A formação dos títulos judiciais, função tradicionalmente atribuída aos escrivães, passa por significativas transformações. O advento de novas tecnologias e a consolidação dos processos judiciais e serviços notariais e registrais eletrônicos — fenômeno acelerado pelas medidas adotadas durante a pandemia da COVID-19 — deu impulso à reconformação dos títulos e à reestruturação dos canais de comunicação que interconectam o Poder Judiciário e os chamados órgãos da fé pública. Não só. A desestruturação dos tradicionais processos formais e a criação de infovias digitais, permitem agora o acesso direto e instantâneo aos processos judiciais eletrônicos, afastando, progressivamente, os chamados órgãos intermediários (escrivães e tabeliães) na formação dos títulos judiciais.
Este artigo examina os dois lados deste fenômeno: de uma banda, deita um olhar retrospectivo para colher o desenvolvimento de tais funções ao longo da história. De outro lado, coloca em perspectiva a “plataformização”[1] dos serviços judiciais e extrajudiciais, flagrando as mudanças que dão impulso à reorganização das chamadas “especialidades” — núcleos especializados que conformam os órgãos auxiliares da justiça e dos serviços notariais e registrais.
Embora centrado nas normas de serviço paulista, o estudo reflete tendências nacionais e globais da digitalização. O texto propõe ao leitor uma reflexão crítica sobre a erosão dos lindes institucionais que tradicionalmente demarcavam as atribuições próprias das especialidades, buscando identificar as possíveis consequências desse processo irrefreável de digitalização da sociedade. Trata-se de um processo disruptivo visto, aqui, da peculiar perspectiva registral. A escolha metodológica visou a flagrar as mudanças infraestruturais no curso da história institucional, abandonando-se análises pragmáticas que possam ser empreendidas.
A digitalização oferece benefícios claros — eficiência, acessibilidade, rapidez, redução de custos —, mas desafia a segurança jurídica e a correspondente presunção de autenticidade, autoria e congruência entre a vontade das partes e o ato lavrado, tudo revestido pelo manto da fé pública, que é o reconhecimento estatal dos direitos envolvidos. O sistema registral provê adequado balanceamento entre segurança jurídica, previsibilidade e responsabilidade administrativa, civil e mesmo penal em relação aos atos praticados. Veremos como exsurgem, pelo efeito da plataformização dos serviços, simulacros dos tradicionais sistemas de segurança jurídica e de modelos concorrentes, tendentes a suplantar o papel do próprio estado na adjudicação e garantia de direitos.
Os atos e assentos eletrônicos praticados pelo registrador e as certidões por ele expedidas e, em geral, qualquer documento que deva ser por ele assinado, serão firmados com sua assinatura eletrônica qualificada (art. 241 da LH). No caso brasileiro, reza a Lei 14.063/2020, para os “atos de transferência e de registro de bens imóveis”, é imprescindível o uso da assinatura eletrônica qualificada (inc. IV, § 2º, do art. 5 c.c. letra “a”, inc. III, art. 4º do Decreto Federal 10.543/2020).
LSeC – Lista de serviços eletrônicos confiáveis
No Brasil não há ainda qualquer previsão legal das chamadas Listas de Serviços Confiáveis – ou TSL´sTrusted Services Lists, como há na Europa (Regulamento UE 910/2014).[1] A assimilação de figuras do sistema europeu, que difere essencialmente do modelo de assinaturas eletrônicas adotado no Brasil, parece desconsiderar que a ICP-Brasil é uma infraestrutura de chave-raiz única e que, portanto, prescindiria de uma autenticação colateral de prestadores qualificados de serviços de confiança (Qualified Trust Service Providers – QTSPs), criados para garantir a confiabilidade da identidade digital e a interoperabilidade de assinaturas eletrônicas, certificados digitais, carimbo do tempo etc. Deve-se fazer a ressalva da possível utilização para fins de reconhecimento de autenticidade entre o Brasil e outros países ou blocos e a utilização progressiva no âmbito corporativo.[2]
Com o advento da Lei nº 14.382, de 2022, alterou-se a Lei de Registros Públicos (LRP) para inclusão do § 4º do art. 221, inovando o processo de registro. O dispositivo se coordena com o § 6° do art. 19 da mesma lei. Ambos têm a seguinte redação:
Art. 19. A certidão será lavrada em inteiro teor, em resumo, ou em relatório, conforme quesitos, e devidamente autenticada pelo oficial ou seus substitutos legais, não podendo ser retardada por mais de 5 (cinco) dias.
