Interconexão e interoperabilidade

PROPOSTA: Art. 21-A. Os oficiais de registro e notários poderão acessar, mediante convênio, as bases de dados de identificação civil, inclusive biométrica, dos institutos de identificação civil, do cadastro de pessoas físicas contribuintes da Receita Federal e da Justiça Eleitoral para verificação da identidade das partes, no exercício de suas atribuições.”

JUSTIFICATIVA: Adaptação da lei ao registro eletrônico, de modo a aprimorar a identificação das partes pelos serviços de registro e prevenir a ocorrência de fraudes. Ademais, a existência da base para verificação da identidade pelos agentes responsáveis pela escritura e registro é um dos pontos examinados pelo Banco Mundial (Doing Business) para melhoria do ambiente de negócios

CPRI – PROPOSTA: Art. 21-A. Os oficiais de registro e notários poderão acessar, independentemente de convênio, as bases de dados de identificação civil, inclusive biométrica, dos institutos de identificação civil, do cadastro de pessoas físicas contribuintes da Receita Federal e da Justiça Eleitoral para verificação da identidade das partes, no exercício de suas atribuições.

CPRI – JUSTIFICATIVA: A previsão da necessidade de convênio posterior para acesso aos dados identificados cria um modelo de desburocratização que dependerá de edição de novo ato normativo. É mais conveniente que o acesso aos dados pelos Registros Públicos e Notários seja permitida sem a necessidade de realização de ato normativo posterior.

O contubérnio que se verifica no corpo desta proposta açodada revela aqui um pequeno índice. A lei é de Registros Públicos – não de notários. Não convém misturar as especialidades em diploma que é tão específico.

A ideia, em si mesma, não é má; entretanto, é preciso definir muito bem os papeis. O Registro de Imóveis não tem por missão institucional produzir índices para municiar o Doing Business, embora se reconheça que isso é muito importante para posicionar o país no ranking mundial que o projeto revela. Tanto se reconhece a sua importância que a produção de índices e estatísticas acha-se prevista no Provimento 89/2019 (art. 16 e 20).

Na regulamentação do CNJ fez-se o caminho correto e institucional: o projeto é global e envolve todos os cartórios do Brasil.

A proposta deve nascer de iniciativas do próprio Governo Federal, articuladamente, envolvendo todos os órgãos e instituições encarregadas dessas bases de dados.

Infovia que liga ao lugar nenhum

PROPOSTA: § 12. Na localidade em que haja dificuldade de comunicação eletrônica, poderá a Corregedoria Geral da Justiça Estadual autorizar prazos maiores para emissão de certidões.

JUSTIFICATIVA: Adaptação da lei ao registro eletrônico, considerando as diferenças regionais e de comunicação remota.

Retornamos às consideração expendidas nos comentários ao [Art. 19, § 9º] – o tempo é relativo. Se a intenção fora consagrar na lei a obrigação de cumprimento de prazos, retirando a discricionariedade aberta pelo art. 19 (“não podendo ser retardada”) aqui se dá o inverso: coloca-se nas mãos do regulador a modulação dos prazos…

Convenhamos: a lei é clara o suficiente e apanha todas as hipóteses.

O artigo fala em “comunicação eletrônica”, mas sabemos que é necessário mais do que mera plataforma ou via de acesso digital; é necessário que o próprio SC (Sistema do Cartório) seja eletrônico. De que adianta construir uma infovia se não há energia elétrica ou se os sistemas não são aptos para tratar as informações recebidas em meios digitais?

Aqui a discricionariedade é necessária e o papel do Poder Judiciário é essencial e deve ser estimulado.

As assimetrias notadas pelo mercado e que revelam um anacronismo do sistema registral não serão superadas pelo incremento do acessório em detrimento do principal. Não se toma a parte pelo todo. As centrais não são o “Registro Eletrônico”.

Todo o conjunto de propostas revela um extraordinário esforço para justificar o “registro eletrônico” pela parte acessória – as centrais estaduais. Elas nasceram como parte integrante de um todo que ainda não se consumou e desenvolveu exatamente pela resistência da parte.

Insisto: um órgão não pode se desenvolver mais do que o próprio organismo!

