Prezados colegas,
O Código Civil de 2002 exige em várias passagens a boa-fé como elemento essencial de situações jurídicas diversas.
Mas é impressionante como parece manter laços com idéias retrógradas e ultrapassadas em relação as coisas imobiliárias.
Sabe-se que o art. 422 exige a boa-fé dos contratantes na celebração dos negócios jurídicos, questão principiológica ora positivada em nosso ordenamento civil (desnecessariamente?!?!).
Muito resumidamente, meu inconformismo está em entendimentos que parecem ter o único objetivo de gerar insegurança à sociedade.
O parágrafo único do art. 1247 do CC é, na minha humilde opinião, um retrocesso e uma incongruência com a sistemática adotada pelo CC.
Estabelece o preceito legal que Cancelado o registro, poderá o proprietário reivindicar o imóvel, independentemente da boa-fé ou do título do terceiro adquirente.
A boa-fé que se exigiu anteriormente ficou relegada no momento de maior importância, a das relações jurídicas que envolvem coisas imóveis.
A propriedade sempre exerceu uma fundamental importância nas economias, especialmente nas relações de crédito. E a nova legislação insere novo dispositivo para atingir nuclearmente a segurança que se espera em tais situações jurídicas.
O pior é que parece ser questão “pessoal” contra os Registros de Imóveis, porque no art. 1268, DO MESMO CÓDIGO, ao tratar da aquisição da propriedade de coisa móvel, o legislador procurou proteger o adquirente de boa-fé:
“Feita por quem não seja proprietário, a tradição não aliena a propriedade, exceto se a coisa, oferecida ao público, em leilão ou estabelecimento comercial, for transferida em circunstâncias tais que, AO ADQUIRENTE DE BOA-FÉ, como a qualquer pessoa, o alienante se afigurar dono.”
Não há lógica em proteger a boa-fé do adquirente de coisas móveis – que podem ser de indefinida importância (xícaras, geladeiras, automóveis, etc) – e desproteger quem adquire imóvel de acordo com as regras do sistema.
Num momento exige-se a boa-fé e, subseqüentemente, torna-a desprezível. Se o terceiro confiou no registro, adquiriu com boa-fé, teve cautela investigativa, como não protegê-lo?
A impressão que fico é que se eu comprar uma bicicleta de quem ostenta a posse estarei mais seguro do que aquele que adquire um imóvel de quem figura no fólio como titular de domínio, além de realizar pesquisa “vintenária” tanto das pessoas que figuraram na cadeia dominial quanto dos respectivos títulos causais.
Este dispositivo é uma aberração!
É quase voltar ao § 4º do art. 8º da lei 1237/1864 e ao art. 258 do Decreto 3453/1865 que estabeleceram a idéia de que a transcrição não induzia prova de domínio, que ficava salvo de quem o fosse.
Precisamos fazer uma avaliação da orientação doutrinária e legislativa da função do Registro de Imóveis, em especial. É preciso avançar na questão da segurança jurídica registrária.
Fica a questão para debate, se interessar.
Um abraço.
Alexandre Clápis
Prezado Dr. Alexandre.
Com o costumeiro acerto, o Sr. feriu o ponto nevrálgico da questão. O anacronismo da parte concernente aos registros no NCC mostra que muito além do preconceito – arrimado numa interpretação tão equivocada quanto curiosamente prestigiada – o que há é simplesmente incultura jurídica. Quem se dispusesse a ler atentamente a larga tradição do registro no país e o longo percurso que guarda o seu desenvolvimento, veria que o novo código é simplesmente um desserviço ao desenvolvimento econômico do Brasil. Volto ao assunto, que o tema é interessantíssimo.
Caro Dr. Alexandre.
Cumpre-me somar a minha voz à do Dr. Sergio Jacomino, em razão da arguta e precisa reflexão com que fomos brindados sobre o dispositivo em comento.
É longeva a disputa entre Lysippo Garcia (A Transcripção, 1922) e Soriano Neto (Publicidade Material do Registro Immobiliario, 1940), a respeito do artigo 859, do Código Civil de 1916, a saber, se introduzia o dispositivo, em nossa ordem jurídica, o princípio da fé pública ou da presunção. Laureada esta última com o reiterado sufrágio do pretório, em razão da brilhante exposição de Soriano Neto.