(…)
§ 6° O interessado poderá solicitar a qualquer serventia certidões eletrônicas relativas a atos registrados em outra serventia, por meio do Sistema Eletrônico dos Registros Públicos (SERP), nos termos estabelecidos pela Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça.
…
Art. 221 – Somente são admitidos registro:
(…)
§ 4º Quando for requerida a prática de ato com base em título físico que tenha sido registrado, digitalizado ou armazenado, inclusive em outra serventia, será dispensada a reapresentação e bastará referência a ele ou a apresentação de certidão.
Quais serão as repercussões da mudança legislativa na praxe cartorária? Vamos nos deter nesse ponto, buscando formular algumas questões para debate e aprofundamento desse e de outros temas conexos.
Neste pequeno ensaio, vamos nos deter no tema das distinções entre original e cópia e seus consectários – autoria, autenticidade, integridade. Com o perdão do trocadilho, qual o papel que o título digitalizado “com padrões técnicos” desempenha no processo registral? São equivalentes – o título original e o digitalizado – em ordem a sustentar a inscrição e promover a mutação jurídico-real?
Narciso – Caravaggio,1594
Os espelhos nos assombram, assim como as cópias digitais. Desde o Mito de Narciso, cujo trágico desenlace todos conhecemos, cumprindo a profecia de Tirésias – si non se uiderit – a realidade e as suas representações sempre intrigaram o homem.[1] Borges cravou uma passagem perturbadora em Tlön, Uqbar, Orbis Tertius: “os espelhos têm algo de monstruoso” porque “multiplicam o número dos homens”.[2] Em Tlön, as idealizações e as representações qualificam, de certo modo, os fatos e a materialidade substancial das coisas. O mundo não é um concurso de objetos no espaço, nem há substantivos na Ursprache de Tlön… Magritte, em seu La reproduction interdite (1937), nos convida à reflexão acerca da realidade e de suas representações. O que é real? O que é surreal?[3]
Com o advento das novas tecnologias, muitos de nós não conseguem distinguir de modo seguro um original de sua cópia reprográfica; um objeto real de um simulacro; um fato substancial de sua representação digital. A questão torna-se ainda mais perturbadora quando pensamos que, no âmbito dos documentos natodigitais, já não se verifica a summa divisio que vinca os originais e suas cópias; todas as cópias são originais e vice-versa…
As recentes reformas legais são surpreendentes. Causam-nos perplexidade. Pensemos nos contratos digitalizados “com padrões técnicos”. O que são eles propriamente? Assombram-nos os extratos – emanação especular que se desprende dos negócios jurídicos pela via da novilíngua digital, errando por hubs, centrais eletrônicas e cartórios; assalta-nos a ideia de infalibilidade e fidedignidade das redes de blockchain, tokens, artefatos criptográficos e de seus protocolos divinos. O que é real? O que é surreal? O que é meta-real?
O advento da Lei 14.382/2022 representou o despontar de um novo paradigma no sistema registral pátrio: a ereção do Registro de Documentos (ou menos que isso: registro de meras indicações eletrônicas), em oposição ao chamado Registro de Direitos, modelo adotado no Brasil desde as origens da publicidade hipotecária, em 1846, filiado às matrizes da Europa Continental[1]. O SREI – Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis vinha se estruturando, aperfeiçoando e modernizando sob os auspícios de um seleto grupo de registradores com a supervisão e coordenação do CNJ[2].
Lamentavelmente, as iniciativas foram colhidas por uma medida provisória (MP 1.085/2021) que nos brindou muitas e profundas mudanças, algumas muito boas, outras nem tanto. Como temos buscado demonstrar na série de artigos publicados no siteMigalhas Notariais e Registrais, para nossa sorte (ou azar) ficamos a meio caminho das reformas pretendidas por seus protagonistas. A razão é simples: não se reforma uma instituição multissecular a partir de impulsos de açodado furor reformista[3]. Temos agora uma central de centrais (SERP) que a muito custo busca se estruturar. É um modelo manco e imperfeito, falto de referências a que pudesse se filiar de molde a alicerçar a propalada “modernização” do sistema registral pátrio. [íntegra].
