Conselho de notários e registradores – # 1

No Boletim Eletrônico do Irib # 2.392, de 17/4/2006, foi publicada uma entrevista concedida por mim (reproduzida aqui mesmo, no blogue) em que cito, de passagem, a possível criação de um Conselho de Notários e Registradores para dar respostas aos desafios ali referidos e na necessidade de “decretos federais regulamentando aspectos da Lei de Registros Públicos, adequando seus dispositivos às necessidades atuais e conjunturais”.

A declaração rendeu interpretações equivocadas e algumas discussões em listas fechadas de debates.

O tema é palpitante e ganha muita atualidade, tendo em vista que há notícias de que está circulando nos gabinetes de BSB uma proposta de criação de um Conselho de Notários e Registradores do Brasil. A formulação transitou no Ministério das Cidades e Ministério da Justiça e a idéia está sendo advogada junto ao Ministério da Justiça por alguns colegas e por técnicos e políticos (às vezes a apavorante combinação de ambos num só – os siameses tecnicos-políticos).

Embora tivesse conhecimento das discussões preliminares sobre o assunto, considero necessário o amplo debate com a categoria profissional de registradores e notários do Brasil.

Visto daqui da planície, parece-me que a iniciativa sofre de um sério problema congênito: não foi amplamente discutida com os profissionais que justamente visa congregar e regular. Padece, portanto, de legitimidade. Não há consensos internos. Há que se atravessar uma longa e penosa via de discussões políticas interna corporis, já que há pontos de vista absolutamente contraditórios.
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Gostaria de apresentar algumas idéias para debate e discussões.

Em primeiro lugar – para afastar desde já algum mal entendido – quero dizer que defendo a radicalização da idéia de proximidade com o Judiciário. Não no sentido de dispersão normativa que tanto critico no trabalho acima referido. Tampouco do ponto de vista de uma sujeição que transforma o corpus notarial-registral em satélites opacos, orbitando servilmente, de forma meramente apendicular e auxiliar, a galáxia judiciária. Muito menos da perspectiva de acantonamento confortável numa hierarquia demarcada nos planos inferiores da infra-estrutura judiciária. Defendo tal aproximação simplesmente porque a atividade registral e notarial é jurisdição voluntária.

Se a atividade registral é jurisdição voluntária, a atuação do registrador é assemelhada à do juiz quando atua na tutela pública de interesses privados. O registro no Brasil é constitutivo e essa constitutividade, inovando a ordem jurídica, é jurisdição voluntária – malgrada a equivocidade terminológica que não é o caso de referir explicitamente aqui. O publicado – a situação jurídico-real – somente pode ser destruído por uma decisão judicial. Percebe-se claramente que a robustez do sistema repousa na salvaguarda judicial dispensada aos registros e notas.

Falando especificamente do Registro de Imóveis, a inscrição cria uma mutação na ordem jurídica; inova-a, modula as situações jurídico-reais e transforma direitos subjetivos. O quefazer registral exige um processo que redunda numa decisão imperativa: registre-se ou não, por tal ou qual fundamento. Essa decisão somente será útil, econômica e socialmente falando, quando – e somente se – estiverem resguardadas a independência jurídica e a autonomia do registrador.

Voltando à vaca fria, o que se pretende com um Conselho incrustrado como jóia preciosa na coroa administrativa do Ministério da Justiça?

Assusta-me a idéia de que eventualmente o que se pretenda, no final das contas, não seja regular uniformemente o procedimento de registro – afinal, esta é a justificativa apresentada para criar o tal Conselho. Desconfio que dormita no âmago das propostas de criação de um tal órgão a intenção de derrubar as barreiras que eventualmente são levantadas pelos registradores no regular exercício de seu mister. Busca-se uma uniformidade que é pouco mais, pouco menos, que a dócil sujeição aos interesses de planificação estatal. Visa-se a capitulação do Registro na intenção política.

É preciso distinguir, uma vez mais, que o núcleo-duro do mister registral é uma coisa (jurisdição voluntária, qualificação registral); a fiscalização da atividade, outra (judicial, por comando constitucional); a regulação outra (competência legal-constitucional e regulamentar da União). Mas há um aspecto muito pouco discutido: a colegiação obrigatória. Sem este último elemento, ainda que haja fiscalização; ainda que haja regulação; ainda que haja fumos de independência jurídica e autonomia registral, se não houver uma bem pensada infra-estrutura da atividade registral, a instituição será como o bronze que soa e o sino que retine. Afinal, as instituições se pretendem perenes! Ou não?

O que se quer referir com infra-estrutura registral? Um Colégio de Registradores envolve investimentos pesados em tecnologia, harmonização de procedimentos, formação de profissionais, concursos, integração (molecularização), reciclagem, capacitação, carreira etc. etc. Como se vê, é muito mais do que regulação administrativa da atividade. É preciso criar um corpo de registradores homogêneo em todo o país, buscando diminuir as assimetrias verificadas e denunciadas em várias oportunidades.

Sem curar desse aspecto, poderemos ter uma regulação “uniforme” e ainda assim uma atuação concreta desbalanceada e, em alguns casos, verdadeiramente caótica.

As propostas que estão sendo agitadas e defendidas prevêem uma espécie de sujeição ao poder normativo de uma instância estatal, quando o que deveríamos estar buscando é uma forma de organização institucional e corporativa à feição de autarquias ou quase-autarquias federais – e os exemplos dos conselhos profissionais (a OAB por excelência), são paradigmáticos.

O que mais admiro na idéia de autarquia é o sentido que se aninha na etimologia dessa palavra. De partida se concretiza, como projeção homóloga, para a própria instituição, a idéia de independência e autonomia do profissional registrador.

Buscamos uma corporação social – não uma corporação de estado, de feição fascista. Quantas vezes o registrador não se põe na defesa dos interesses do cidadão em face do próprio Estado? Quantas vezes não (des)-qualifica aprovações urbanísticas municipais que mal-ferem a ordem urbanística? Será que os nossos aliados circunstanciais percebem claramente que a criação do Conselho de Notários e Registradores pode não resolver o problema percebido de resistência, judicialmente blindada, de pretensões desconformes com a ordem jurídica? Não nos enganemos: o Conselho não acarretará uma integral adesão de todo o corpo às teses eventualmente defendidas pelo Governo.

Penso que as ferramentas para a regulação já estão dadas pela ordem jurídica. Não é necessária uma instância administrativa para fazê-lo. É possível, simplesmente, baixar decretos federais para regulamentar a Lei 6.015/73. Fizemos exatamente isso – regulação uniforme – no caso do Decreto 4.449/2002 e Decreto 5.570/2004 regulamentando aspectos da Lei 6.015/73. Na verdade, mais do que regulação uniforme, necessitamos, isto sim, de uma regulação e aplicação uniformes.

Uma colegiação obrigatória de feição autárquica resolveria o real problema: aplicação uniforme de uma regulação que pode facilmente ser alcançada pelos mecanismos jurídico-legais disponíveis na ordem legal brasileira. Uma aplicação que somente será uniforme não em seus pronunciamentos singulares, mas na redução das graves assimetrias que hoje ocorrem na modelagem dos sistemas registrais e notariais.

Volto ao tema.

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