A Primeira Vara de Registros Públicos da Capital de São Paulo pode ser considerada um celeiro de inovações, onde se enfrentam problemas inusitados e se buscam soluções a novas e instigantes questões registrárias.
Tema assaz interessante – muito bem enfrentado na decisão abaixo – é saber se o idoso, em face do que dispõe o Estatuto respectivo (Lei n. 10.741, de 1.10.2003), goza de privilégio em face da prioridade registral tendo em vista o disposto no art. 3º, § único, I, c.c. art. 71 e seus parágrafos, ambos do Estatuto do Idoso.
A resposta não se limitará aos casos dos direitos dos idosos. A legislação protetiva é mais ampla e tende a expandir-se. Cite-se a Lei Federal 10.048, de 8 de novembro de 2000, que consagra a prioridade de atendimento às pessoas que especifica: pessoas portadoras de deficiência, gestantes, lactantes, pessoas acompanhadas por crianças de colo, além dos idosos. Pode-se, portanto, estender as conclusões a que pudermos chegar ao grupo abrangido por essa Lei.
Reiterando a questão: o idoso, em face do que dispõe o Estatuto respectivo, goza de privilégio em face dos demais na consagração da prioridade registral?
A resposta é negativa, em termos. Vejamos.
Em primeiro lugar, é preciso considerar que o direito de prioridade se alcança com a prenotação do título. A precedência do título gera a prioridade – direito formal – que repercute no direito de preferência, direito material. Portanto, como consequência direta da prenotação, confere-se, ao interessado, a prioridade e, via de consequência, a preferência, elemento consubstancial dos direitos reais.
Os direitos fundamentais da pessoa humana se concretizam no atendimento preferencial, imediato e individualizado do idoso, nas várias demandas que endereça ao Registro de Imóveis. Contudo, tratando-se de um direito personalíssimo, esse direito deverá ser exercitado em proveito próprio do idoso ou daquelas pessoas que se achem na condição de vulnerabilidade, nos termos da lei. Não se acha em causa a definição dos direitos pela condição pessoal da parte; o que se busca é o atendimento preferencial, imediato e individualizado do idoso.
A garantia do mecanismo de prioridade registral não contrasta com a faculdade consagrada genericamente no Estatuto do Idoso. As regras deste não se impõem às regras da Lei 6.015/1973. Tratam, tais diplomas, de situações distintas entre si. Em outras palavras, vale a regra protetiva até o limite em que não seja obliterada por outra, de ordem pública, que consagra, aos interessados, a prioridade registral e na ponta remota a preferência e definição dos direitos reais.
A interpretação da lei protetiva-social não chega a subverter a regra da consagração de direitos patrimoniais, já que o Estatuto se dirige à prestação do serviço e não a dispensação e consagração de direitos.
Todavia, uma vez consagrada a prioridade (art. 186), considerando-se o fato de que os efeitos do registro, ainda que realizado posteriormente, retroagem à data da prenotação (art. 1.246 do Código Civil), nada obsta que o procedimento registral seja priorizado, sem que possa advir, daí, prejuízos a terceiros. Nesse caso, a preferência deverá ser expressamente rogada para que se dê constância documental da quebra da ordem procedimental do registro (art. 11 da LRP).
Por fim, há inúmeras atividades que se realizam num Ofício Imobiliário que não atinam com a prioridade. Exemplos: recepção de título para mero exame e cálculo de emolumentos (art. 12), requisição e expedição de certidão ou informações (art. 16, §§ 1º e 2º c.c. art. 194), averbações em que não há repercussão em direitos contraditórios etc.
Enfim, o aspecto mais importante a ser considerado na questão do atendimento prioritário aos idosos é a legitimidade para requerer o benefício.
Sobre o tema das distinções conceituais entre apresentante e interessado na definição da legitimação registral para rogar a inscrição, a doutrina controverte.
Inovando a lei vigente, neste aspecto, a legislação anterior – inclusive a própria Lei n. 6.015, de 31.12.1973, em sua redação original (art. 218) –, a Lei n. 6.216, de 30.6.1975, previu que a provocação da inscrição ficaria deferida a “qualquer pessoa”.