No artigo anterior[1], vimos como nasceram as entidades registradoras e se inaugurou um novo regime registral das garantias reais e mobiliárias ao lado do sistema tradicional de publicidade jurídica. Na sequência, veremos como as forças econômicas e corporativas buscaram pespegar estas mudanças na ordem civil, subvertendo os paradigmas do direito brasileiro.
A MP 897/2019 – a entidade registradora “registral”
A tramitação do PLC 30/2019 (MP 897/2019, convertida afinal na Lei 13.986/2020) revelaria o movimento concentrado, e muito bem orquestrado, no sentido de se buscar a modificação dos paradigmas do sistema de registro de direitos e de distribuição de competências e funções notariais e registrais. No relatório final do dito PLC 30, apresentado pelo deputado PEDRO LUPION, houve a tentativa de incluir, na redação derradeira, a criação de uma Central Nacional de Registro Imobiliário (art. 51)[2]. Na complementação de voto, o nobre deputado ainda alteraria a redação do art. 51 “para permitir à Central Nacional de Registro de Imóveis atuar como entidade registradora, observada a legislação específica”. A emenda assim achava-se redigida:
“…conhecendo o que os que esto leerem que nom screvo do que ouvy, mes daquello que per grande custume tenho aprendido”.(Dom DUARTE I, 1391-1438. Livro da Ensinança do Bem Cavalgar toda Sela)
Introdução
Toda reforma institucional tem uma história. O SERP – Sistema Eletrônico de Registros Públicos não foge à regra. Este organismo artificial, resultado de tour de force empreendido por agentes do mercado financeiro e de capitais[1] e de representantes do setor imobiliário – apoiados por alguns registradores, impulsionados pelo Ministério da Economia – desde cedo despontou no cenário legislativo no afã de reformar o sistema registral, reconvertendo-o segundo modelos, referências e matrizes alienígenas – como o notice-based registry, sobre o qual muito já se falou[2].
A partir 2017 iniciaram-se várias tentativas de transformar o tradicional sistema registral pátrio em algo novo, moderno, ágil, eficiente, barato. Um novo Registro. O paradigma que primeiro se insinuou foi a criação de um ente privado centralizado de prestação de serviços de registro e informação – numa palavra, em uma entidade registradora “registral”, a exemplo dos modelos recomendados por organismos internacionais e que vicejaram por aqui[3]. Sob o pálio da “modernização” do sistema registral, as tentativas de reforma foram se sucedendo até que, finalmente, elas vieram consagradas, parcial e imperfeitamente, na Lei 14.382/2022.
Alguns registradores se inclinariam a esta iniciativa de modo muito entusiasmado, sem que o assunto fosse posto em amplo debate com a sociedade e especialistas[4], como se verá ao longo destas páginas. Aliados a representantes de centrais de serviços eletrônicos compartilhados de vários estados brasileiros, os registradores deram impulso às reformas legais que culminaram no SERP[5].
Há duas grandes vertentes identificáveis no cerne destas reformas: (a) a criação de uma central de serviços notariais e registrais (o que se consumou com a repristinação do art. 42-A incrustrado na Lei 8.935/1994) e (b) criação do SERP, com a figuração de central nacional de registros públicos, criada à imagem e semelhança de suas matrizes, exequíveis pela assimilação de novas tecnologias econômico-financeiras, como a segregação patrimonial e mobilização do crédito (securitização), aliadas a novas ferramentas de comunicação e informação próprias de plataformas digitais.
A carta aberta de juristas publicada em São Paulo e divulgada pelo site CONJUR (vide final) é emblemática e muito expressiva na crítica que lança sobre o processo que culminou com a Lei 14.382/2022. Vale a pena conhecer o argumento dos juristas que a subscreveram(SJ).
São Paulo, 19 de maio de 2023.
