Estatópolis: filha da leniência e da justiça lotérica

Ainda ontem postava uma nota que apontava a administração pública como o principal vetor da clandestinidade e irregularidade fundiárias no país.

Assumo a ligeireza da crítica, que era evidente. Mas a intenção de catarse liberatória também. Afinal, custo a superar um preconceito que consiste em purgar simbolicamente os defeitos essenciais da administração pública pela invocação de seu manto sagrado de publicidade.

Convenhamos, existirá coisa mais estúpida do que sustentar tout court a prevalência do interesse público sobre o particular? Visto de uma certa perspectiva, esse interesse público calha de encarnar sujeitos muito concretos, com intenções, desejos e interesses bem particulares. Sempre suspeito dessas vacuidades terminológicas – sempre embalam interesses tópicos. ###

Hoje mesmo O Globo (Rio, p. 13) traz uma reportagem intitulada dois pesos, duas medidas em que noticia a liminar concedida a invasores de uma propriedade particular e a respectiva desconsideração burocrática do pedido de reintegração postulado pelo titulares do direito.

A indústria da favelização furtou o manto sagrado do espaço público. Sacralizou os seus interesses com o objetivo de usurpar um espaço simbólico que lhe permite exercitar a supremacia de seus interesses.

A opinião do jornal é clara: “Como em tantos outros casos, ela [a invasão] começou aos poucos e depois acelerou. A nova favela em Vargem Grande, a depender das autoridades, pode muito bem ser o início de uma Rio das Pedras. Em quatro meses já existem 230 barracos, orelhão, associação de moradores, cobrança de taxas etc. É a indústria da favelização em grande atividade”. E concluiu em boa síntese: “Se a prefeitura continuar lenta ao tratar da ocupação anárquica da cidade, pode-se prever o desfecho dessa história, contabilizando-se mais um foco de violência e de degradação do Rio”.

Por outro lado, ao perder as referências mais claras dos limites do exercício da jurisdição – nomeadamente a lei e o contrato – a nova abordagem política do Judiciário, colocado no centro das mais importantes decisões políticas, nos impulsiona a um estado de anomia. Afinal, sem as referências tradicionais de um leading case ou de um tipo legal ou convencional claramente definido, perdemos as balizas e experimentamos o pior dos dois mundos. Sem uma taxa mínima de previsibilidade, não será possível o desenvolvimento da sociedade, refém de uma leniência interessada e de uma justiça lotérica.
Vai se construindo, com as bênçãos desse “interesse público”, uma mega-estatópolis.
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Dois pesos, duas medidas.

RIO – Enquanto um total de 14 proprietários luta na Justiça há dois anos para conseguir a desocupação de uma área em Vargem Grande conhecida como Comunidade Novo Lar, um grupo de invasores conseguiu, em julho de 2004, em aproximadamente seis meses, uma liminar que impedia o município de forçá-los a desocupar o terreno. Em 2003, logo no início da invasão, seis casas foram erguidas no local. Hoje, as construções já passam de 60. A área fica próxima à Vila Taboinha, a mais nova favela do município. O advogado Fernando Freeland Neves, que representa os proprietários, reclama que neste período o caso sequer foi apreciado.

Segundo Fernando Freeland, quando os proprietários tomaram conhecimento da ocupação em 2003, fizeram vários requerimentos administrativos e os encaminharam à prefeitura, pedindo a desocupação. Fiscais foram ao local, o que despertou a atenção dos invasores. Eles foram à Defensoria Pública e entraram com uma ação na 4ª Vara de Fazenda Pública contra o município para impedir a demolição de imóveis ou habitações na comunidade. Na decisão, o juiz ponderou que havia dúvida se a área em questão seria efetivamente pública, porque não constava certidão do registro de imóveis. Diante disso, para o juiz teria que prevalecer o direito à habitação.