Dados não são informação

PROPOSTA: § 11. As informações necessárias para a comprovação da propriedade, direitos, ônus e restrições deverão ser fornecidas na certidão da matrícula, bem como na certidão da situação jurídica do imóvel.

JUSTIFICATIVA: Padronização dos requisitos da certidão, em benefício do usuário. O texto também explicita aos registradores de imóveis e às instituições financeiras que tais certidões já dão notícia de toda a situação jurídica do imóvel.

A redação é defectiva e cria uma hipótese esdrúxula de publicidade registral. Aparentemente, se é exatamente isso que se quis dizer, teremos então duas modalidades de certidões para um mesmo objetivo?

A certidão deve ser dos atos, não da matrícula

A leitura do articulado revela absurdos. Primeiro, toma-se a parte pelo todo: a certidão deve ser dos atos, não da matrícula. A matrícula é o livro-continente, os atos são os seus conteúdos.

Venho advertindo a respeito da tendência em que a parte (atos registrais) é tomada pelo todo (matrícula). Sob outro ângulo: a parte (centrais) é tomada pelo todo (SAEC). Trata-se de uma espécie de “sinédoque registral”. Os órgãos do sistema são tomados pelo todo (organismo). É uma evidente confusão.

Por outro lado, retornamos aqui à ideia de conversão dos registros jurídicos em meros repositórios estáticos de dados que nem sequer podem ser qualificados propriamente como informação “jurídico-registral”.

Dados em si mesmos considerados não são informações. Informações devem ser articuladas juridicamente para revelar a situação jurídica do bem inscrito. Essa é a preciosa atividade do jurista encarregado do Registro de Imóveis. Esse deve ser o output do sistema: qualificação registral na entrada e na saída.

Acerca da distinção entre dados e informação, registra JULIANO MARANHÃO:

“Importante aqui distinguir entre os documentos, dados e informação. Documentos são o suporte físico ou eletrônico dos dados. Os dados, que podem ser definidos como quebras de uniformidade perceptíveis pelo humano ou pela máquina, cuja combinação é capaz de gerar significado (e.g. símbolos em tinta em uma folha em branco, furos em cartões ou sequências de bits)[1]. Informação é o conteúdo semântico, o significado extraído do processamento dos dados”[2].

Por fim, a análise sintática do articulado revela um certo descuido. O uso do tempo verbal (deverão) e a locução adverbial (bem como) revelam que a publicidade registral pode se dar pela “certidão da matrícula” e pela “certidão da situação jurídica do imóvel”. Afinal, de que ato de publicidade estamos mesmo tratando para a consecução da finalidade publicitária?

A formulação é defectiva e cobra um esforço desnecessário para demonstrar o que salta à vista.


[1] FLORIDI, Luciano. Semantic Conceptions of Information. Stanford Encyclopedia of Philosophy, 2019; https://plato.stanford.edu/archives/sum2019/entries/information-semantic/.

[2] MARANHÃO. Juliano Souza de Albuquerque, org. Proteção de Dados e Registro Imobiliário. São Paulo, 2020, p. 8. Acesso: https://nearlab.files.wordpress.com/2020/08/estudoirib-protocolo.pdf

LGPD – a estática e a dinâmica do registro

PROPOSTA: § 10. Os Registros de Imóveis deverão disponibilizar, por intermédio do Serviço de Atendimento Eletrônico Compartilhado – SAEC, a visualização da matrícula e dos atos praticados no Registro Auxiliar, ao custo de 30% do valor da certidão.

JUSTIFICATIVA: Adaptação da lei ao Registro Eletrônico de Imóveis, com inclusão na lei do serviço de visualização on line de matricula, já disponível nas centrais compartilhadas, que permite ao usuário acesso à matrícula eletrônica imediatamente, 24h por dia, mesmo em dias não úteis.

Emolumentos – lei estadual.

Iniciemos com essa indicação: matéria emolumentar deve ser objeto de lei estadual.

A tentação de elevar a matéria ao âmbito federal deve ser enxergada com muito cuidado. Parece existir uma tendência nesse sentido. Todavia, como temos tido ocasião de destacar no curso desta análise, o problema deve ser resolvido com estratégia e conhecimento de causa.