Ao Excelentíssimo Deputado Federal Sr. Fernando Marangoni Ref.: Carta Aberta de Civilistas sobre trecho da Medida Provisória n. 1162, de 14 de fevereiro de 2023 (Programa Minha Casa, Minha Vida)
Excelentíssimo Senhor Deputado,
Vimos, pela presente, até Vossa Excelência, manifestar-nos sobre o texto da Emenda 231 à Medida Provisória n. 1162, de 2023 (Programa Minha Casa, Minha Vida), de sua autoria, mais especificamente, quanto à seção da emenda supracitada que propõe a exclusão dos extratos eletrônicos da lista de documentos hábeis a promover o registro e a averbação de fatos, atos e de negócios jurídicos.
Até a edição da Medida Provisória n. 1.085, de 27 de dezembro de 2021, convertida posteriormente na Lei Federal n. 14.382, de 27 de junho de 2022, que dispôs, dentre outros temas, sobre o Sistema Eletrônico dos Registros Públicos (Serp), não havia, em nosso ordenamento, previsão legal que permitisse a utilização de extratos eletrônicos como título apto para registro ou averbação de fatos, atos e de negócios jurídicos.
Todavia, após a edição das referidas normas, sobrevieram questões de altíssima relevância legal, relacionadas à insegurança jurídica causada pela manutenção dos seguintes dispositivos de lei, quais sejam, in verbis:
Seção III
Dos Extratos Eletrônicos para Registro ou Averbação
Art. 6º Os oficiais dos registros públicos, quando cabível, receberão dos interessados, por meio do Serp, os extratos eletrônicos para registro ou averbação de fatos, de atos e de negócios jurídicos, nos termos do inciso VIII do caput do art. 7º desta Lei.
§ 1º Na hipótese de que trata o caput deste artigo:
I – o oficial:
a) qualificará o título pelos elementos, pelas cláusulas e pelas condições constantes do extrato eletrônico;
b) disponibilizará ao requerente as informações relativas à certificação do registro em formato eletrônico;
II – o requerente poderá, a seu critério, solicitar o arquivamento da íntegra do instrumento contratual que deu origem ao extrato eletrônico relativo a bens móveis;
III – (VETADO).
III – os extratos eletrônicos relativos a bens imóveis deverão, obrigatoriamente, ser acompanhados do arquivamento da íntegra do instrumento contratual, em cópia simples, exceto se apresentados por tabelião de notas, hipótese em que este arquivará o instrumento contratual em pasta própria. (Promulgação partes vetadas)
IV – os extratos eletrônicos relativos a bens imóveis produzidos pelas instituições financeiras que atuem com crédito imobiliário autorizadas a celebrar instrumentos particulares com caráter de escritura pública poderão ser apresentados ao registro eletrônico de imóveis e as referidas instituições financeiras arquivarão o instrumento contratual em pasta própria. (Incluído pela Medida Provisória nº 1.162, de 2023)
§ 2º No caso de extratos eletrônicos para registro ou averbação de atos e negócios jurídicos relativos a bens imóveis, ficará dispensada a atualização prévia da matrícula quanto aos dados objetivos ou subjetivos previstos no art. 176 da Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973 (Lei de Registros Públicos), exceto dos dados imprescindíveis para comprovar a subsunção do objeto e das partes aos dados constantes do título apresentado, ressalvado o seguinte:
I – não poderá ser criada nova unidade imobiliária por fusão ou desmembramento sem observância da especialidade;
II – subordinar-se-á a dispensa de atualização à correspondência dos dados descritivos do imóvel e dos titulares entre o título e a matrícula.
§ 3º Será dispensada, no âmbito do registro de imóveis, a apresentação da escritura de pacto antenupcial, desde que os dados de seu registro e o regime de bens sejam indicados no extrato eletrônico de que trata o caput deste artigo, com a informação sobre a existência ou não de cláusulas especiais.
§ 4º O instrumento contratual a que se referem os incisos II e III do § 1º deste artigo será apresentado por meio de documento eletrônico ou digitalizado, nos termos do inciso VIII do caput do art. 3º desta Lei, acompanhado de declaração, assinada eletronicamente, de que seu conteúdo corresponde ao original firmado pelas partes.
