À guisa de divulgar nas páginas eletrônicas do Boletim do Irib a série de palestras semanais que o desembargador Ricardo Dip, do Tribunal de Justiça de São Paulo, iniciará em breve sobre o tema da Hermenêutica Registral, fiz uma rápida entrevista com o jurista.
Provoquei-o com o tema do positivismo jurídico. Como sempre, com respostas sintéticas, não deixou de expressar seu ponto de vista. Confira.
SJ: Desembargador RD, por que a escolha do tema hermenêutica registral numa época em que os interesses estão postos numa interpretação autorizada do corpo normativo, via jurisprudência classificada eletronicamente?
RD: No século XX, todos o sabemos, o desporto predileto de nove entre dez juristas foi a “caça a Kelsen”. Não digo que sem razão. Mas o fato é que a derrocada teórica do normativismo kelseniano nem sempre correspondeu a paradigmas não-positivistas. É possível que muitos dos aparentemente opostos ao normativismo teórico não tenham escapado de um normativismo prático-prático. O resultado é que o cúmulo dos fracassos, daquilo que Radbruch chamava de “lei do soldado” (: “ordens são ordens”) levou a uma substituição da clausura do texto da lei (o normativismo literalista, alguma vez influído da idéia dos sentidos claros) pelo positivismo judiciário. Ch. Evans Hughes, p.ex., definirá Constituição como “o que os juízes dizem que é”, e o emérito Álvaro D’Ors rematará que direito é aquilo que os juízes aprovam. Não vejo razões para reduzir as fontes interpretativas a uma só delas: a judicial. Isso por mais que ela seja relevante.
SJ: Com uma hermenêutica registral será possível resgatar e explicitar uma Ordem anterior às normas? Que lugar nessa Ordem ocupa o direito registral?
RD: Temos de decidir sobre uma questão fundamental: o direito é o mesmo que lei? Ou é mais do que lei? Persuadimo-nos de que há, além do justo legal, um justo sine scripto, ou, se o quisermos, uma coisa justa pela natureza das coisas? Dizer qual o papel que nessa ordem (chamemo-la, por simples comodidade expressiva, ordem supralegal) desempenha o Direito registrário é algo a que se chegará, em parte com muito esforço, ao cabo de uma larga meditação.
SJ: Parafraseando João Ameal, se a jurisprudência pode ser compreendida, enquanto acervo referencial, como uma espécie de história, narrando e traduzindo os fatos juridicamente relevantes, essa “explicação” terá de alçar-se “dos efeitos às causas, da variedade à unidade, do tropel informe à ordenação arquitetural”? Terá de ser, pois, filosófica? Uma hermenêutica registral é filosófica?
RD: Sua observação é interessante, mas não penso que o saber do direito haja de ser só filosófico. É-o também saber filosófico. Mas uma ampla atividade interpretativa, no campo do direito, deve abarcar outros tipos de saberes, entre eles o comum. O mais é problema de hierarquizar as conclusões. Outro dia ouvi o grande tenor brasileiro, Luiz Tenaglia, interpretando uma canção popular. Foi notável, mas nós mataríamos a expressão da cultura e da arte se a empregada lá de casa não pudesse, entre uma rotina e outra, cantarolar, interpretando-a, pois, a seu modo, a mesma canção. Coisa diversa é que nós esperemos que ela (pois DEUS permita que não me leia isto, ela, desafinadíssima), desse um recital de canto no Theatro São Pedro.
SJ: Concretamente, o que se entende por hermenêutica? O dicionário nos traz a idéia de conjunto de regras e princípios usados na interpetação do texto legal. Pertence ao domínio da hermenêutica discutir previamente esse instrumental utilizado na découpage do objeto textual?
RD: Ciência e arte da interpretação. Ponto e basta. As definições reais-essenciais, ensinava-me o amigo e mestre Van Acker, hão de ser breves.
SJ: O que se busca com uma hermenêutica registral? O sentido aninhado no texto legal? O sentido que inspira o texto legal? A ordem que se impõe antecedentemente ao texto legal? A denúncia da ordem mal-ferida?
RD: Eis aí outra mácula gerada pelo normativismo. A Hermenêutica não se limita à interpretação de textos legais. Isso é apenas uma parte dela. E nem julgo que seja a mais importante…