Um órgão não é o organismo

Já aludimos às funções do SAEC. Fica aqui a advertência: como órgão do SREI, o SAEC não deve se constituir em fonte da publicidade registral, sob pena de subversão do próprio sistema de delegação, convertendo o hub de acesso e trânsito informacional em fonte própria de dados e informação.

Não será o SAEC o portal de “visualização da matrícula e dos atos praticados no Registro Auxiliar”.

Tenho denunciado uma tendência de alocação, em centrais (ou mesmo no SAEC) de dados registrais, convertendo-as em entidades para-registrais com uma espécie de subdelegação de ofício e função sem previsão legal ou constitucional.

Intenta-se, por meio de emendas legislativas, instituir as centrais em atores personalizados às quais se atribui funções próprias delegadas aos registradores para a prática de atos registrais como prenotação, emissão de certidões etc.

Quem prenota, emite certidões ou presta informações é o registrador, não centrais ou SAEC e nem mesmo o ONR.

Isso nos leva a uma outra série de considerações. Vamos a elas.

LGPD e a atividade registral

À parte esse problema de fundo, aqui se avança sobre um tema ainda pouco discutido e muito sensível: o impacto da LGPD na publicidade registral.

Temos sustentado que o acesso à chamada “visualização da matrícula” deverá se constituir em exceção, já que ela revela a terceiros dados, circunstâncias e vicissitudes que se relacionam ou integram a esfera privada de todo aquele que, direta ou indiretamente, figura no registro na sucessão de atos que filiam e compõem o historial tabular.

Sabemos que muitos desses atos acham-se cancelados, direta ou indiretamente, seja pela sucessão na titularidade dos direitos, seja por inúmeras mutações jurídicas (retificações, gravames etc.). O que pode interessara a terceiros, por exemplo, saber que fulano sofreu uma indisponibilidade de bens no passado, ou que sicrano experimentou uma penhora? Que interessará a terceiros conhecer circunstâncias já canceladas, alteradas, extintas? Separações, divórcios, reconciliações – o que tudo isso pode interessar no contexto dos intercâmbios de representados pela aquisição ou oneração de bens imóveis? Mudança de sexo, averbação de transgeneridade ou de situações relacionadas como uniões homoafetivas – o que estas circunstâncias podem alterar ou qualificar a aquisição ou transmissão de bens e direitos?

Dizemos que essa modalidade de “visualização de matrícula” deverá ser exceção porque, tratando-se de mera informação, a lei faculta o seu acesso somente às “partes” – isto é, àqueles que possam demonstrar e comprovar legítimo interesse. Esta é, precisamente, a redação do item 2º do art. 16 da LRP, que alude a “partes”.

“Partes” e o legítimo interesse na rogação

Hoje causa espécie dois aspectos da lei: (a) que as “informações” devam ser prestadas às para “partes” e (b) que “qualquer pessoa” possa requerer certidão do registro “sem informar ao oficial ou ao funcionário o motivo ou interesse do pedido[1]

Já me debrucei sobre o tema, tendo me dedicado a proceder a uma exegese do corpo legal em um caso concreto[2]. Partes, no contexto da Lei de Registros Públicos, é um conceito técnico: refere-se às pessoas que, direta ou indiretamente, figuram no Registro ou têm legitimidade para promover mutações na situação jurídica e obter do Registro de Imóveis informações de seu interesse. Parte é, pois, um conceito de processo e o Registro, como se sabe, é um processo. A epígrafe do Capítulo III do Título V da LRP acha-se assim grafada: “Do Processo do Registro, artigos 182 e seguintes.  

O conceito de parte pode ser expandido, no contexto dos Registros Públicos, e assim alcançar a ideia de legitimidade postulatória para obter as informações do Registro. Assim como a própria LRP previu a legitimidade para as obter (n. 2º do art. 16), a Lei de Notários e Registradores cravou o dever dos Oficiais do Registro de Imóveis de “facilitar, por todos os meios, o acesso à documentação existente às pessoas legalmente habilitadas”, conforme inciso XII do art. 29 da LNR[3].