Diante disso, em razão desse cenário de incerteza jurídica, propiciado pelos dispositivos legais reproduzidos acima, e em atenção à redação da Emenda 231, cujo objetivo é a sua modificação, apresentamos nossas considerações preliminares, registrando, desde já, nossa disponibilidade para aprofundamento das questões suscitadas.
Já foi dito que, até a edição da MP 1085, de 2021, resumos e extratos jamais constituíram títulos hábeis para ingressos nos registros públicos, ainda que estivesse acompanhados de cópia do instrumento contratual subjacente.
Os Registros de Títulos e Documentos datam de 1603 e os Registros de Imóveis têm como seu embrião o Registro Geral de Hipotecas de 1843.
Desde o Decreto 4.857, de 9 de novembro de 1939, vige no Brasil a regra geral de que o registro é promovido independentemente da apresentação de extratos ou resumos, sendo imprescindível, no entanto, o registro e a averbação dos títulos ou atos constitutivos, declaratórios, translativos e extintos de direitos reais sobre imóveis reconhecidos em lei, “inter vivos” ou “mortis causa”, para que sua constituição, transferência e extinção, quer para sua validade em relação a terceiros, quer para sua disponibilidade.
Trata-se, portanto, de medida de rigor, consubstanciada na averbação de fatos jurídicos, bem como registro da vontade do declarante emanada do negócio jurídico subjacente, vindo a constituir, modificar ou extinguir uma relação jurídica, em virtude de uma regulamentação juridicamente vinculante aos sujeitos que se qualificam como partes.
É sabido que, no ordenamento jurídico brasileiro, adota-se uma eficácia meramente obrigacional dos negócios jurídicos, não os bastando para a constituição, modificação e/ou extinção de direitos reais. Desde que seja válido e eficaz, o negócio jurídico opera como título hábil para a constituição, modificação e/ou extinção de direitos reais, razão pela qual, ao se juntar ao registro, como modo de aquisição de direitos reais sobre coisas imóveis, permite a transferência do direito subjetivo em questão.
Isso se explica porque, no negócio jurídico obrigacional, é a declaração negocial, emanada do titular do direito real, que apresenta a vontade de transmitir esse mesmo direito. Por isso mesmo, o registro, no Registro de Imóveis, prescinde da celebração de um novo negócio jurídico. Diferentemente do que se vê em outros ordenamentos, notadamente o alemão, em que o negócio jurídico obrigacional se encontra completamente desvinculado do negócio jurídico de eficácia translativa, no Brasil, basta que o negócio jurídico obrigacional seja levado a registro para a transferência do direito real.
Todavia, precisamente por essa cumulação de declarações negociais, encontrada no negócio jurídico obrigacional, é mister levá-lo a registro, pois o ato de registro, por si só, não representa negócio jurídico translativo, vez que não contém, em si, declaração negocial emanada do titular do direito real.
Por essa razão, o extrato, por sua vez, ainda que acompanhado de cópia simples do negócio jurídico – e sabe-se que há movimento para extirpar a obrigação de que o instrumento contratual acompanhe o extrato1 – não contém, em si, a declaração negocial do titular do direito subjetivo real, único sujeito competente para realizar a transferência. A mera cópia do documento já retira um importante filtro para aferição da legitimidade do outorgante, o que, sem dúvida, constitui uma porta aberta a fraudes.
Assim se vê que a Medida Provisória n. 1.085 e a Lei Federal n. 14.382, de 27 de junho de 2022, que lhe sucedeu, modificaram regras centenárias de segurança jurídica sem qualquer justificativa racional ou jurídica.
Até então, todas as modificações legislativas sobre direito de propriedade e seu registro, lideradas por luminares do Direito Civil nacional, como Miguel Reale, Clóvis Bevilácqua, Rui Barbosa, Francisco Campos ou Conselheiro Furtado, jamais mencionaram o extrato como instrumento jurídico apto a ingressar em registro público. Muito provavelmente porque, como referenciado, o extrato não apresenta, em si, a declaração negocial necessária para expressar a vontade do titular do direito real de transferi-lo ou modificá-lo.