Pelo princípio da fé pública o adquirente de boa fé fica protegido, estabelecendo a lei uma presunção jure et de jure em favor deste se o título alcançou o fólio real. Este é o sistema que permite a máxima eficácia da circulação da riqueza, em virtude da confiança que atribui ao adquirente. Pelo princípio da presunção, o registro estabelece uma presunção iuris tantum de veracidade, determinando, tão-somente, uma vantagem processual, invertendo o ônus da prova em juízo.
Com a edição do novel Código Civil, introduzido pela Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, o legislador aproximou-se ainda mais do princípio da fé pública, não fosse o malfadado dispositivo (vilão) do parágrafo único, do artigo 1.247, do mesmo Diploma.
Aproximou-se, afirmo-o, porque o novo Código pátrio trouxe o conceito do negócio jurídico e da boa-fé objetiva, ambos presentes no Código Civil Alemão (§§ 104 e seg., e 157), e que propiciaram a introdução, naquele País, do princípio da fé pública nos negócios imobiliários (§§ 891 e 892).
Negócio jurídico é uma espécie de ato jurídico que não só se origina de um ato de vontade, como implica em declaração expressa dessa vontade, instaurando a relação entre as partes.
Se a interpretação do negócio jurídico é presidida pela boa-fé objetiva (art. 113, do CC), bem como os contratantes devem guardar os princípios da probidade e da boa-fé (art. 422, idem), a disposição do parágrafo único, do art. 1.247, do Diploma Privado estabeleceu um antagonismo aparente indesejável.
Mas, olhando detidamente para esse quadro, instigado pela observação sagaz que fez o Dr. Alexandre Clápis, sobre o artigo 1.268 e seus parágrafos, onde introduzido sem o menor assombro o princípio da fé pública, no tocante à tradição dos bens móveis, parece-me possível estendê-lo, só por interpretação, ao domínio dos bens imóveis. Façamo-lo então.
É lição de Carlos Maximiliano que «até mesmo a norma defeituosa pode atingir os seus fins, desde que seja inteligentemente aplicada» (in Hermenêutica e Aplicação do Direito, 18ª ed., Revista Forense, 1999, pág. 61).
Aos cultores da perfectibilidade da lei, Carlos Maximiliano assevera: «toda lei é obra humana e aplicada por homens; portanto imperfeita na forma e no fundo, e dará duvidosos resultados práticos, se não verificarem, com esmero, o sentido e o alcance das suas prescrições» (op. cit., pág. 9).
Acrescenta mais: «a palavra é um mau veículo do pensamento; por isso, embora de aparência translúcida a forma, não revela todo o conteúdo da lei, resta sempre margem para conceitos e dúvidas; a própria letra nem sempre indica se deve ser entendida à risca, ou aplicada extensivamente; enfim, até mesmo a clareza exterior ilude; sob um só invólucro verbal se aconchegam e escondem várias idéias, valores mais amplos e profundos do que os resultantes da simples apreciação literal do texto» (op. cit., pág. 36).
Jean Cruet, em «A Vida do Direito», faz longo discurso sobre a inutilidade das leis, demonstrando como os juízes, com inteligência e criatividade vão superando a rispidez da letra, inclusive em Estados Teocráticos (até muçulmanos).
Ora, a boa-fé objetiva, na nova Codificação Civil, é expressamente elevada à posição de princípio (art. 422, do Codex).
Diante de um conflito aparente de normas, há vários critérios a empregar. A primeira verificação a fazer, é se não se trata, uma delas, de norma hierarquicamente superior ou que, de alguma forma prepondere sobre a outra (lógica, sistêmica etc.).
Como ensina Celso Antonio Bandeira de Melo:
«Princípio é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica da racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico» (apud Francisco Meton Marques de Lima, 2004, p.63).
Ora a ratio essendi da norma contida no Código Civil está impregnada e informada pela boa-fé objetiva, é o que se dessume da combinação entre os artigos 113 (interpretação do negócio jurídico), 422 (a boa-fé contratual, conduta dos contratantes) e 1268 (princípio da fé pública aplicada aos bens móveis), entre outros.
Onde há a mesma ratio deve-se aplicar a mesma interpretação. Se o adquirente de bem móvel, de boa-fé, deve ser contemplado pela lei, o adquirente de bem imóvel também o deve ser do mesmo modo. Agride a lógica e o bom siso pensar diversamente.
O parágrafo único, do artigo 1.247, do Código Civil, não pode ser lido ou interpretado em detrimento do adquirente de boa-fé (por princípio), porque se o registro do comprador foi cancelado, é porque este não portava boa-fé objetiva.