Afrânio de Carvalho criticaria a redação da vigente Lei (Registro de Imóveis. Rio de Janeiro: Forense, 1982, p. 329). Com o advento do Código Civil de 2002, o tema volta à baila, pois o art. 1.492, § único, prevê que o registro da hipoteca deverá ser rogado pelo interessado.
Para além da figura do apresentante (arts. 12, 198, 206, 211, etc.), é necessário comprovar o legítimo interesse do postulante para alcançar os benefícios previstos na legislação protetiva. Tratando-se de direito personalíssimo – no sentido de que a situação peculiar do idoso acarreta um direito a ser usufruído exclusivamente pelo seu titular (Cfr. Art. 8º da Lei n. 10.741, de 1.10. 2003) é necessário que o requerente indique e fundamente o seu legítimo interesse.
Nesse sentido, v. o seguinte aresto do Superior Tribunal de Justiça: AgRg. REsp. 285.812/ES, Rel. Min. Aldir Passarinho Jr. Destaca-se da ementa:
“As disposições do Estatuto do Idoso, Lei n. 10.641 de 1.10.2003, e do art. 1.211-A do Código de Ritos, somente se aplicam às partes da relação jurídica processual”.
Já no Agravo de Instrumento 468.648-SP, rel. Min. Antônio de Pádua Ribeiro, decidiu-se que a regra protetiva representa uma exceção, devendo ser interpretada restritivamente.
No Estado de São Paulo, a Corregedoria-Geral de Justiça editou o Provimento CGJ 27/2001, de 28/9/2001, que estabelece rotinas para o serviço cartorário judicial, aperfeiçoando-o face o advento da Lei nº 10.173, de 09.01.2001, que acrescentou à Lei nº 5.869, de 11.01.73 – Código de Processo Civil – os artigos 1211-A; 1211-B e 1211-C, no que diz respeito a pessoas com idade igual ou superior a 65 anos.
Mesmo a Primeira Vara de Registros Públicos, vem admitindo o processamento célere de procedimentos administrativos, conforme decidido no Processo 583.00.2009.149175-5, j. 19.6.2009, DJE de 14.7.2009, de São Paulo, j. Gustavo Henrique Bretas Marzagão.
Seja como for, a R. decisão abaixo aponta para o melhor caminho interpretativo e merece ser aqui divulgada.
Reclamação. Estatuto do idoso – atendimento – tratamento preferencial. Portadores de necessidades especiais. Princípio de prioridade.
EMENTA NÃO OFICIAL. Os idosos e os portadores de necessidades especiais devem ser atendidos com preferência quando veiculem pedidos e entregas de certidões e demais documentos. Excetuam-se à regra os títulos que devam ser prenotados gerando o direito de prioridade.
Processo 100.09.326136-4 – Pedido de Providências – Corregedoria Geral da Justiça – .CP. 371. – ADV: HC (OAB …/SP)
VISTOS.
Cuida-se de expediente iniciado pela E. Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo, que encaminhou a esta Corregedoria Permanente reclamação de HC em relação ao xº Cartório de Registro de Imóveis da Capital.
Aduz o reclamante que é idoso e que, ao se dirigir à referida Serventia para regularizar imóvel de sua propriedade, não recebeu o tratamento preferencial previsto no Estatuto do Idoso, tendo a funcionária dito que não havia preferência de idosos no registro de imóveis. Alega, ainda, que a prioridade de atendimento para os serviços como pedido de certidões, retirada de documentos e informações não interfere na prenotação das averbações e registros. Aduz, por fim, que a Serventia não possui quantidade suficiente de funcionários.
Informações do xº Oficial de Registro de Imóveis às fls. 10/13.
Nova manifestação do reclamante às fls. 35/36.
Intimado, o interessado não compareceu às audiências (fls. 38, 43 e 45).
É O RELATÓRIO.
FUNDAMENTO E DECIDO.
Observe-se, em primeiro lugar, que o reclamante aduziu em sua inicial diferença entre os serviços de pedido de certidões, de retirada de documentos e de informações dos de registro e averbação, mas não informou qual buscara na Serventia e que merecia a preferência prevista no Estatuto do Idoso, limitando-se a dizer que pretendia regularizar seu imóvel.