Cf. documento denominado “Sugestões para a regulamentação da Lei 14.382/22: registro por extrato e assinatura eletrônica”, elaborado pela Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias – ABRAINC – em 15 de janeiro de 2022. Ver nota 21 (pág. 8): 21. De outro modo, sugere-se sejam expressamente previstos casos comuns de dispensa de documentos de suporte, de modo a padronizar o entendimento dos Oficiais de Registro, evitando-se a proliferação de notas de exigências requerendo comprovações e informações adicionais àquelas constantes dos extratos eletrônicos. Ver Sugestão 6 (pág. 13): [1] O Oficial de Registro competente qualificará o título e realizará o registro exclusivamente a partir dos elementos constantes do extrato, sendo vedado o exame da íntegra contratual, ainda que apresentada para fins de conservação, seja em relação a aspectos de forma, de assinatura ou de conteúdo.
No mesmo sentido, trazemos à tona parte da sua explicação que justifica o teor da emenda apresentada por Vossa Excelência, in verbis:
“Extratos, ou simples resumos de títulos são incompatíveis com a segurança jurídica do Registro de Imóveis especialmente quando a Lei n. 14.063 de 2020 regula as assinaturas eletrônicas qualificadas e avançadas.
Os extratos podem acompanhar mas não podem substituir o título, sob pena de deixar o consumidor vulnerável a fraudes.
Se o cartório não analisar o contrato mas somente um resumo digital desse contrato, elaborado por um terceiro, é evidente que o Registro de Imóveis passa a deixar as portas abertas para todo o tipo de fraude.
Substituir o original por um resumo digital é insegurança jurídica. As maiores vítimas serão os mais vulneráveis, que não tem dinheiro para pagar advogados.
Todo o sistema brasileiro passa a conviver com enorme risco sistêmico de confiança”.
Além do aspecto puramente registral e do modelo de aquisição derivada de direitos reais adotado pelo ordenamento jurídico pátrio, vê-se que a utilização de extratos, como título hábil para registro, também apresenta inconvenientes em outras áreas.
Para o Direito do Consumidor, citamos o artigo “A raposa e o galinheiro: a MP 1085 e os riscos ao consumidor”i, em que os Professores Claudia Lima Marques e Bruno Miragem apontam que os extratos descaracterizam o registro público como meio de garantia de direitos. Segundo eles, os extratos restringem o conhecimento e exame integral dos negócios jurídicos, objeto do registro, pelos registradores e consumidores. Assim, sem o exame e registro do contrato, potencializam-se riscos de sua alteração, dificultando que abusos sejam identificados e combatidos.
No âmbito do Direito de Família e Sucessões, que, por sua vez, vem adotando cada vez mais o contratualismo para regular as relações conjugais, a dispensa da apresentação da escritura de pacto antenupcial, ainda que sob reservas, também pode gerar insegurança jurídica.
Os especialistas de Direito Comercial igualmente se manifestaram sobre a impertinência do extrato. A exemplo disso, citamos o artigo “Risco de insegurança jurídica no crédito”ii, de autoria do Professor Armando Rovai, que foi, aliás, citado por Vossa Excelência na justificativa da Emenda 231. O texto aponta a insegurança decorrente da irresponsabilidade dos registradores sobre registros dos extratos e dos danos causados por estes, com a abertura do sistema para todo o tipo de fraudes. Em destaque do texto citado, encontra-se o seguinte alerta: “O Brasil será o paraíso para aqueles interessados em sumir com os próprios bens do alcance de credores ou dos estelionatários, interessados em vender os bens alheiros”.
No âmbito do Direito Digital, já se manifestou o Professor Ricardo Campos, da Goehte Goethe Universität Frankfurt am Main (Alemanha), que escreveu no artigo “Extratos eletrônicos, microssistemas e o Poder Judiciário”iii. Segundo ele, os extratos implicam em clara perda de poder e de competência fiscalizatória das Corregedorias, aumento de fraudes registrais, judicialização de extratos fraudulentos que não passaram pelo crivo e atuação preventiva dos oficiais de registro e degeneração do sistema de direitos reais.
A magistratura do Estado de São Paulo concorda com as conclusões acima resumidas, tendo sido elaborado um parecer que corrobora a meritória e necessária Emenda 231, pois destaca que a utilização dos extratos altera a natureza e o cerne da função registral no Brasil. Ainda, o parecer aponta que a introdução do extrato em nosso sistema jurídico é um desatino jurídico, econômico e político, e sugere cautela ao tratar deste tema. Caso tenha interesse em conhecer seu inteiro teor, uma cópia do parecer citado está acompanhando a presente Carta.