Parece-me que esse parágrafo tem que passar por uma releitura: cancelado o registro por má-fé do comprador (porque ao adquirente de boa-fé não se poderá cancelar o registro), poderá o proprietário reivindicar o imóvel, independentemente da ignorância do vício (boa-fé subjetiva, porque o vício que inquinou o negócio pode ser diverso daquele vinculado à má-fé do comprador) ou do título do terceiro adquirente.
E isso porque, repita-se, se foi cancelado o registro, não estava o adquirente de boa-fé objetiva, logo a boa-fé insculpida no parágrafo único, do art. 1.247, do Código Civil, só pode ser interpretada como sendo subjetiva.
A crítica que se faz aqui é a de que o vício que gerou o cancelamento pode ser meramente formal.
Se o registro, não obstante a boa-fé do adquirente, é cancelado (por vício de forma ou outro diverso da quebra da boa-fé do adquirente), não haverá direito a reivindicação por parte do alienante, apesar do disposto no § 1º, do art. 1.245, do CC, porque a esta (a reivindicação) o comprador de boa-fé poderá opor-se.
A chave é que a reivindicação só se opera, sistemicamente, diante da má-fé do adquirente, porque a tradição imobiliária é solene, só se faz com o registro.
O cancelamento do registro do título do adquirente de boa-fé eclode a vitalidade do registro anterior do alienante, mas não lhe pode permitir a reivindicação. Até porque pelo princípio da boa-fé objetiva, como parte no contrato, deve colaborar com o adquirente para que esse alcance o seu desiderato, qual seja, o registro.
A doutrina tem contemplado o entendimento de que a boa-fé deve presidir o negócio jurídico antes, durante e depois do contrato.
Como ensina, ainda, Carlos Maximiliano: «não basta conhecer as regras aplicáveis para determinar o sentido e o alcance dos textos. Parece necessário reuni-las e, num todo harmônico, oferecê-las ao estudo, em um encadeamento lógico. A memória retém com dificuldade o que é acidental; por outro lado, o intelecto desenvolve dia a dia o logicamente necessário, como conseqüência, evidente por si mesma, de um princípio superior. A abstração sistemática é a lógica da ciência do Direito. Ninguém pode tornar-se efetivo senhor de disposições particulares sem primeiro haver compreendido a milímoda variabilidade do assunto principal na singeleza de idéias e conceitos da maior amplitude; ou, por outras palavras, na simples unidade sistemática» (op. cit., pág. 5).
Pode soar estranho a princípio, mas olhando amiúde é patente a dissonância cognitiva da leitura aparente (prima facie) do parágrafo em estudo (relativo ao art. 1.247, do CC), em confronto com as demais normas e princípios do Codex.
Reforça, ainda, Carlos Maximiliano: «o intérprete é o renovador (…) cauto, o sociólogo do Direito. O seu trabalho rejuvenesce e fecunda a fórmula prematuramente decrépita, e atua como elemento integrador e complementar da própria lei escrita. Esta é a estática, e a função interpretativa, a dinâmica do Direito» (op. cit., pág. 12).
A conclusão desta singela reflexão é a de que o novo Código Civil brasileiro adotou o princípio da fé pública, no tocante a aquisição de bens móveis e imóveis.
Eis, Dr. Alexandre Clápis, uma proposta, ainda que grosseira e despida do fino buril com que entalhou o debate inicial, que visa, quiçá, com o muito mais que o Sr. poderá acrescer à discussão e as devidas correções, dar nova cor à leitura do parágrafo único, do artigo 1.247, do Código Civil.
Abraços.
Caros.
Tenho uma opinião um pouco diversa. Não vejo qualquer incongruência no atacado dispositivo do CC.
Uma coisa é entendermos a necessidade de proteção do terceiro adquirente de boa fé, e defendermos a fé pública registral. Outra, muito diferente, é afirmarmos que não há coerência sistemática no CC.
Em primeiro lugar, no direito brasileiro, é francamente majoritário o entendimento de que o registro gera presunção relativa. E, como regra, não seria de se esperar outra coisa.
É que a presunção, relativa ou absoluta, está intimamente ligada à vinculação ou abstração da causa,nja separação dosplanos obrigacional e real. Onde há vinculação, a tendência é o efeito relativo do registro. Onde há abstração, a tendência é o efeito absoluto (vide Alemanha). Esta é a regra, mas que pode ser quebrada, em nome da segurança do tráfico, como ocorre na Espanha, onde há vinculação da causa, e há fé pública.
