Uqbar, Anoreg e os documentos eletrônicos II

Na postagem anterior falava das implicações perigosas e paradoxais dos documentos eletrônicos, da representação anoregueana e de espelhos.

A idéia de que não exista cópia de um documento eletrônico, ou de que seja possível a representação de interesses fundamentalmente antagônicos ou de que a realidade dos espelhos suplante a ordinária dos mortais – como o heresiarca de Borges diria – a idéia é realmente abominável.

Uqbar, Anoreg e os documentos eletrônicos

Borges colocou na boca de Bioy Casares a fala de um dos heresiarcas de Uqbar que declarara que os espelhos e a cópula são abomináveis “porque multiplicam o número dos homens”. (Está em Ficções, na tradução de Carlos Nejar, Porto Alegre: Globo, 1970, p. 1).

À parte o ressaibo elitista e intelectualizado da deliciosa frase, não pude deixar de me lembrar de minhas leituras de adolecência quando assisti à exposição do notário mineiro Maurício Leonardo sobre documentos eletrônicos.

O tabelião saiu-se muito bem, devo registrar. Sua exposição é clara, concisa, como convém a um cavalheiro em eventos dessa natureza.

Entretanto, a mim me incomodou particularmente a proposta apresentada pela Anoreg, por seu intermédio, para a autenticação e registro de documentos eletrônicos. O itinerário notarial e registral necessário, na versão anoregueana, para se obter uma única e particular “vantagem” em relação a outras soluções de mercado na conservação e autenticidade de documentos, simplesmente é irreal. Ao menos nas condições em que apresentada – condicionada a um périplo nota-registral inacreditável. Francamente, é uma idéia onerosa e burocrática. Numa palavra: típica solução cartorial.

Não vou detalhar aqui o modus operandi. Talvez pudéssemos conhecer melhor suas idéias se as nos expusesse com detalhes – especialmente ao Sr. Presidente do Colégio Notarial do Brasil, coincidentemente a entidade que tem o maior interesse no assunto e que estava ali presente.

A impressão que me fica é de que a proposta do notário mineiro é sensível, como talvez não pudesse deixar de ser, a um “imperativo categórico” corporativo, digamos assim, desvelada pela ventriloquia anoreguística sobre temas que se tornaram medulares para aquela entidade privada de representação de notários e registradores.

O respeitado tabelião se achava na condição obrigatória de confirmar as especialidades profissionais, dando azo a um discurso capenga de dirimição de certos conflitos corporativos. Ainda que, como nesse caso se vê nitidamente, a artificiosa confirmação dessas singularidades, acabe redundando na falência do próprio sistema, envenenado que se acha por disputas intestinas e por uma mal ajambrada solução de consenso. Até quando hesitaremos em partir de vez essa criança?

Enfim, ML não definiu claramente em sua exposição o que é próprio do notário e o que é atribuição exclusiva do registrador de T&D. Embaralhou tudo numa mixórdia custosa e burocrática. Talvez não pudesse discriminar as partes por vários e relevantes motivos. Quiçá não o pudesse fazer, paradoxalmente, porque está investido de uma delegação que, à guisa de representar e harmonizar as ditas especialidades, acabe simplesmente potencializando os conflitos.

Sobre os espelhos e os documentos eletrônicos, sigo na próxima postagem, com a paciência do leitor.