O mesmo documento discute, ainda, os dois modelos existentes de registros de imóveis no mundo, argumentando que o Brasil tinha o melhor modelo antes da introdução do extrato. O modelo brasileiro, conhecido como registro de direitos, possui menores custos de transação, porquanto o esforço de examinar os títulos é realizado apenas uma vez por um agente munido de fé pública.
Em contraste, o modelo de registro de títulos tem custos de transação mais elevados, pois a análise dos títulos deve ser feita sempre que alguém se interessa por uma propriedade. Essa análise, feita por agentes privados, não gera nenhuma presunção jurídica sobre a existência e extensão do direito. O parecer acaba por concluir que o extrato cria um registro de segunda classe, ameaçando o modelo brasileiro de registro de direitos.
Em suma, sempre com a devida vênia, parece-nos que a implementação do extrato pode levar à perda de direitos dos proprietários e credores, pois não há a verificação, por agente munido de fé pública, do consentimento firmado entre as partes, consentimento esse contido, apenas e tão somente, no negócio jurídico, mediante as declarações negociais necessárias.
Destacamos, ainda, que, em nenhuma economia desenvolvida, direitos de propriedade sobre imóveis são transferidos por mero extrato apresentado por um interessado, ainda que acompanhado de cópia simples do referido documento.
Demais disso, parece-nos que a comunidade jurídica, envolvendo nomes do direito civil, imobiliário, registral, consumerista, digital e de família, também não foi consultada sobre a implementação do extrato por Medida Provisória do governo anterior, ainda que referida Medida se tenha convertido em lei.
Assim, em nome da segurança jurídica do ato registral, da preservação das prerrogativas e faculdades concedidas ao titular do direito real sobre bem imóvel, bem como da primazia do negócio jurídico como exercício da autonomia privada, apoiamos a iniciativa adotada por Vossa Excelência, por meio da propositura da Emenda n. 231, pois a eficiência do sistema registral brasileiro e a propriedade, garantia constitucional, dependem do rigor na observância dos requisitos impostos pela legislação em vigor. Não se pretende, com esta carta, infirmar qualquer salutar iniciativa ao incremento de medidas de burocratização do procedimento registral, mas, a nosso ver, qualquer alteração substancial demanda aquilatada e aprofundada discussão prévia sobre o tema, sob pena de vilipêndio ao arcabouço civil e registral do nosso País.
Parecer elaborado pelos professores CLÁUDIA LIMA MARQUES e BRUNO MIRAGEM a pedido do Colégio Notarial Brasileiro – Conselho Federal e o Conselho Notarial Brasileiro – Seção São Paulo acerca das repercussões da MP 1.085/2021 nos direitos do consumidor.
Vide o extrato:
Medida Provisória n. 1.085, de 27 de dezembro de 2021. implantação do Sistema Eletrônico dos Registros Públicos (SERP). Faculdade de averbação e registro mediante envio de extrato eletrônico pelo requerente (art. 6º da MP 1.085/2021). Dispensa de apresentação da íntegra do instrumento contratual. Limitação da função de qualificação registral nos atos e negócios jurídicos envolvendo direitos sobre imóveis, especialmente quando vinculados a financiamento imobiliário que prejudica e diminui a proteção de interesses e direitos dos consumidores. Redução do âmbito de exame de legalidade e legitimidade do título pelo Oficial do Registro em relação a violações legais e abusividades.
Restrições à efetividade do direito de acesso ao contrato, quando houver violação do dever pelo fornecedor (arts. 46, 54-d, III, e 54-G, §2º, do Código de Defesa do Consumidor (CDC).
Riscos de erro e fraude no registro. Dispersão dos bancos de dados para verificação de identidade das partes. Dispensa do sistema de assinatura qualificada, com certificação digital prevista na Lei 14.063 de 23 de setembro de 2020.