Vimos, pela enunciação dos dispositivos legais citados, que há uma gradação: partes não é o mesmo que quaisquer pessoas.

Afinal, quem poderá rogar e obter informações do Registro de Imóveis?

Como já asseverei no curso deste trabalho, a cláusula aparentemente aberta do art. 17 da LRP – “qualquer pessoa” – não deve levar o intérprete a se afastar do escopo: “requerer certidão do registro”, expressão preposicionada por artigo definido que parece indicar um ato de registro determinado, não vários, nem indeterminados ou aleatórios.

Estaríamos diante de uma faculdade de postulação, aberta a qualquer pessoa, para obtenção de certidões de um determinado registro, não o acesso indiscriminado a todo e qualquer elemento que componha o acervo registral, abarcando o que poderia representar na prática um inventário patrimonial do cidadão – circunstância que pode ser amplificada com o acesso a centrais de informação dos Estados e muito comprometida pela vulneração de dados de caráter pessoal.

A visão tradicional na voz de Serpa Lopes

Vejamos como a doutrina tradicional feriu o tema. O tratadista assim registrou:

“Por conseguinte, quando a lei impõe ao Oficial a obrigação de mostrar às partes os livros de registo, subentende-se um interesse concreto, relacionado com o objeto certo, determinado e individuado, e não qualquer proposição vaga e indefinida que, sob a capa de uma investigação, transformaria o direito da parte numa verdadeira correição, uma vasta e desmedida faculdade de inspeção, que a lei atribui e só permite às autoridades judiciárias ou fiscais. Essa a interpretação harmônica com o próprio mecanismo do registo e especialmente o de imóveis” [4].

O mesmo SERPA LOPES cingirá a consulta (obtenção da informação) aos indicadores pessoal e real. Levemos em consideração que suas conclusões estavam condicionadas pelos limites instrumentais e infraestruturais da organização do Registro à época:

“Que faculta o art. 19[5]? Que o interessado possa, de pronto, saber a quem pertence a propriedade de determinado imóvel, não um imóvel qualquer, vagamente indicado; que alguém possa se certificar dos ônus que porventura gravem um determinado imóvel. A obrigação de exibição dos livros por parte dos serventuários, se cinge no apresentar ao interessado, não todos os livros para pesquisa, mas o livro onde deve figurar o imóvel por ele indicado, quer sob a base da menção à pessoa do proprietário, por meio do Indicador Pessoal, quer sobre a base da especificação do imóvel, através do Indicador Real. A publicidade assegurada não pode ser realizada através do registo, mas sim, partindo do objeto da pesquisa, seja uma pessoa, ou seja, um imóvel, e a obrigação do Oficial se circunscreve na apresentação do livro, onde se encontra transcrita ou inscrita a situação que se deseja conhecer”[6].

Tempos modernos – “um novo começo de era”

Os tempos mudaram, as novas tecnologias prenunciam uma nova era. As exigências hoje são outras, conformam-se de modo singular, mais específico, tornam-se complexas, variegadas. Já se consagrara a rotina de pesquisa nas centrais de informação de registradores com vistas a instruir ações executivas, sejam os interessados os privados ou o próprio estado, nas execuções fiscais e nos casos de indisponibilidades de bens – o que não deixa de ser uma forma heterodoxa de acesso aos dados do Registro.

Mais recentemente, surgiram novas demandas oriundas da sociedade e do próprio mercado: já não se buscam somente os dados da pessoa ou da coisa, mas abarcando um escopo maior, com pesquisas gerais e indeterminadas e, em certo grau, aleatórias[7]. Por exemplo, investigam-se padrões que possam revelar o comportamento do mercado na aferição de preço médio de transações, velocidade nos intercâmbios, identificação de imóveis em fase de execução ou levados a leilão, arrematados, adjudicados etc. Visa-se, com isso, amplificar a previsibilidade dos intercâmbios, implementar velocidade aos processos e a garantir maior segurança jurídica.