Na Vila Taboinha barraco falso esconde obras

O caso ilustra ocupações que estão ocorrendo na região de Vargem Grande. A Vila Taboinha, em Vargem Grande, que tem 230 barracos e fica numa área de preservação ambiental, é motivo de outra pendenga judicial. A área invadida tem dono. São dois lotes. Um deles, com 31 mil metros quadrados, tem 12 proprietários: 11 pessoas físicas e uma fração pertencente à Debret Sociedade Anônima Construção e Empreendimento. O outro (com 45 mil metros quadrados) pertence só à Debret. Segundo o advogado Wladimir Macedo, que representa os 13 proprietários, há três meses ele entrou com uma ação de reintegração de posse.

Os barracos começaram a ser construídos há apenas quatro meses e a área já tem, inclusive, relógios medidores de energia e também um orelhão. A ocupação da Vila Taboinha já tem sacolão e padaria. Os invasores inovaram. Em alguns locais construíram uma nova modalidade: o barraco falso. A construção é toda feita em madeirite, mas por dentro as paredes de alvenaria vão sendo feitas.

Segundo o prefeito Cesar Maia, a prefeitura não tem como intervir no caso. De acordo com ele, foi aprovada uma lei na Câmara de Vereadores sobre o Plano de Estruturação Urbana (PEU) de Vargem Grande, que autoriza a permanência de ocupações em áreas de preservação ambiental na região.
A pequena foto acima é do Ryugyong Hotel (http://en.wikipedia.org/wiki/Ryugyong) e lembra a arquitetura comunista cujos exemplos grotescos podem ser vistos em Brasília.

Brasília é uma terra fora da Lei!

Nós todos sabemos que a irregularidade fundiária que campeia neste país deve ser creditada basicamente à incúria da administração pública. Inação, inércia, ociosidade, despreparo, negligência e outros epítetos mais gravosos são adequados para qualificar a atuação da administração pública na ocupação irregular do espaço territorial urbano.

Ok, ok, ok, vocês dirão que a dinâmica capitalista do mercado imobiliário cria essas desregulagens e tome blá, blá e blá ideológico. Mas alto lá! Tudo isso ocorreu sob as barbas da fiscalização encarregada justamente de policiar o cumprimento das regras estampadas na Lei de Parcelamento do Solo Urbano. ###

Nada como um exemplo concreto, já que falamos das barbas do fiscal. Trata-se da ocupação irregular do solo em Brasília – que agora, com base em lei e interessante decisão do Supremo, busca-se “legalizar”. O governador José Roberto Arruda brada em alto e bom som (contabilizando os dividendos políticos): “Brasília é uma terra fora da lei”, conforme registra o Valor Econômico de hoje. “O esforço do meu governo é trazer o DF de volta à legalidade”, diz.

Todos em BSB conhecem a trajetória acidentada da Terracap. Estima-se que hoje uma população de 500 mil almas esteja habitando terras que não se sabe se são públicas ou privadas, se são tituladas ou não, se foram alienadas, desapropriadas, comprometidas já que, pela gigantesca incompetência da administração pública, a situação jurídica desses imóveis remanesce no limbo da clandestinidade jurídica.

Diz a reportagem: “Dentro do quadrilátero de 5,8 mil km² que forma o DF, estão Brasília e as cidades satélites. Mário Gilberto conta que a desapropriação da área, onde existiam fazendas, foi determinada por decreto do presidente Juscelino Kubitschek, em 1958. Porém, não foi integralmente implementada, porque o poder público não indenizou todos os proprietários nem levou a cartório a alteração de titularidade de cada imóvel“.

E segue a reportagem dizendo que “a desapropriação apenas parcial do quadrilátero gerou dúvida sobre a quem pertenciam as terras. Disputas entre herdeiros agravaram o problema, que se complicou ainda mais com o fato de que algumas fazendas tiveram desapropriação parcial. Essa grande confusão facilitou a ação de grileiros, que parcelaram e venderam irregularmente tanto terras efetivamente desapropriadas quanto particulares. Houve, também, casos de donos legítimos que parcelaram sem licença”.

A opacidade jurídica e a incompetência (para dizer o menos) da administração pública geram a grande confusão que agora se pretende remediar.

Seria correto afirmar, parafraseando o Governador Arruda, que Brasília é uma terra sem registro”