Somente após a leitura dos documentos acostados às informações do Oficial é que se pôde inferir que o ato perseguido pelo reclamante era o cancelamento da hipoteca (v. Av. 03, fl. 24v.).
Nas informações prestadas, disse o Oficial que os idosos e os portadores de necessidades especiais são atendidos com preferência em relação aos pedidos e entregas de certidões e demais documentos, mas que, quanto ao de protocolização de títulos, todos os usuários recebem senhas para assegurar a prioridade fixada no art. 182 e seguintes, da Lei 6.015/73, aguardando, sentados e bem acomodados, a vez do atendimento.
A hipoteca, enquanto direito real (sobre coisa alheia), submete-se ao princípio da prioridade, explicado por Afrânio Carvalho da seguinte forma:
“num concurso de direitos reais sobre um imóvel, estes não ocupam todos o mesmo posto, mas se graduam ou classificam por uma relação de precedência fundada na ordem cronológica do seu aparecimento: prior tempore potior jure. Conforme o tempo em que surgirem, os direitos tomam posição no registro, prevalecendo os anteriormente estabelecidos sobre os que vierem depois” (Registro de Imóveis, 3ª Ed., Forense, pág. 216).
O princípio da prioridade está previsto de forma expressa nos arts. 182 e seguintes, da Lei nº 6.015/73. Sua incidência sobre a hipoteca e atos que a cercam, embora redundante, consta também do Código Civil, no art. 1493, in verbis:
“Os registros e averbações seguirão a ordem em que forem requeridas, verificando-se ela pela da sua numeração sucessiva no protocolo.”
Sucede que os títulos que geram direito de prioridade devem ingressar no Registro Imobiliário, mediante lançamento no Livro nº 1 – Protocolo, conforme a rigorosa ordem de apresentação. Por essa razão, eventual direito a atendimento preferencial em razão da idade não permite, quanto a esses títulos, que sejam recebidos antes de outros que deram ingresso nas dependências da serventia em primeiro lugar.
Nessa linha, verifica-se que o caso em exame realmente não permitia a dispensa da senha garantidora da prioridade, pois o ato registral não era de mero pedido de certidão ou equivalente, mas de averbação de ato referente à hipoteca, ato que se sujeita à prioridade registral.
No que diz respeito ao tratamento recebido pelo reclamante, designou-se audiência para que melhor se esclarecessem os fatos, mormente quanto à alegação de que fora tratado com desdém pelos funcionários da Serventia, os quais, todavia, não identificou na inicial.
Sem embargo, o interessado, intimado, não compareceu ao ato (fl. 39), tendo creditado sua ausência a problemas de saúde (fls. 42 ). Em razão disso, e disposto a apurar os fatos, nova audiência foi designada, a qual também não se realizou por ausência do interessado (fl. 43), devidamente intimado (fl. 45).
A ausência do interessado, a par de demonstrar certo desinteresse no feito, obsta a adequada e indispensável apuração dos fatos, descritos de forma genérica na inicial sem indicar sequer os nomes dos funcionários que o teriam tratado com desdém, e no que teria consistido esse tratamento inadequado.
Note-se que o reclamante, às fls. 36, não imputou ao funcionário do cartório H. qualquer atendimento desdenhoso ou desrespeitoso, imputando-lhe somente o fato de não ter assegurado a prioridade que entendia ter direito.
Assim, diante da ausência de elementos mínimos de prosseguimento, não há como se instaurar qualquer medida disciplinar em face do Oficial, que não teria condições de exercer o direito de ampla defesa diante da generalidade dos fatos.
Posto isso, à mingua de qualquer medida censório-disciplinar a ser instaurada, determino o ARQUIVAMENTO dos autos.
Oportunamente, ao arquivo.
P.R.I.C.
São Paulo, 26 de fevereiro de 2010.
Gustavo Henrique Bretas Marzagão
Juiz de Direito
Ilustração: Study of an Old Man. Fortuny, Mariano, 1838-1874 (artist); L. Prang & Co. (publisher). Location: Boston Public Library, Print Department. Rights: No known restrictions