Tradicionalmente, sempre se entendeu que estas buscas indeterminadas ou genéricas, descartando peças centrais de informação – como a pessoa, a coisa e, em certa medida, o direito – e focando em elementos acessórios, não poderiam ser toleradas. Uma vez mais, lembremo-nos de SERPA LOPES:

“No caso sub judice, o pedido é formulado indeterminadamente. Não há indicação do imóvel, não há referência à pessoa do seu proprietário; não pode, assim, facultar-se a devassa dos livros do registo, devassa que não se compreenderia, de maneira alguma, e que perturbaria a própria ordem do serviço, dando ao mecanismo da publicidade uma extensibilidade jamais pretendida pelo legislador, uma extensibilidade sem resultados práticos, e que mesmo feriria o bom-senso”[8].

Para fornecer as informações ainda hoje ocorre uma espécie de subversão das rotinas tradicionais, encarecendo os custos para sua produção com o apoio de ferramentas inadequadas ainda hoje utilizadas. Não dispondo de um código que permita articular uma linguagem baseada em ontologia – a favorecer respostas mais rápidas e precisas – ficamos completamente atados para a produção desses dados.

O SREI e a mudança de paradigmas

O Registro foi criado e sempre existiu para aparelhar os intercâmbios relativos a bens e direitos imobiliários. O acesso aos livros, às informações, aos dados, sempre se facultou para que se cumpra a finalidade primacial do Registro de Imóveis, a teleologia registral: outorgar direitos e os publicizar juridicamente. O nosso foco sempre foi posto nos intercâmbios e transações entre privados – “A” aliena a “B” que institui um direito real de garantia a “C”. A situação jurídica, que assim se estabelece, será oponível a todos os terceiros.

Todavia entram em cena, agora, os meios eletrônicos que alteram substancialmente o ecossistema dos Registros Públicos. Já aludi a este fenômeno no artigo Sistema de Registro de Imóveis eletrônico – ao qual remeto o leitor[9].

Com as mudanças provocadas pelas novas tecnologias de comunicação e informação, surgem demandas inéditas no Registros de Imóveis – como, por exemplo, a pesquisa de todos os imóveis de um determinado bairro para apurar variáveis que serão utilizadas por algoritmos que revelam oportunidades de novos negócios e evitam problemas na aquisição, orientando os investimentos, trazendo maior segurança, rapidez e previsibilidade.

Estamos diante de um novo desafio: amplificar a garantia da segurança jurídica e econômica nos intercâmbios imobiliários com o apoio de novas tecnologias, simplificando processos e automatizando as rotinas.

Em suma: o mercado está abandonando a figuração quase arquetípica do Registro de Imóveis tradicional (A x B x C) e avançando em direção a figurações plúrimas e complexas. A atuação de empresas que atuam no mercado imobiliário, baseando em coleção de dados (ig data) já não estão focadas num único e determinado imóvel ou pessoa, mas a lógica, inerente ao seu negócio, a conduz a um outro patamar, de relações complexas, que são realizadas com apoio em novas tecnologias, obtendo maior velocidade, economicidade e eficiência.

São esses dados o motor da nova econômica no nicho do setor imobiliário.

Todavia, ao lado desse impulso quase irresistível, a sociedade ergue algumas barreiras. A mais importante delas é a proteção de dados pessoais. Veremos em detalhe.

Dinâmica e estática do Registro

A matrícula imobiliária é um ente dinâmico, já a filiação revela, somente para interessados legitimados, a cadeia estática de atos inscritos (trato sucessivo) que fica penumbrada por não interferir diretamente com o tráfico jurídico-imobiliário.

No direito inglês o mecanismo é chamado de Curtain Principle ou Mirror Principle. Para GRAY & GRAY o objetivo do registro imobiliário é que

“any prospective purchaser of registered land should always be able to verify, by simple examination of the register, the exact nature of all interests existing in or over the land which he proposes to buy”[10].

O tema é complexo e será agitado na aplicação prática da LGPD.

Princípio de finalidade da publicidade registral e a autodeterminação da imagem

O acesso indiscriminado aos dados pessoais, que o acesso à informação pela “visualização da matrícula” proporciona, fere o princípio da autodeterminação da imagem e contraria o princípio da finalidade que é a enteléquia da publicidade registral imobiliária e que se concretiza pela “manifestação livre, informada e inequívoca pela qual o titular concorda com o tratamento de seus dados pessoais para uma finalidade determinada” (inc. XII do art. 5º c.c. inc I do art. 6º da LGPD)[11].

