Os cartórios não morrem jamais! entrevista com SJ

A próxima edição de B2B traz um entrevista comigo. Faço o rebatimento da entrevista aqui, na esperança de armar um diálogo. SJ

Como anda a modernização dos registros públicos no país?

A questão fundamental, hoje, passa pela superação de um paradigma: a atomização dos registros públicos brasileiros. Cada cartório de registro se acha isolado, submetido, por força legal, à normação de instâncias administrativas locais (corregedores ou juízes diretores do foro – art. 30, XIV, da Lei 8.935/94) ou estaduais (Corregedorias-Gerais). Esse fenômeno de fissiparidade da regulação do registro causa um desbalanceamento indesejável. Ora, o mercado demanda uniformidade de procedimentos. O crédito imobiliário, por exemplo, cria contratos-padrão, estabelece regras que apontam para uma regulação plenária, uniforme, utiliza-se de standards para diminuição de custos e padronização – inclusive para transitar essas informações confortavelmente e sem ruídos (custos) por redes eletrônicas. Ora, se em cada região ou localidade temos um procedimento registral específico para tratar de demandas homogêneas, experimentamos então um grave problema de assimetrias, gerando custos de balanceamento que já não são tolerados pelo sistema. Mas não é só isso. Há outros exemplos…


Quais?

Além do crédito imobiliário, podemos pinçar, como exemplo paradigmático, a regularização fundiária, que está na ordem do dia. As regras de registro devem ser uniformes em todo o território nacional, sob pena de malograrem as políticas públicas engendradas para resolver esse grave problema social. A regularização fundiária no Estado de São Paulo, só para ficarmos num único exemplo, tem um tratamento distinto da concretizada em Minas Gerais.

Quais são os principais entraves para que a malha estrutural brasileira migre para plataformas digitais?

O fenômeno de atomização dos registros rende assimetrias. Não é possível conceber uma malha estrutural para interação dos registros fora de um rigoroso padrão pré-estabelecido. E quem nos dará essa infra-estrutura? Qual a instância regulatória? A Constituição Federal estabelece que compete privativamente à União legislar sobre registros públicos (art. 22, XXV). Toda a estrutura formal dos registros (livros, procedimentos, práticas registrais, etc) deve ser prevista por norma federal. Entretanto, historicamente os registros sempre estiveram adstritos ao Judiciário estadual, de quem sempre dependeram, desde as suas origens medievais. Falo de uma discreta regulação da atividade. Muito mais do que estrita regulação, estávamos em uma relação de convivência e interdependência muito particular, integrando a galáxia judiciária. Os chamados serviços extrajudiciais eram uma das faces dessa multifacetada moeda judiciária. Com o advento da Constituição de 1988, parece ter havido uma fissura. Até que ponto a especialização das atividade registrais exigirá uma relativa independência do Judiciário, só o tempo dirá…

Mas os registros públicos não estão sujeitos ao Poder Judiciário?

A Constituição Federal diz que os serviços registrais e notariais serão fiscalizados pelo Poder Judiciário (art. 236, parágrafo primeiro). Isso é bom. Por outro lado, temos que considerar que algo muito distinto é a regulação dessas atividades. Malgrado o fato de a Lei 8.935/94 estabelecer que os notários e registradores estão sujeitos “às normas baixadas pelo juízo competente”, parece-nos que a regulação da atividade devesse dimanar da União. Esse ponto é importante. Vamos pensar numa infra-estrutura como a de chaves públicas no Brasil. O modelo é hierarquizado, sujeitando os que se achem sob essa hierarquia à observância das regras baixadas pelo Comitê Gestor. As particularidades que guardam as atividades notariais e registrais, com a exigência requisito formal obrigatório (documentos eletrônicos públicos), exigem uma regulação uniforme para todo o território nacional, de modo a garantir a interoperabilidade do sistema. Não é concebível que essa regulação se dê nos Estados, muito menos que se realize em cada comarca, sem qualquer consideração de aspectos como estereotipação de regras em nível federal. Enfim, a minha opinião é no sentido de que a fiscalização da atividade deva estar sujeita ao Judiciário (atos próprios), porém a regulação não. Isso nos leva a pensar em um Conselho de Notários e Registradores e na necessidade de decretos federais regulamentando aspectos da Lei de Registros Públicos, adequando seus dispositivos às necessidades atuais e conjunturais.

Para criação dessa malha estrutural é preciso informatizar os registros, certo?

