Mercado "includente"

Há tempos não lido com temas de direito agrário. Afinal, me tornei um registrador urbano com a remoção para a Capital de São Paulo.

Mas nunca deixei de acompanhar, com vivo interesse, a questão da inclusão econômica-social de parcelas da população que ainda resistem nas áreas rurais do país.

Em nota publicada no dia 12 de junho deste ano, no Valor Econômico (A12), tive o prazer de reencontrar o pesquisador Gerd Sparovek, com quem troquei alguns mails no passado. Ele é o coordenador de uma importante pesquisa patrocinada pelo Banco Mundial (diagnóstico qualitativo nos assentamentos implantados no projeto de crédito fundiário no programa de crédito fundiário) que pôs em relevo um fato importante: “entre 2003 e 2005, boa parte dos assentados em 220 projetos de nove estados do Nordeste deixou a linha da pobreza em função dos avanços da chamada ‘ reforma agrária negociada’, que introduziu mecanismos de mercado no programa”.

Vale a pena conhecer a iniciativa. Estou subindo o texto, gentilmente enviado por Gerd, e em poucos minutos aparecerá aqui.

Mas o tema é palpitante. Recomendo a leitura dp texto: combate à pobreza: chegou a hora da qualidade. Resolvi disponibilizado logo abaixo. O texto figurou na seção de Opinião do mesmo Valor Econômico (16/8/2006, p. A12). ###

A desigualdade traz um fantástico prejuízo econômico às sociedades que vivem sob seu império – além é claro dos problemas éticos que, por si só, envolve. Disparidades de renda, de patrimônio, de educação, de saúde e de expectativa de vida não se explicam por razões puramente individuais, mas sim, antes de tudo, por poder e, pior, pela capacidade de reproduzir em escala ampliada o poder dos grupos sociais dominantes. Não ter acesso a mercados é uma das dimensões mais importantes e perversas da desigualdade, pois opera como verdadeiro “bloqueio à entrada” de indivíduos privados das condições básicas que poderiam permitir melhor aproveitamento, pela sociedade, de suas energias e talentos. Mercados financeiros restritos estão associados a limites na valorização do trabalho dos mais pobres e contribuem para manter a pobreza. Entretanto, sua liberalização não é a solução mágica para esse problema: mercados financeiros liberalizados sujeitam-se à captura de grupos poderosos e nada indica que possam colocar-se a serviço dos que não possuem o patrimônio e as contrapartidas necessárias a que deles façam parte.

Contidas no último relatório do Banco Mundial (World Development Report 2006) estas idéias oferecem – de maneira telegráfica, claro – a justificativa de uma das mais importantes políticas brasileiras de combate à pobreza: a característica fundamental do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) é que procura interferir na matriz da distribuição de renda por meio da ampliação do acesso ao crédito formal a populações que a ele não tinham acesso.

Criado em 1996, o Pronaf beneficiava, ao fim do governo Fernando Henrique Cardoso, mais de 900 mil famílias, das quais a grande maioria nunca tinha tomado um financiamento bancário. Nos últimos três anos e meio esta quantidade se elevou de maneira expressiva, atingindo mais de um milhão e meio de produtores. Corrigiram-se significativas distorções do início do programa e hoje ele chega de maneira expressiva ao Nordeste e a parcela substancial dos que vivem próximo à linha de pobreza. Mas esta massificação trouxe problemas que revelam as imensas dificuldades de construir uma política consistente de luta contra a pobreza, conforme trabalho recente da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe).

O primeiro deles refere-se ao uso dos recursos recebidos. O crédito é um fator importante de geração de renda, amplia as possibilidades produtivas das famílias, permite-lhes estabilizar seus fluxos de entrada e enfrentar contratempos. Ao mesmo tempo, os agricultores tendem a manter seus vínculos a mercados pouco propícios à valorização de seu trabalho, não inovam suas atividades e o próprio perfil das regiões em que vivem pouco se altera, apesar dos evidentes benefícios trazidos pelo acesso aos financiamentos bancários. Qual a razão deste contraste entre o potencial do acesso ao crédito e seus precários resultados?