O STF é o princípio da autodeterminação

O STF vem de decidir exatamente sobre esse mesmo tema e vale a pena refletir sobre o impacto da lei e dessas decisões na atividade registral já que a expedição de certidão por mera cópia reprográfica de matrículas pode dar ensanchas à tredestinação das finalidades da publicidade jurídico-registral.

Aludindo às ameaças representadas pelo advento de novas tecnologias nas atividades tradicionais, o ministro GILMAR MENDES deixou consignado em voto proferido na ADI 6.389:

“O direito fundamental à igualdade – enquanto núcleo de qualquer ordem constitucional – é submetido a graves riscos diante da evolução tecnológica. A elevada concentração de coleta, tratamento e análise de dados possibilita que governos e empresas utilizem algoritmos e ferramentas de data analytics, que promovem classificações e esteriotipações discriminatórias de grupos sociais para a tomada de decisões estratégicas para a vida social, como a alocação de oportunidades de acesso a emprego, negócios e outros bens sociais. Essas decisões são claramente passíveis de interferência por vieses e inconsistências que naturalmente marcam as análises estatísticas que os algoritmos desempenham” (voto proferido na ADI 6.389).

Na mesma direção o voto da ministra ROSA WEBER. Para ela são “decorrências dos direitos da personalidade, o respeito à privacidade e à autodeterminação informativa”. Tais direitos “foram positivados, no art. 2º, I e II, da Lei nº 13.709/2018 (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais), como fundamentos específicos da disciplina da proteção de dados pessoais”. As mudanças sociais e econômicas – ainda segundo a Ministra – “demandam incessantemente o reconhecimento de novos direitos, razão pela qual necessário, de tempos em tempos, redefinir a exata natureza e extensão da proteção à privacidade do indivíduo independentemente do seu conteúdo, mutável com a evolução tecnológica e social, no entanto, permanece como denominador comum da privacidade e da autodeterminação o entendimento de que a privacidade somente pode ceder diante de justificativa consistente e legítima” (ADI 6.389, voto de 24/4/2020).


[1] O art. 17, bem como o art. 217 da LRP, aludem à rogação de publicidade e inscrição no protocolo por “qualquer pessoa”.

[2] V. Processo 583.00.2008.151169-7 – informação – publicidade registral em https://quintoregistro.wordpress.com/2008/06/10/processo-583002008151169-7/.

[3] A Lei 8.935/1994 utiliza-se da expressão “documentação existente”. Documento nada mais é do que “unidade de registro de informações, qualquer que seja o suporte ou formato” (inc. II do art. 4º da Lei 12.527, de 18/11/2011.

[4] SERPA LOPES. Miguel Maria de. Tratado dos Registos Públicos. Vol. I. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 4ª ed., 1960, 106-7, n. 40

[5] Curioso observar que a redação do n. 2º do art. 19 do Decreto 4.857/1939 já facultava, às partes, o acesso direto aos livros de registro para obtenção de informações de seu interesse. Na redação atual, o Oficial já não está obrigado a mostrar às partes os livros de registro, mas tão-somente a fornecer a informação.

[6] Idem, ibidem.

[7] O Projeto SINTER, da Receita Federal do Brasil, se orienta no sentido de buscar revelar, a partir de padrões aferíveis por meio de aplicação de tecnologias de big data, atividades suspeitas de lavagem de dinheiro ou de evasão fiscal. Obtém-se, de modo aleatório, respostas a perguntas que ainda não foram formuladas, o que representa, em certa medida, um paradoxo. Para o aprofundar o tema, sugiro a leitura do excelente Mayer-Schonberger, Viktor. Cuker, Kenneth. Big Data: The Essential Guide to Work, Life and Learning in the Age of Insight. London: John Murray, 2017, 320 p. [ISBN: 9781473647206].

[8] Idem, ibidem.

[9] JACOMINO. Sérgio. Sistema de Registro de Imóveis eletrônico, 2018. Acesso: http://bit.ly/2V49S13.