Mas, para quebrar a regra, há necessidade de norma explícita. A presunção é contrária à fé pública onde há vinculação da causa, como no direito brasileiro.
Embora a fé pública tenha sido defendida brilhantemente por alguns, dentre eles o maior jurista do Século XX, Pontes deMiranda (que também defende a abstração causal), pacificou-se a regra da presunção.
Nesse ponto, o art 1247 é perfeitamente conforme à teroia do negócio jurídico nacional (nada tema a ver com o conceito de negócio jurídico, mas com sdua eficácia) a respeito da propriedade imóvel (na propriedade móvel o trato é diverso pórquanto a publicidade é a possessória, baseada na aparência), que, em sendo causala relativamente, deve, com a sua invalidade, invalidar seu efeitos, dentre eles a transmissão da propriedade.
Ademais, nenhum problema há, do ponto de vista sistemático, em se excluir a boa fé no artigo 1247, porque aí se está a tratar da boa fé subjetiva, e não daq boa fé objetiva, elevada a princípio do direito civil muito antes de sua positivação no novo Código civil (Veja-se a “obrigação como processo”, de Clóvis do couto e sila, da década de 1970).
Se o registro é cancelado por força da invalidade do negócio que lhe serviu de causa, restaurar-se-á o registro anterior, e o direito material lá consubstanciado, e, este proprietário, poderá reinvindicar o imóvel que é seu (pela sistemática causal), limitado a eventual exceção de usucapião. A boa fé subjetiva servirá aqui para regrar a questão da posse e eventuais benfeitorias.
O princípio da boa fé objetiva nada tem a ver com a fé pública registral. A fé pública registral é a proteção, por escolha legislativa (boa esciolha por sinal) da boa fé subjetiva de quem adquire confiando na informação registral.
Enfim, na minha opinião, podemos criticar a escolha feita pelo legislador de 2002 no artigo 1247, que preferiu tutelar o titular do direito material válido ao invés da segurança do tráfico, mas não podemos afirmar que há inconsistência sistemática, porque não há. Muito antes, pelo contrário.
Abraços,
Neste ponto, concordo com Leonardo Brandelli, devemos aceitar que o Código Civil perfilhou tese diversa da que sustentamos. Pode até existir ignorância e preconceito com relação ao Registro de Imóveis, mas também notamos que há argumentos a favor da publicidade relativa que devem ser combatidos. Um deles, que consta dos debates parlamentares do séc. XIX, é a falta de uma base cadastral segura, ou seja, quais os limites e a real extensão do imóvel, sobre o qual incidirá a fé pública registral? Não será temerário atribuir fé pública registral a um imóvel incerto e indeterminado? Isso até me despertou uma idéia, não seria mais interessante e eficaz que a Lei 10.267/01 em vez de impor apenas multas atribuísse a presunção absoluta do domínio para o proprietário que georreferenciar seu imóvel?
Também compartilho o reclamo de Alexandre Clápis, o Código Civil de 2002 tinha muitos elementos favoráveis para estabelecer a fé pública registral, mas não o fez, donde surge a forte sensação de retrocesso. O Código Civil de 1916 trouxe larga contribuição ao Registro de Imóveis, impondo a transcrição de atos de transmissão de imóveis que antes estavam à margem dos registros (causa-mortis e títulos judiciais), o que fundou o precioso princípio da continuidade registral. E o Código de 2002, o que fez?
Convido-os a nos afastarmos da primeira e nefasta impressão quanto ao Código Civil de 2002. É bem verdade que vige ainda apenas a presunção relativa dos assentos registrais no que toca as transmissões da propriedade plena, que vige desde 1864, pois quando a Lei 1.237 estabeleceu que “a transcrição não induz prova do domínio” apenas expressou que a transcrição não induz prova absoluta do domínio.
Mas quero ressaltar o p.u. do artigo 1.242, localizado no capítulo da usucapião, ispis literis:
“Art. 1.242. Adquire também a propriedade do imóvel aquele que, contínua e incontestadamente, com justo título e boa-fé, o possuir por dez anos.
Parágrafo único. Será de cinco anos o prazo previsto neste artigo se o imóvel houver sido adquirido, onerosamente, com base no registro constante do respectivo cartório, cancelada posteriormente, desde que os possuidores nele tiverem estabelecido a sua moradia, ou realizado investimentos de interesse social e econômico.”
O parágrafo único acima não é mais um passo em direção a fé pública registral? Ainda que seja um tímido passo, pois dependerá de sentença declaratória judicial, aumentou-se o valor do registro.