Sim, é preciso migrar milhões de informações que se acham espraiadas em livros manuscritos ou fichas de matrículas. Esse conjunto deve povoar meios digitais. Ocorre que isso não é tão simples assim – nem vai ocorrer com a rapidez que muitos de nós desejaríamos. É preciso que sejamos realistas. Sempre pensamos no Registro de Veículos Automotores (Denatran) para tentar aproximar, a esse modelo, os registros prediais brasileiros. Ocorre que os cartórios não “morrem” jamais. A vida útil de um veículo (e de seus registros) é logicamente muito menor do que a vida de um imóvel. No caso dos imóveis, existe uma longa cadeia de titularidades, direitos, restrições, mutações jurídicas, vicissitudes que permanecem perfeitamente conservadas de molde a proporcionar o DNA de um determinado imóvel. Um só elo que seja rompido compromete toda a cadeia. Como reduzir essa pletora de informações a variáveis pré-definidas que hão de compor uma base de dados? A vistosa variedade de situações, dados, padrões, fixada em diferentes mídias, não permite a migração sem que se faça um escrupuloso exame da qualidade dessas informações. Quando se dá uma certidão, por exemplo, o registrador elabora um exame tão rigoroso dos dados sob sua custódia, tanto quanto faria quando recebesse um documento para registro. Analogamente, quando se faça uma migração de dados, não se fará pura e simplesmente a transposição dos conteúdos medium a medium – do meio cartáceo ao eletrônico. Será necessária uma requalificação desses dados, articulação desses conteúdos com o hiper-arquivo que o cartório de registro representa.

Mas um passo deve ser dado nesse sentido… O que o Irib tem feito para diminuir esse gap tecnológico?


Um passo muito importante já está dado. O Irib, instituto que presido, tem uma atitude positiva, confessando suas convicções nas virtudes do meio eletrônico, sem olvidar os problemas que esse admirável mundo novo representa. Depois, há um curioso estalão proporcionado por sistemas informáticos que impulsionam “naturalmente” os dados para os meios eletrônicos. Os sistemas que já são utilizados nos cartórios, os pacotes de software, hardware, toda uma cultura da informática, conformam o “meio ambiente” da informação dos cartórios e impõem um padrão de tratamento de dados. Ora, isso tem impulsionado a informatização progressiva dos Registros. Entretanto, o risco, já apontado por mim em outras oportunidades, reside na tentativa inconsciente de buscar o apoio da informática para criar meros modelos homólogos dos tradicionais meios de fixação, conservação, manipulação, alteração da informação. Portanto, um registro eletrônico, fólio real eletrônico, é muito mais do que a reunião de alguns dados parcelares – como indicadores pessoais, reais, a exemplo do que temos desde 1846 nos Cartórios. É muito mais! Significa uma nova abordagem na conservação e transação desses dados vitais para a sociedade e a economia. Falamos de um novo paradigma, com toda a complexidade que o tema encerra. Nesse sentido, o Irib tem se empenhado em discutir com seus associados e com os demais interessados em temas de direito registral os novos modelos organizativos dos registros e de seus dados, sabendo que essas informações deverão estar disponibilizadas para interação em meios eletrônicos.

De que forma a Camara-e.net pode contribuir para o desenvolvimento do setor?

Em primeiro lugar, para afastar os preconceitos. Trazer os registros públicos para o ambiente das discussões técnicas sobre comércio eletrônico é um grande feito. Por indicação da Camara-e.net, temos assento no COTEC – Comitê Técnico do Comitê Gestor da ICP-Brasil. Isso não é pouco. É, quem sabe, o reconhecimento de que os registros públicos podem contribuir para consolidar essa infra-estrutura de interação e interconexão com suporte nos meios eletrônicos. Os registros existem para a sociedade, não podem estar à margem das grandes transformações que se operam na sociedade. Os registros não vão figurar como dinossauros em novo e desafiante ambiente!

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Nota: Os cartórios não morrem jamais!

As imagens que se vê acima são uma cortesia da Duke University – Duke papyrus archive.

A primeira, é um contrato celebrado em Panopolis, Egito, escrito num papiro. Provavelmente datado à época de Valenciano (AD 364-375). Formalização pelo notário Hierax nomikos. O papiro faz parte do Arquivo de Ammon, um bem conhecido scholastikos, ou advogado.

A segunda imagem reproduz um contrato em que comparece diante do notário uma mulher que dispõe a favor de outra (Maria?). A mulher declara, sob juramente ao Imperador, e contém várias estipulações pecuniárias. A assinatura da mulher é seguida pela notarização. O notário é chamado filho de Paphnouthios de Heron].

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