Redução do exercício da função de qualificação registral e fragmentação do procedimento que dá causa à dispersão da responsabilidade por erros e fraudes, até então concentrado no regime da Lei n. 8.935, de 18 de novembro de 1994, com fundamento constitucional (art. 236, §1º, da Constituição da República). Prejuízo ao direito básico do consumidor à efetiva prevenção e reparação de danos (art. 6º, VI, do CDC).
Dando seguimento à série Assinaturas Eletrônicas e a Lei 14.382/2022, hoje encerramos o ciclo enfrentando o disposto nos §2º do art. 4º e art. 9º, ambos do Provimento CN-CNJ 94/2020. As questões aqui agitadas guardam estreita relação com o tema central dos artigos anteriores: autenticidade e integridade dos títulos apresentados a registro. Os ditos dispositivos do Provimento 94/2020, baixado no auge da pandemia, em circunstâncias excepcionais – o que de certo modo justificava a solução ali alvitrada –, poderão ser reapreciados pela Corregedoria Nacional de Justiça, razão pela qual apresentamos as breves linhas que se seguem, feitas com o objetivo de colaborar com os debates públicos[1].
Dando seguimento ao artigo anterior (Assinaturas Eletrônicas e a Lei 14.382/2022 – parte I)[1], agora vamos ajustar o foco na adoção das assinaturas avançadas no Registro de Imóveis.
Primeiramente, há de se distinguir muito bem as hipóteses que nos interessam. De um lado a regra geral, estalão reitor que torna obrigatória a utilização da assinatura eletrônica qualificada nos “atos de transferência e de registro de bens imóveis” (inc. IV, § 2º, do art. 5º da Lei 14.063/2020)[2]; de outro, as hipóteses excepcionais em que a assinatura avançada poderá eventualmente ser utilizada. Entretanto, e de um modo geral, a reforma não discrimina expressamente em que casos cada qual poderá ser admitida, deixando a cargo da Corregedoria Nacional de Justiça regulamentar a utilização nos casos concretos.
Veremos que no Registro de Imóveis as assinaturas avançadas poderão ser utilizadas excepcionalmente, ou seja, nos casos que não envolvam atos de alienação ou oneração de bens imóveis. Nem mesmo a reforma da reforma da reforma (MP 1.162/2023) conseguiu consagrar, livre de dúvidas, a sua utilização no Registro de Imóveis[3]. Por esta razão, as hipóteses exceptivas deverão ser objeto de prudente regulamentação pela CN-CNJ (§§ 1º e 2º do art. 17 e art. 38 da Lei 11.977/2009, todos alterados pela Lei 14.382/2022). Em outras palavras, o abrandamento de rigores e de exigências formais será possível, contudo, sempre em casos residuais, levando-se em conta os princípios que iluminam o conjunto normativo que dispõe sobre a matéria.
Assim, atos meramente administrativos, como averbação de construção, mudança de numeração predial, de denominação de logradouros, mutações de estado civil, demolição, reconstrução, reforma e de tantas outras situações congêneres – que não representam mutações jurídico-reais e que calham no âmbito conceitual do que se entende por meraaverbação –, poderão ser firmados com assinaturas eletrônicas avançadas. Elas podem, ainda, ser utilizadas nos casos de acesso ou de “envio de informações aos registros públicos, quando realizados por meio da internet”, nos termos do § 1º do art. 17 da LRP, alterada pela Lei 14.382/2022. Uma vez mais, a lei endereça a regulamentação à CN-CNJ (§ 2º). Nestes casos exceptivos, calham os pedidos postados pelo SERP (inc. IV do art. 3º da Lei 14.382/2022), além da expedição de certidões com base em autenticação pela plataforma do SERP, ONR ou da própria Serventia (§ 2º do art. 5º da Lei 14.382/2022).
Já os atos e negócios que impliquem mutações jurídico-reais, como os que transfiram, modifiquem, declarem, confirmem ou extingam direitos reais, nestes casos parece-nos indispensável o uso de assinatura eletrônica qualificada, visto que somente esta modalidade pode garantir a confiabilidade, integridade e autoria na relação jurídica consagrada no instrumento registrável (título). Afinal, trata-se de garantir a validade e eficácia dos atos que acedem ao Registro de Imóveis e que produzem os potentes efeitos de constituição de direitos reais e de sua oponibilidade erga omnes.