AnoregBR e a Carta de Fortaleza – uma metáfora leonina

A cabra, uma novilha e a irmã daquela, a ovelha,
Com prepotente leão, que era o rei do lugar,
Fizeram sociedade outrora, ouvi contar.
Teriam em comum quer lucro, quer prejuízo.
Um cervo em laço cai que a cabra lhe aparelha.
Aos sócios mandou ela, então, urgente aviso.
Vieram todos. Contou pelas garras o leão
E disse: “somos quatro a repartir a presa”.
Depois, esquartejando o cervo com preteza,
Ficou com o melhor pedaço, como rei.
“Deve este pertencer-me, explicou, e a razão
É clara, pois meu nome é Leão.
Nada podeis dizer, bem sei.
O segundo pedaço é meu também, de sorte
Que se cumpra um direito – o do maior forte.
Sendo o mais corajoso, eu pretendo o terceiro.
E se tocar alguém de vós no derradeiro,
Terá nas minhas garras crua morte”.

(adaptação de A novilha, a cabra e a ovelha em sociedade com o rei leão, fábula de La Fontaine (livro 1, VI), com tradução de Luiz Gonzaga Fleury)

Are you hung up?

A questão da grilagem de terras é matéria muito complexa, todo mundo sabe disso. Mas tem gente que faz de conta que não sabe.

A nota abaixo, publicada no site do STF, confirma o que venho pregando há muitos anos em desagravo dos cartórios de registro e dos registradores, que são presas fáceis do preconceito e acabam sendo vítimas no processo de verdadeiro linchamento público a que são submetidos.

A grilagem de terras é um problema que se apresenta de maneira multifacetada e as razões de sua recidiva no cenário político-jurídico-institucional brasileiro são variegadas. Como se diz ultimamente: são razões multifatoriais. Nenhuma instituição pode se considerar absolvida dos pecados desse imbroglio envolvendo fraudes agrárias, superposição de glebas, venda de imóveis da União ou grilagem. Quase não resisto: todos têm culpa no cartório! Nem mesmo o Incra, com seus títulos volantes e seus beliches dominiais, nem mesmo o próprio Tribunal de Justiça do Estado do Amazonas, conforme se vê na nota abaixo, nem mesmo as vestais escapam dessa escancarada chaga nacional.

No caso em tela o Conselho da Magistratura do Tribunal de Justiça do Amazonas, em sede recursal de processos administrativos, acaba reformando decisões da própria Corregedoria-Geral de Justiça do mesmo tribunal, “dando guarida a notórios casos de grilagem de terra pública federal”.

Uau! A denúncia do Incra é grave – “dando guarida a notórios casos de grilagem de terra pública federal”?. Francamente!

(Por coincidência, o advogado que atua no caso é o mesmo que defende notários e registradores na Anoreg do Brasil).

Confira a seguir a nota. ###

A ministra Cármen Lúcia Antunes Rocha indeferiu a liminar requerida no Mandado de Segurança (MS) 26167, contra ato do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). A decisão do CNJ restabeleceu a Resolução 4/2001, da Corregedoria Geral da Justiça do Amazonas, que cancelou o registro de elevação de 1.442 para 485 mil hectares na propriedade de imóvel em nome de um casal, no município de Pauini (AM).

O Conselho da Magistratura do Tribunal de Justiça do Estado do Amazonas (TJ-AM) havia anulado a resolução, motivo do Pedido de Providência 268, pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), junto ao CNJ. A procuradoria do Incra alegou que pediu “providências contra decisões tomadas pelo Conselho da Magistratura do TJ-AM em processos administrativos, em grau de recurso, que reformam decisões da própria Corregedoria-Geral de Justiça do mesmo tribunal, dando guarida a notórios casos de grilagem de terra pública federal naquele estado”.

Para a defesa dos proprietários, o Pedido de Providência teria sido proposto por parte manifestamente ilegítima, pois o Incra não teria “delegação de poderes para reivindicar propriedade em nome da União”. Alegam também que o CNJ não os notificou e, ao assim proceder, negou vigência a direitos fundamentais básicos: do devido processo legal e do contraditório, além da garantia ao direito de propriedade.

A relatora, ministra Cármen Lúcia, declarou que a liminar requerida não pode ser reconhecida, pois o ato do CNJ atacado “não trouxe prejuízo concreto aos impetrantes quanto à não intimação prévia”, pois apenas confirmou uma anulação do título de domínio pelo extinto Tribunal Federal de Recursos.

01/11/2006 – 18:32 – Ministra do STF nega liminar para casal acusado de grilagem de terras no Amazonas

Bertold Brecht e a bancarização dos cartórios

O Valor Econômico on line traz interessante artigo na sua edição de 6/10: Cartórios fazem acordo com o BB e atuarão como correspondentes bancários.

Segundo a fonte, 9 cartórios ligados à Anoreg fecharam acordo com o Banco do Brasil para atuar como correspondentes bancários.

Mas que raios isso significa? Quer dizer então que agora os cartórios vão atuar como agências bancárias? Os registradores como prepostos da banca? Os Registros e Notas terão um regime jurídico extravagante – perfilhando as atividades próprias, tradicionais, seculares, com as bancárias?

Essa mixórdia institucional vem abençoada pela Anoreg.

Provavelmente a decisão foi sacramentada nas famosas assembléias camerísticas, de ritos esotéricos, em que os partícipes distribuem sopapos, vociferam impropérios e ao final repartem ósculos de santa lealdade e juras de eterno amor.

Vislumbro uma olímpica desconsideração das instâncias regulatórias, que, para o bem ou para o mal, estão claramente definidas no cenário jurídico-institucional das atividades notariais e registrais brasileiras.

Deus meu, que tempos bicudos! Não tardará e estaremos vendendo bilhetes lotéricos, jogando búzios, fazendo mise-en-plis, aplicando chapinha, vendendo geladeiras ou transacionando o carnê do baú nos guichês dos cartórios brasileiros.

Mistifório corporativo, bruzundanga institucional. Vade retro!

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Nosso múlti-presidente acena com a possibilidade do negócio ser expandido para os 21 mil cartórios do país e não descarta a possibilidade de serem atraídos para o projeto outros bancos, bastando, para isso, “que todos falem a mesma linguagem”.

Novamente: que diabos isso quer significar? O que é “falar a mesma linguagem”? Ora, para falar a mesma linguagem é preciso um código. E esse código, quem nos brindará? Estaremos todos dependentes dessa instância bastarda que se arroga o privilégio de regular a nossa atividade? Quem delegou essa missão à nomenklatura que tomou de assalto (e não quer sair) o aparelho corporativo? Quando se reclama uma mesma linguagem, se busca impor um redutor simbólico dos discursos especiais que configuram os dialetos das tribos notarial e registral. A frase na boquirrota anoreguística quer significar somente isso: garroteamento das atividades notarial e registral por um sistema informatizado de transações eletrônicas. Controle corporativo. Captura das atividades públicas por interesses particulares.

Nosso múlti-presidente é um estrategista formidável. Admirável é sua visão de longo alcance. Depois de perder o filé mignon das escrituras públicas para as instituições financeiras do crédito imobiliário, os notários, agora sob a batuta segura e competente do nosso múlti-presidente, tomarão de assalto a banca. Onzenários, paenitemini et credite!

Com tamanha expertise em instituições e serviços financeiros, nosso múlti-presidente terá compreendido exatamente o que Bertold Brecht a seu tempo expressou: “o que é assaltar um banco, comparado com fundar um?”.