Na resposta a esta questão está o segundo problema da organização institucional do Pronaf: há um dilema – um trade-off – entre a massificação do acesso ao crédito e a qualidade de seu uso. Bem-sucedido em alcançar metas quantitativas ambiciosas, o Pronaf não criou mecanismos para que o uso do crédito seja feito a partir de critérios e incentivos econômicos que estimulem eficiência no uso dos recursos. Os extensionistas rurais são levados a oferecer aos agricultores uma espécie de “kit” padronizado cuja chance de alterar suas condições de produção é mínima.

Isso se relaciona diretamente a uma terceira questão: tudo indica que o nível de subsídios governamentais ao crédito – sobretudo para os segmentos de baixa renda – é excessivo. Trabalhos recentes de José Garcia Gasques, do IPEA, mostram que a cada real emprestado, o Tesouro é obrigado a gastar quase cinqüenta centavos para cobrir os subsídios com taxas de juros e remuneração aos bancos que operam o programa. O problema não está no conceito de subsídio – que é uma forma tão legítima de alocar recursos quanto o imposto – mas em seu montante e sua operacionalização: o agricultor devolve ao banco quantia inferior à que tomou emprestado e com largo prazo de carência. Assim, perde-se a relação entre os recursos obtidos e a qualidade dos projetos a que devem voltar-se. O crédito não opera com base numa sinalização que informe os agentes a respeito da qualidade do uso dos recursos de que dispõem. Se é verdade, como bem mostra o trabalho do Banco Mundial, que a intervenção do Estado pode ser importante para corrigir a falha de mercado que bloqueia o acesso dos mais pobres ao crédito, não há razão para supor que este acesso deva apoiar-se necessariamente na concessão de subsídios tão altos como os que o Pronaf oferece. É claro que, tratando-se de agricultura, é inconcebível financiar as atividades a taxas reais de mercado, ainda mais com os juros exorbitantes brasileiros. Mas é necessário que o crédito sinalize algum tipo de risco aos atores, o que sua modalidade atual, no caso do Pronaf, obscurece.

Este nível de subsídio permite que na operacionalização do programa, – quarto problema apontado no estudo da FIPE – a responsabilidade dos bancos seja praticamente nula. Quando se trata do crédito aos segmentos mais pobres, o risco é do Tesouro. Assim, o crédito não é o resultado da negociação entre o banco e o produtor em torno da viabilidade de certo projeto – em que o banco tem a função social de operar como advogado do diabo e, portanto, estimular uma elaboração consistente sobre o uso dos recursos – mas uma espécie de direito a que tem o agricultor em função de sua situação social. Neste sentido, há uma diferença radical entre a maneira como se alocam os recursos do Pronaf e a experiência do Banco do Nordeste do Brasil com o microcrédito. O Banco do Nordeste opera com um assessor de crédito que responde pela qualidade de uma determinada carteira de crédito. Ele conhece seus clientes e zela não só por fazer-lhes chegar recursos, mas sobretudo pelo retorno do dinheiro aplicado e, portanto, pela capacidade de este dinheiro traduzir-se, efetivamente, em geração de renda e combate à pobreza.

A Secretaria da Agricultura Familiar do Ministério do Desenvolvimento Agrário já está levando adiante mudanças organizacionais para que o Pronaf, além de chegar aos mais pobres, possa ampliar sua capacidade de geração de renda. A criação recente do Agroamigo, que pretende aplicar metodologias do microcrédito no trabalho com os segmentos mais pobres do meio rural, mostra que o Pronaf pode corrigir suas distorções atuais e consolidar-se como o mais importante programa de desenvolvimento rural que o Brasil já formulou.

O texto é de Ricardo Abramovay, professor titular do Departamento de Economia da FEA e do Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental da USP, pesquisador do CNPq , organizador do livro “Laços Financeiros na Luta contra a Pobreza”. http://www.econ.fea.usp.br/abramovay/