[10] GRAY, Kevin & GRAY, Susan Francis. Elements of Land Law, 5 ed. London: OUP, 2008, p. 190.

[11] Para um maior aprofundamento do tema no âmbito da publicidade registral, consulte: MARANHÃO. Juliano Souza de Albuquerque. Proteção de Dados e o Registro Imobiliário. Acesso: https://near-lab.com/.

O tempo é relativo

PROPOSTA: § 9º As certidões do Registro de Imóveis, inclusive as que se referem o § 6° acima serão emitidas nos seguintes prazos máximos, contados do devido pagamento dos emolumentos:

JUSTIFICATIVA: São estabelecidos prazos distintos para os diversos tipos de certidão, em observância aos diversos graus de dificuldade para emissão e tendo em vista a manutenção do padrão de segurança jurídica.

a. 4 horas úteis para certidão de matrícula ou do livro auxiliar, em meio eletrônico, requerida no horário de expediente, desde que fornecido pelo usuário o respectivo número;

b. 1 (um) dia útil para certidão da situação jurídica atualizada do imóvel;

c. 5 dias úteis para certidão de transcrições e demais casos.

JUSTIFICATIVA: Adaptação da lei ao Registro Eletrônico de Imóveis, com redução de prazos, para garantir mais celeridade na obtenção de informação e na realização das transações imobiliárias, com repercussão positiva na dinâmica econômica.

CPRI: § 9º As certidões do Registro de Imóveis relativas a imóveis já incluídos no sistema de registro eletrônico, inclusive as que se referem o § 6° acima serão emitidas nos seguintes prazos máximos, contados do devido pagamento dos emolumentos:

JUSTIFICATIVA: A previsão genérica dos prazos exíguos indicados nas alíneas do §9º, conquanto já observados na maioria dos Estados da Federação, não pode ser imediatamente implementada em âmbito nacional, ao menos enquanto não adotada por completo a nova sistemática de registro eletrônico. Portanto, a previsão de que as certidões relativas aos imóveis já incluídos no sistema eletrônico serão expedidas nos prazos indicados, permite a adequação das serventias, e seus procedimentos, ao registro eletrônico, sem criar uma situação de impossibilidade logística de atender o quanto determinado.

CPRI: a.  4 horas de expediente para certidão de matrícula ou do livro auxiliar, em meio eletrônico, requerida no horário de expediente, desde que fornecido pelo usuário o respectivo número;

JUSTIFICATIVA: Correção da expressão horas úteis para horas de expediente, nos termos do já referido no parágrafo único do art. 9º.

A matéria é manifestamente de ordem regulamentar. A lei é clara e precisa e não dependeria mais do que uma regulamentação episódica pelo órgão competente. Eis a redação da lei em vigor:

“Art. 19. A certidão será lavrada […] não podendo ser retardada por mais de 5 (cinco) dias”.

Pela atual redação, a lavratura da certidão tanto pode ser instantânea, em tempo real, quanto retardada em até cinco dias, sopesadas as circunstâncias específicas e singulares de acordo com o regulamento.

Todas as circunstâncias aventadas pela CPRI e a justificativa apresentada na veiculação da proposta, representam um imenso ruído, poluindo a lei com disposições confusas e despiciendas.

A lei “que não pega” e o regulamento que não regula

Pode-se argumentar que “se não estiver na lei, o cartório não cumpre”. Esse argumento revela um descrédito no próprio sistema registral, mas também no órgão encarregado pela Constituição Federal para fiscalizar as atividades registrais.

Oriunda da mesma fonte deletéria é o epíteto – “lei que não pegou”.

Em ambos os casos se dá o mesmo fenômeno sociológico de inadequação da norma ou regulamento em face da situação fática objeto de regulação e fiscalização. Se não há propriamente um “registro eletrônico” em cada cartório, sem o aparelhamento de todas as serventias brasileiras, como esperar que os prazos se cumpram? 

Não quero parecer redundante, mas a modernização do sistema registral brasileiro é um processo que, a muito custo, consegue suplantar os inúmeros desvios e distorções que esta proposta é um exemplo impressivo.