizativos dos registros e de seus dados, sabendo que essas informações deverão estar disponibilizadas para interação em meios eletrônicos.

De que forma a Camara-e.net pode contribuir para o desenvolvimento do setor?  

Em primeiro lugar, para afastar os preconceitos. Trazer os registros públicos para o ambiente das discussões técnicas sobre comércio eletrônico é um grande feito. Por indicação da Camara-e.net, temos assento no COTEC – Comitê Técnico do Comitê Gestor da ICP-Brasil. Isso não é pouco. É, quem sabe, o reconhecimento de que os registros públicos podem contribuir para consolidar essa infraestrutura de interação e interconexão com suporte nos meios eletrônicos. Os registros existem para a sociedade, não podem estar à margem das grandes transformações que se operam na sociedade. Os registros não vão figurar como dinossauros em novo e desafiante ambiente!

Notas

[1] – A entrevista foi publicada originariamente no Boletim Eletrônico do IRIB n. 2.392, 17.4.2006. Acesso: https://academia.irib.org.br/xmlui/handle/123456789/44538.

[2] – O tema da criação do “fólio real eletrônico” foi por mim enfrentado na década de 1990. Aqui um pequeno teaser: https://youtu.be/KVLZyggdy98. Confira palestra proferida por mim no transcurso do XXIV Encontro dos Oficiais de Registro de Imóveis do Brasil, realizado entre os dias 15 e 19 de setembro de 1997 na cidade de Belo Horizonte, MG: https://youtu.be/D5WZ7DcHcrA.

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